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«Não sou pintor de naturezas-mortas» escreveu o pintor - e essa foi a tradição que menos praticou. Mas existiram algumas, são obras maiores e ficaram a marcar uma transição brusca entre ciclos, dos retratos íntimos para os recortes de figuração erótica. São também um momento forte do diálogo sempre procurado com a arte dos museus*, que vários artistas da Pop norte-americana praticavam e então o interessavam, desde a longa relação com Ingres e com Matisse, no início da década de 1970.
Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. E lá me encontrei: situação sem conforto, de que há que partir. Isto vale para a pintura e para o resto. Nota (p. 27)
Três magníficas natureza mortas a partir de Chardin, em 1976: “Vá-se lá saber porque é que o meu período de retratos (1968-1976) se afoga em naturezas-mortas. E a verdade é que nunca me apetecera tentar o género”. Confessa todavia a “admiração sem limites por Chardin (que) sempre me entusiasmou diante das suas pirâmides de fruta e da carne miraculada dos seus utensílios, ditos humildes” - “um pintor obcecado pelo lado carnal da presença”. Nas mesmas páginas de Da Cegueira dos Pintores em que reflectia sobre o fazer da pintura, “relacionava também... os seus belos vazios com aqueles tempos tão densos que Morandi assinala entre os frascos e as cafeteiras anónimas”.
A natureza-morta é um “micromundo ou inacabável modelo do mundo... (e a tradução literal de nature morte repete a estupidez da expressão original (francesa), a opacidade que still life, vida silenciosa ou quieta, não tem): o silêncio nas coisas ou a quietude destas não é obrigatoriamente apanágio de cadáver. “
Enquanto se ocupava de uma difícil paisagem*, Belle-Isle-en-Mer, e elas foram sempre raras, “a lembrança de Chardin começou a mexer em mim. Iniciei um estudo a partir de La Raie (mais um rosto!), e outro a partir de Le Chaudron de cuivre. Seguiu-se Le Pot d’étain. A partir de Juan Gris, arrisquei as duas telas que foram mais tarde distinguidas com o título Table des matières.”
“Nessa altura... precisava de uma espécie de terreno neutro.” “Vivia então uma espécie de purga. Escolhera os simples e confiara aos seus poderes o cuidado de disciplinar a libertinagem, enquanto o olhar desperto guardava as suas distâncias. O rigor pretendia-se impermeável ao tremor da mão. Uma geometria cortante. Dei comigo a fabricar quadros que pareciam ter sido paridos por luvas assépticas. Nenhum sinal de temperamento na pincelada, a escrita artística eliminada deliberadamente, nenhuma subtileza de feitura, tréguas na transparência. Tudo se pretendia exacto, seco, impessoal.”
O “lado carnal da presença” em Chardin, era igualmente ausência, vazio dos espaços de formas e fundo liso: “O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença.” Falou em “ordenação das emoções”. “Pintura que parte da coisa para se tornar pintura do vazio, do vazio como coisa; pintura da coisa grávida do seu vazio, da coisa chamada ausência, da coisa semelhante à sua ausência. Pintura que apresenta o vazio que a forma deixou, contra o vazio que a teria rodeado. A forma era assinalada como ausente, no vazio que teria habitado. O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença.”
São só cinco telas, a Raia d’après Chardin, o caldeiro de cobre em que a tela crua interior desenha um corpo e o humilde pote de estanho no fundo vermelho; a par das duas apropriações de Jean Gris em que aparecem guitarras e sexos. Em 1976, depois dos Maios’68 e de Ingres, de Van Eyck e Courbet revisitados até 1973. A par da essencial Belle-Isle-en-Mer.
Da Cegueira dos Pintores, tradução de Pedro Tamen, ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1986, de Discours sur la cécité du peintre, ed. Différence, Paris 1985. Reed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta 2014.
Posted at 23:36 in 2023, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
COM A LITERATURA
Desde os retratos dos poetas nos anos 50 para a colecção “Cancioneiro Geral” do Centro Bibliográfico (Mário Dionísio, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, etc, na edição especial de 40 exemplares), ou mesmo desde a primeira capa em 1946 para “Maria I - Escada de Serviço”, de Afonso Ribeiro, até às interpretações e ilustrações de “A Caça ao Snark” de Lewis Carroll, 1999, ou ao retrato de Vasco Graça Moura em 2014, a obra de JP avançou sempre associada à literatura, em desenhos, pinturas e também esculturas, com intervalos abertos para outros interesses e ciclos de trabalhos. Uma exposição e um livro de 1991 ("Pomar et la Littérature" / "Les Mots de la Peinture", Charleroi, Bélgica; ed. Différence) fizeram uma primeira aproximação ao tema da literatura, por iniciativa de um editor parisiense, Joaquim Vital, que esteve na origem de muitos convites para ilustrações. Em 2002, o Atelier-Museu actualizou o assunto também em exposição e livro,"Os Livros de Júlio Pomar" / The Books of Júlio Pomar", com organização de Mariana Pinto dos Santos.
Júlio Pomar pintor literário, sem que a sua pintura seja ilustrativa ou livresca. Também escritor*: crítico, ensaísta e poeta.
Se a relação com a literatura era visceral (ficaram livros assinados Júlio 1942), a ilustração - e a decoração*, de maior ou menor ambição - foi em certas épocas uma importante retaguarda financeira, quando a pintura se vendia pouco num mercado estreito (Pomar viveu sempre do trabalho de pintor, só com dois anos de bolsas da Gulbenkian já depois de se instalar em Paris em 1963; a cerâmica* e depois a gravura* cumpriram o mesmo papel de acessível suporte económico), e as leituras eram igualmente oportunidade de se encontrar com novos temas, necessários a um pintor sempre figurativo e sempre em mudança.
Já vimos (...) que os poetas - Camões, Bocage, Pessoa e Almada - desenhados no Metro de Lisboa e os autores das versões de “O Corvo” de Edgar Allen Poe, Baudelaire, Mallarmé e Pessoa, estiveram no início do estilo tardio da sua obra. E veremos que, de facto, toda a sua produção, no neo-realismo à Pintura de História* se partilhou entre a observação de cenas vistas, o real (os espectáculos do trabalho: debulhas, pisas, pesca, lotas; das Tauromaquias e Corridas de cavalos, do Catch, dos retratos e corpos) e a imaginação literária, por livros lidos e invenções sobre os mitos*. Até a longa série dos Tigres tem origem em ilustrações para um conto de Borges, em que aparece um tigre invisível, seguindo depois o pintor o seu caminho em total liberdade de figurar.
Com uma excepção confessada, a relação com a literatura resulta de propostas e encomendas, que em vários momentos resolviam a procura de assuntos a que um pintor se poderia dedicar, quando ele não se fixa na natureza morta* ou na paisagem*, ambos géneros raros, ou não se entrega à “abstracção”.
“D. Quixote” foi o livro mais trabalhado, em duas épocas bem distanciadas, os anos 1959/63 e 2005/12. No primeiro caso, as ilustrações para uma tradução de Aquilino Ribeiro (30 pequenas pinturas a preto e branco sobre cartão) prolongaram-se em quadros, gravuras e esculturas em ferros soldados, num tempo especialmente criativo (foi uma primeira maturidade). No segundo caso, uma ambiciosa edição em fascículos de iniciativa do semanário Expresso incluiu centenas de desenhos de variadíssimos formatos e processos, quando o contrato exigia só 10 por fascículo, e deu origem a uma nova série de pinturas que foram fotografadas ‘in progress’ e depois mais ou menos retrabalhadas, expostas em 2009 e em 2012 (“Navio Negreiro” e “Cartilha do Marialva”, estão já mais ou menos distanciadas do pretexto cervantino). Note-se que Quixote e mais ainda Sancho Pança foram uma espécie de alter-egos do pintor que neles por vezes se retratou.
Para além da série O Corvo, Fernando Pessoa aparece envolvido na série da “Mensagem”, e antes em retratos que começaram em 1973, em contacto com a Pop, e que depois foram até aos anos 2010, então na companhia de Marceneiro: dois emblemas nacionais no contexto do interesse pelo fado* e os fadistas. A música estava até aí ausente na obra, mesmo se era muito ouvida no atelier.
Lewis Carroll está presente, com o seu humor e gosto pelo absurdo lógico, num conjunto de grandes telas que excederam o propósito de ilustrar o poema "The Hunting of the Snark"/ “La Chasse au Snark” para a Différence, em 1999, o que motivou uma série paralela de desenhos e litografias para a edição prevista.
E também a Carta do Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha foi assunto de uma encomenda, surgindo uma Mãe Índia, que já se instruía com a estada na Amazónia. De um quadro de 1999, para o centenário da “descoberta”, surgiu depois uma série de outras Mães e filhos (“Mères Indiennes / Meridiennes”), em álbum e exposição. Juntavam-se, muito depois da viagem ao Xingu, a pintura de observação e a literatura, e também o mito.
Regressando ao princípio das oito décadas têm de referir-se as ilustrações desenhadas para “O Romance de Camilo” de Aquilino Ribeiro, 1957, e para “Guerra e Paz” de Tolstoi, 1956-58; “O Purgatório” de Dante, 1961 (e 2006), e o Grande Fabulário de Portugal e Brasil” 1961 (ambos em gravuras); “Terra Negra” de Castro Soromenho, 1960, e “O Cristo Cigano” de Sophia de Mello Breyner Andresen, 1961, já desenhados com o pincel japonês, tal como “Pantagruel” de Rabelais, 1967, que foi, segundo lembrou o autor, o único projecto ilustrado pela sua própria iniciativa. Seguiram-se grandes projectos associados a Ferreira de Castro, “Emigrantes” e “A Selva”, 1966 e 1974, e logo “Uma Abelha na Chuva” de Carlos de Oliveira, 1976, praticados como pinturas de pequenos formatos.
Em Paris, com Joaquim Vital, destacam-se os pequenos livros de Malcolm Lowry, 1976, e Jorge Luis Borges, 1978, com papeis recortados seguindo o exemplo de Matisse, e os desenhos eróticos (hardcore) para Gilbert Lely, o biógrafo de Sade, 1977, mais alguns grandes projectos até 2003, incluindo capas para Eça de Queiroz, 1985-1991.
Duas edições para um público juvenil, que foram únicas no género, ficaram a marcar o princípio e o fim da relação com a literatura: “Bichos, Bichinhos e Bicharocos” com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1949, e “O Cão que Comia Chuva”, de Richard Zimler, 2016.
No volume “Les Mots de la Peinture”, Différence 1991, dividiu-se a sequência das obras reproduzidas em Retratos de escritores, Quadros de leitura e Quadros sem história. Se de facto, o pintor já ia abordando e subvertendo os mitos e a Pintura de História, por vias da ilustração, aconteceu que na série Elipses de 1984, rapidamente pintada nos intervalos d’ “O Corvo” de Poe, foram surgindo Salomé, Leda, o Rapto de Europa, o Julgamento de Páris, Diana e Acteon. Foram ocupando um lugar crescente no seu trabalho.
("in progress", A.P. 28.11.23) + Citações e Bibliografia. * indicam tópicos previstos
1991, Différence; 2006, Tavira ; 2022 e 2023, Atelier-Museu
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F. Calhau Não há lugar para desperdícios 7- 12 -96
FERNANDO Calhau é pintor e preside à Comissão Instaladora do Instituto de Arte Contemporâne. Tem uma longa embora discreta carreira nesta área, já que trabalha há vinte anos na administração pública do sector das artes plásticas, designadamente na antiga Direcção-Geral de Acção Cultural, extinta com a «reforma» de Santana Lopes. Aliás, essa dupla condição de artista e agente cultural, ou gestor cultural, iniciara-a já antes com a participação nas direcções da Cooperativa Gravura e da Sociedade Nacional de Belas Artes. Nasceu em Lisboa em 1948 e licenciou-se em 1973, tendo feito uma pós-graduação na Slade School de Londres, como bolseiro da Gulbenkian.
Observa-se no caso de Fernando Calhau, como acontece com Margarida Veiga, que também chefiou a Divisão de Artes Plásticas da antiga SEC e dirige agora o Centro de Exposições do CCB, uma curiosa situação de continuidade de percursos que atravessaram muitos governos diferentes, mas ele sublinha que «pela primeira vez há um reconhecimento por parte do Governo da importância desta área da arte contemporânea, que era tratada como parente pobre».
Por outro lado, Fernando Calhau tem também um extenso «curriculum» como coleccionador institucional, tendo integrado as comissões de compras da SEC e da Fundação de Serralves, e mantem-se ainda à frente da colecção da Caixa Geral de Depósitos, considerando que apenas existirá uma incompatibilidade de funções no caso de vir a ser convidado para a presidência do IAC.
Na rede dos serviços do actual Ministério da Cultura, a intervenção no domínio da arte contemporânea, que antes fora incluida nas competências do Instituto Português de Museus, deu lugar a um novo Instituto, cuja lei orgânica se aguarda. Não será, diz F. Calhau, uma instituição burocrática devoradora dos seus proprios recursos financeiros, mas uma estrutura ligeira. Nem terá funções de coordenação ou tutela sobre outras entidades da mesma área da criação contemporânea, como os museus do Chiado, com o seu futuro pólo de Alcântara, e de Serralves, no Porto, ou o Centro Cultural de Belém, onde ficarão em depósito as peças da Colecção Berardo que não couberem no Sintra Museu de Arte Moderna e que será igualmente o destino do novo programa de aquisições agora anunciado.
EXPRESSO — Quais são os objectivos da intervenção pública no campo da arte contemporânea?
FERNANDO CALHAU — Há duas linhas de actuação principais: uma tem a ver com o apoio à criação e outra com a comunicação e o público. Quanto à criação, temos linhas de apoio directamente aos criadores e de apoio à produção de exposições, e temos também linhas de actuação no que respeita ao mercado e à comercialização.
EXP. — Como entende o IAC a relação entre o Estado e o mercado privado?
F.C. — O mercado de arte deve ser essencialmente privado. Mas sendo o campo das artes plásticas particularmente sensível, porque não existe um público muito alargado, é fundamental que o Estado dê uma ajuda e motive o mercado nesta área. Isso será feito, em termos internos, através do programa de aquisição de obras de arte, e em termos externos, nas feiras de arte, com um duplo objectivo, não só de lançar artistas no meio internacional, como de alargar os meios do mercado nacional.
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o capital cultural
DESENHOS DE MODIGLIANI
ENCONTROS AFRICANOS
Culturgest/CGD - EXPRESSO 7 jan 95
Caso único entre nós de grande mecenato de empresa, a CGD, através da Culturgest, iniciou ontem o ano pós-capital cultural com duas importantes inaugurações internacionais: «Modiglini — Desenhos da Colecção Paul Alexandre», uma exposição que teve a sua estreia em 1993 no Palácio Grassi de Veneza e que no último ano se apresentou na Royal Academy de Londres, no Museu Ludwig de Colónia e ainda em Bruges e Tokio, e «Encontros Africanos», uma co-produção do Instituto do Mundo Árabe, de Paris, e da Fondation Afrique en Création, também já mostrada em Joanesburgo, e que reune artistas do Magreb e da zona sub-sahariana.
A primeira reune 250 trabalhos (desenhos e aguarelas) dos primeiros anos da obra de Modigliani, entre 1906, data da sua chegada a Paris, e 1914, com o interesse particular de permitir acompanhar exaustivamente a definição do estilo próprio do pintor, através de séries completas de estudos e de pesquisas temáticas. Em Lisboa, a exposição foi ainda acrescentada com uma secção dedicada a Amadeo Souza-Cardoso, documentando a amizade entre os dois artistas, a sua exposição conjunta de 1911, no atelier do português, e as possíveis influências mútuas entre as suas obras.
Amigo e primeiro mecenas de Amedeo Modigliani, o médico Paul Alexandre conservou na sua posse, até à morte em 1968, uma acervo de desenhos que é um documentário sem paralelo sobre a evolução e a coerência de uma pesquisa plástica pessoal. Reagindo à fama póstuma de Modigliani, morto em 1920 e imediatamente apresentado como exemplo romantizado do artista boémio, de vida atormentada e autodestrutiva, Paul Alexandre manteve sempre o projecto de escrever uma outra biografia fundamentada pelo seu conhecimento directo do pintor. A revelação dessa extensa colecção de desenhos e também de fotografias e outros documentos biográficos, reunidos num volumoso livro-catálogo importado pela Culturgest, viria no entanto a caber ao seu filho, Noel Alexandre, com a presente exposição.
Os retratos, os nús, como estudos académicos ou desenhos de observação, os desenhos de cariátides e de cabeças esculturais, estes marcados pela descoberta da arte africana e pela influência de Brancusi, constituem os sucessivos núcleos da mostra.
Depois de, há um ano, a Culturgest ter apresentado os desenhos de Egon Schiele, seu quase exacto contemporâneo, esta é uma outra oportunidade de revisitar uma obra feita voluntariamente à margem dos estilos colectivos do tempo, num momento em que as vanguardas pareciam aplicadas no puritano exercício de fazer desaparecer do campo da arte a experiência do corpo. Nesta medida, e também enquanto redescoberta da importância do estilo individual e do talento ou dom artístico, que se exprime num modo particular de captar o visível e o vivido, Modigliani pode ser visto hoje como um dos polos essenciais de uma linhagem afinal ininterrupta que passa por Soutine, Picasso, Giacometti, Balthus, Bacon, Freud e Aricka.
Entretanto, a coincidência das duas exposições no mesmo local permite também reflectir sobre o significado de dois momentos decisivos do encontro da arte de tradição europeia com outras expressões culturais: na obra de Modigliani, primeiro, enquanto exemplo do interesse formalista pelos códigos não realistas da «arte negra» e, hoje, como abertura à alteridade e questionamento do olhar etnocêntrico.
«Encontros Africanos» é uma iniciativa nascida na sequência de «Magiciens de la Terre» (Centro Pompidou, 1989) e que em parte responde a algumas das críticas que provocou essa mostra. No caso presente, a que Jean-Hubert Martin está também associado, a responsabilidade da selecção dos autores representados foi confiada a dois artistas africanos e o projecto constitui uma interrogação eficaz sobre as diversas possibilidades de compreensão e de relacionarmento com a produção artística não europeia.
Farid Belkania, um marroquino com formação artística europeia, seleccionou através de uma pesquisa feita na África negra quatro artistas da Costa do Marfim, da Etiópia, Kénia e Benim, cujo trabalho está profundamente enraizado em tradições regionais, sendo indissociável de práticas religiosas, terapêuticas e de revelação cósmica ou de expressão dita «naif». Pelo contrário, a escolha feita por Abdoulaye Konaté, um artista do Mali com formação escolar em Cuba, incidiu sobre os países do Magreb (Argélia, Egipto e Tunísia) e sobre artistas que têm circulação internacional ou adoptam processos criativos (já) informados pela tradição ocidental.
As questões da autonomia, miscigenação e hegemonia cultural, ou da recontextualização das produções africana como objectos integrados pelo seu exotismo na diversidade da arte contemporânea, e, em alternativa, da identificação e preservação de tradições regionais, eventualmente como polos de uma irredutível verdade da arte, são bem afirmadas por esta mostra e prolongam-se ainda em dois debates de grande interesse recolhidos no catálogo original, a que a Culturgest acrescentou ainda um artigo de José António Fernandes Dias publicado no «jornal da exposição».
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ENCONTROS AFRICANOS
21-01-95
Atrasos imputáveis a um dos coprodutores da exp., a Fondation Afrique Création, não permitiam ainda, na semana que passou, mostrar todos os artistas anunciados (aguardavam-se as obras de Kivuthi Mbuno, uma das presenças mais fortes da montagem que se pôde ver no Instituto do Mundo Árabe, em Paris). O catálogo original, que inclui textos indispensáveis para compreender a originalidade e a radicalidade deste projecto, não estará igualmente disponível, por não cumprimento das relações contratuais estabelecidas com a Culturgest.
MODIGLIANI e ENCONTROS AFRICANOS
11-02-95
Duas exp. de circulação internacional, a primeira revelando um nome mítico do modernismo, através de um extenso acervo de desenhos que permite assistir à gestação do seu estilo, e, em particular, ao confronto com a descoberta da «arte primitiva»; e uma segunda, uma colectiva de artistas africanos de hoje, que, por coincidência, permite reflectir sobre uma muito recente revisão da problemática do multiculturalismo. Ao apresentar, como artistas contemporâneos de parte inteira, autores africanos que prosseguem tradições regionais ligadas a práticas cultuais, mágicas e terapêuticas, transferidos ou não para suportes de influência europeia, um dos seus comissários, o marroquino Farid Balkahia, propõe uma concepção da gravidade da arte que desautoriza as leituras formalistas a que os «primitivos» continuam a ser sujeitos e também a generalidade das iniciativas expositivas assentes na globalização da informação.
ENCONTROS AFRICANOS
25-02-95
Quanto a «Encontros Americanos», trata-se de uma abordagem da questão da multiplicidade cultural que tem o mérito de cair na moda e nos logros do multiculturalismo, com que o centro se recentra devorando as diferenças emergentes da periferia — esta não é uma exp. «politicamente correcta». Dedicada à produção africana e confrontando dois olhares africanos, do Magrebe e da África Negra, a exp. revela algumas obras de grande interesse e coloca problemas de real importância, quando restringe a escolha da produção do sul a obras marcadas por funções sociais e por expressões tradicionais, ligadas à magia e à intervanção terapêutica, mas entendendo-as, por isso mesmo, como plenamente integradas na contemporaneidade. Não é o exotismo que com essa selecção se promove, mas, pelo contrário, a compreensão da respectiva identidade com uma tradição essencial da produção ocidental, numa linhagem múltipla que passa por Malevitch, Klein, Beuys ou Tapiès.
Posted at 09:40 in 1995, Africa, Arte Africa, CGD, Culturgest | Permalink | Comments (0)
5 jan 94–
«A Máscara, a Mulher e a Morte: Resistências Poéticas» , Culturgest/CGD: "Visões / ficções"
ARTE BELGA
Culturgest -EXPRESSO 09-04-1994
Não é apenas o contacto directo com obras históricas — Wiertz, Khnopff, Magritte, Broodthaers, etc — que assegura a importância excepcional desta exp., mas também a possibilidade de contestar uma história canónica de tradição francesa que se construiu sobre o escamotear de obras não redutíveis ao «progressismo» positivista de um caminho linear (realismo-impressionismo-Cézanne-cubismo-abstracção...) exigido pelas leituras formalistas e essencialistas da modernidade. Com a ocultação do simbolismo (que teve uma das suas afirmações mais estruturadas em Bruxelas, com outro polo nos Salões Rosa Cruz de Sâr Paladan, em Paris, entre 1892 e 1897) é a questão do sentido que foi sendo desvalorizada em no terreno das artes plásticas em favor de uma crescente e cada vez mais esvaziada auto-referencialidade da arte — a confrontar com a exp. «Pulsares», no CCB, que constitui um exemplo paradigmático e terminal desse destino. Os núcleos temáticos explicitados no título, «A Máscara, a Mulher, a Morte», não configuram uma estratégia ilustrativa; definem, pelo contrário, através da passagem pelo surrealismo não ortodoxo e do encontro com três autores contemporâneos (Charlier, François e Corillon), uma leitura das «resistências poéticas» que podem estar na base de atitudes criativas actuais e produtivas.
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JULIO GONZÁLEZ
Culturgest/CGD - EXPRESSO 20-04-94
Depois de ter mostrado os desenhos de Modigliani e de Egon Schiele, a Culturgest apresenta a obra gráfica de outro artista da primeira metade do século e que com o primeiro partilhou círculos parisienses. Os desenhos vêm da colecção do Centro Rainha Sofia, de Madrid, e são testemunho de um itinerário particularmente atípico, em grande parte justificativo do seu relativo e injusto desconhecimento internacional até tempos recentes. González nasceu em Barcelona em 1876 e instalou-se em Paris em 1900 seguindo uma honrada carreira de ourives e de pintor, até se revelar, já no final dos ano 20, como um dos mais inventivos escultores do século, responsável por um inédito entendimento escultórico do vazio e por novos processos de soldadura do ferro que associaram desenho e escultura. A colecção distribui-se por um horizonte cronológico que vai de 1904 a 1941 (JG morreu no ano seguinte), documentando toda uma produção inicial cujo classicismo é identificável com o «noucentismo» que em Barcelona sucede a um modernismo Arte Nova, antes do desenho se afirmar especialmente como um meio de experimentação para o trabalho da escultura. Entretanto, a montagem da exposição revela-se particularmente sugestiva ao iniciar-se por um conjunto de auto-retratos tardios que reafirmam a autonomia própria do desenho e terminar com a expressividade dramática dos últimos estudos para a figura de Monserrat, enquanto a zona média exemplifica extensamente a pesquisa formal conduzida na fronteira da abstracção. Através de um balanço constante entre tradição e inovação, entre o desenho do natural e o projecto analítivo-construtivo, entre o visto e o estilizado, sempre conduzido à margem das afirmações de virtuosismo, o percurso de González não se deixa reduzir à condição de um «desenhador de novas formas».
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COLECÇÃO COBRA
Culturgest/CGD - 20-01-96
Uma exposição histórica de uma rara dimensão e importância no panorama expositivo nacional, a que convirá reconhecer também uma pouco comum capacidade de questionar o presente — e um forte sentido de oportunidade, portanto. A mostra, vinda de um dos mais dinâmicos museus europeus, o Stedelijk de Amsterdão, reconstitui a breve irrupção do grupo Cobra (activo como movimento entre 1948 e 1951) e acompanha ainda os percursos individuais dos seus artistas até ao final da década de 50, enquanto se prolonga a sua eficácia profunda e se definem as suas expressões individuais próprias, quer isoladamente quer mediante outras movimentações colectivas: por exemplo, Asger Jorn e Constant foram participantes activos da Internacional Situacionista, até esta se converter num grupúsculo orientado para a intervenção política. Em paralelo com a afirmação da 2ª Escola de Paris e a academização da sua abstracção lírica, o grupo Cobra, através das contribuições trazidas de culturas artísticas periféricas (nórdicas, holandesas e belgas) e de uma convergência de vontades experimentalistas (a «Internacional dos Artistas Experimentais»), serviu de agente indisciplinador de um período atravessado por um subterrâneo cruzamento de inquietações onde se encontram a valorização das expressividades marginais (populares, das crianças e dos loucos), contribuições surrealistas e atitudes antiformalistas, preocupações sociais e a defesa da expressão livre e pessoal contra os vários impasses programáticos do tempo. Segunda vaga do expressionismo primitivista, segundo a expressão usada por Willemijn Stokvis no catálogo (na sequência do expressionismo alemão dos anos 10), os artistas do grupo Cobra tiveram uma influência profunda na problematização da dicotomia entre abstracção e figuração então dominante e também na reafirmação de algumas condições essenciais (mas não essencialistas) da criação artística. Entretanto, esta exp. pode ser igualmente lida como afirmação do interesse das histórias e dos itinerários artísticos vividos, quer em situações de periferia geográfica (sem as marcas da procura de exotismo que caracteriza muito multiculturalismo actual) quer à margem das sínteses canónicas da «evolução» da arte. O contacto com as obras reunidas do grupo Cobra, com a sua inventividade indisciplinada e libertadora, com as suas procuras individuais da expressividade, surgirá menos como lição de história do que como reaproximação a necessidades e possibilidades certamente outra vez reprimidas sob o aparente predomínio actual do discurso especulativo.
02-03
Movimento sem programa nem carácter de tendência, o grupo Cobra trouxe à situação do pós-guerra a frescura da afirmação de alguns jovens pintores, o fermento das tradições poéticas de regiões periféricas, nomeadamente dos países nórdicos, e uma rebeldia de heterodoxa filiação surrealizante. Com a sua breve existência organizada e as suas carreiras individuais posteriores, os artistas Cobra reactivaram uma linha de fundo expressionista, sobre um novo primitivismo valorizador da criatividade popular e infantil, que contribuiu para pôr em causa a dicotomia figuração-abstracção. Se Asger Jorn, Robert Jacobsen, Alechinsky e Appel são artistas de destacada presença internacional, as obras de outros nomes de menor notoriedade cosmopolita testemunham de uma mesma urgência interventiva e, em especial, comunicativa. (JLP - Revista)
TOM WESSELMANN
Culturgest/CGD, 13-07-96
É um dos cinco nomes mais importantes da Pop Arte americana, embora essa notoriedade histórica e «escolar» não deva fazer ignorar que se trata acima de tudo de um pintor, como aliás também sucede nos casos de Lichtenstein e Rosenquist. A retrospectiva, que já fez uma larga digressão europeia e constitui um dos momentos mais marcantes do verão lisboeta, inclui obras de 1959 a 1993, desde logo com relevo particular para os pequenos trabalhos iniciais, significativos de uma evolução que vai da colagem-assemblage para a pintura, através de uma aproximação muito evidente às questões do desenho e da composição pictural de Matisse. Logo a seguir, é essa mesma linguagem apreendida que Wesselmann «actualiza» e amplia com o recurso às imagens da publicidade, mas revisitando metodicamente os géneros tradicionais do nu, da natureza morta, do interior e da paisagem — e o uso da publicidade e do quotidiano que constituem imagem de marca da Pop são também o retomar de fortes tradições vernaculares americanas. Dominando a composição espacial planificada (de modo a conservar a imagem à superfície do quadro) e também o conceito da colagem e a problemática da escala, W. não é um «pintor de pin-ups», apesar das mais rasteiras considerações moralistas que voltam a ter curso, mas um artista que retoma com a representação do corpo e a relação com o modelo a exploração do campo da pintura. A partir dos anos 80, nas obras recortadas em metal, a relação entre a pintura e o desenho orienta-se para uma autonomia crescente do segundo, com maior facilidade decorativa, mas é ainda à pintura que W. presta homenagem nas referências a Cézanne, Léger, Matisse e Mondrian com que a exp. se encerra. É pena que só se encontrem acessíveis catálogos estrangeiros, embora o «jornal da exposição» que inclui uma mesa-redonda entre quatro mulheres-artistas constitua um curioso documento sociológico.
07Set.96
Últimos dias de uma exposição retrospectiva que apresentou em Portugal a obra de um dos nomes maiores da Pop norte-americana. Para além da característica genérica da utilização das técnicas mecânicas e impessoais da arte comercial ou da publicidade, que definiu a «ruptura» trazida pelo novo estilo em relação ao expressionismo abstracto anterior (mas que é também a recuperação de alguns exemplos da tradição vernacular americana), a obra de T.W. tem também a particular qualidade de demonstrar que a Pop Arte é um movimento muito mais rico e complexo do que as sínteses escolares deixam adivinhar — e, em especial, que é irredutível às condições da cultura popular dos anos 60 ou ao modelo único de Warhol. Sob a aparência imediata de um imaginário ligado ao erotismo de consumo, as «pin-up» de Wesselmann eram a versão contemporânea das odaliscas de Ingres e Matisse, numa pintura reconquistada a partir do exercício da colagem e marcada pela influência forte de De Kooning, apesar do abandono da factura gestual. Das pequenas colagens ìniciais, raramente mostradas, às «assamblages» visíveis como «ambientes», a três dimensões e com inclusão de objectos e mobiliário real, sobre uma metódica reapropriação dos géneros tradicionais (o nu, a natureza morta, os interiores e a paisagem), a antologia orienta-se depois para uma cobertura ampla de um mais recente formulário, onde o desenho é recortado sobre placas metálicas, procurando conservar uma clássica impressão de espontaneidade.
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NAM JUNE PAIK
Culturgest/CGD - EXPRESSO 05-10-96
«A super auto-estrada electrónica — Nam June Paik nos Anos 90» é uma grande exposição do pioneiro da video-arte, de origem coreana (Seul, 1932) e actual nacionalidade norte-americana, discípulo de Stockhausen, cúmplice de John Cage e militante do movimento Fluxus. A uma instalação de 30 trabalhos recentes («Cybertown») que se encontra em digressão norte-america — e tem Lisboa por escala única na Europa — acrescentaram-se reedições de algumas peças históricas, numa vasta síntese sobre a sua obra, onde a exploração das virtualidades das novas tecnologias da comunicação se cruza com o cepticismo próprio de uma visão paródica sobre as estratégias vanguardistas. A incorporação de meios informáticos e da Internet vêm actualizar com ironia um exercício que é o prolongamento do happening neo-dadaista, a que a imaginação formal e o humor das «assemblages» preserva do risco da mumificação. Um espectáculo feérico e delirante, mas também mais complexo do que pode parecer à primeira vista.
07-12-96
Últimos dias de uma mais das mais surpreendentes exposições do ano, desde logo pela espectacularidade dos meios envolvidos. «A super auto-estrada electrónica» é o Nam June Paik dos Anos 90, o artista-Fluxus e empresário que foi o inventor da video-arte e agora desestabiliza todas as certezas sobre o progresso das tecnologias, convertidas em lixo e em materiais de escultura, em monumento e em paródia.
outras circulações britânicas, como a exposição «From London», dedicada aos pintores da Escola de Londres (de Bacon a Kitaj), que terminou o seu itinerário em Barcelona, permanecem menos acessíveis na condição periférica em que Lisboa se mantém (embora a Culturgest, acrescente-se, tenha procurado acolhê-la), e permitem-nos uma alegre vertigem da novidade sem consequências que é a condição do diletantismo. Doherty, entretanto, «fala-nos» de coisas tão sérias como a guerra civil da Irlanda, recorrendo a duas «cenas» filmadas, de exibição paralela, e duas vozes-off, de audição entrecortada. Abreviando razões, o comissário Michael Tarantino informa que a obra «denuncia a estupidez de uma atitude que estabelece uma única forma de se olhar uma imagem, uma única maneira de definir os problemas políticos e religiosos da Irlanda, uma voz 'certa' e uma voz 'errada'». O nível do sentido da obra, acrescentado pelo comissário a um material informe e literal, não podia ser mais rasteiro, mas essa será certamente uma qualidade a atribuir a um novo neo-realismo sem ilusões ou ambições.
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Posted at 01:29 in 1994, 1996, CGD, Culturgest | Permalink | Comments (0)
1993
Imagens para os anos 90 (dd Serralves): INAUG. 6 dez. - nota 18 dez.
Egon Schiele, 100 aguarelas col. Sabarrsky: INAUG. 15 dez.
EGON SCHIELE
“Schiele, o maldito”
24 dez. 93 - p. 13
Cem aguarelas trazem-nos um artista maldito que foi uma das máximas expressões do modernismo vienense. A apresentação da obra de um clássico do século XX é um acontecimento de excepção, com que a Culturgest alcança o primeiro plano entre as instituições culturais e esconjura uma aparente condenação portuguesa à exterioridade das grandes circulações internacionais.
Schiele, hoje, é ainda o escândalo de uma sensualidade ao mesmo tempo dramática e provocante, cruamente inscrita em corpos atormentados pela violência do sexo e da morte. A memória das condenações do seu tempo não é, neste caso, uma informação anedótica, mas sim um convite a aprofundar o contacto com uma obra que continua a ser polémica: deverá notar-se que esta própria antologia apresentada por Serge Sabarsky, itinerante desde 1990 e feita de peças de colecções particulares americanas, não é inteiramente exemplar da manifesta obscenidade de tantos dos seus mais notávels desentos. O comissário e historiador é antes um paladino da “normalidade» de Schiele, como se pode ler no texto do catálogo, onde se esforça por distanciar a temática» daquilo a que chama “o talento» e «a forma de desenhar”: desse modo, a selecção e o comentário são ainda processos de repressão que dão sequência ao conhecido episódio da prisão de Schiele, em 1912, acusado de corrupção de menores e depois condenado por pornografia.
Se Klint perturbou antes a sociedade vienerse foi porque a sua obra vinha afirmar a relatividade da razão perante os paladinos da ciência e do progresso, em pleno recinto universitário. Schiele, contemporâneo de Freud, vai mais longe quando deixa o reino utópico do erotismo natural e estetizado do seu mestre para fazer do corpo nu um lugar de fascínio e uma ferida aberta, abismo de exasperação e angústia, onde mesmo a plenitude física pode ser já sinal de solidão e de morte. Os corpos amputados, as figuras descamadas, as peles doentias, as mãos angulosas, são aqui um exercício de desfiguração que é revelação de um misterioso e incontornável mal. (Até 13 Fev.)
Posted at 23:57 in 1993, 1994, 1995, 1996, CGD, Culturgest | Permalink | Comments (0)
(1) EXPRESSO 13/4/2002 "Uma colecção lusófona "
(2) EXPRESSO 4/5/2002 "Caixa económica"
(3) EXPRESSO 14-02-2004 "Novas peregrinações" A colecção CGD/Culturgest de artistas africanos
1. "Uma colecção lusófona "
EXPRESSO 13/4/2002
A Caixa Geral de Depósitos vai mostrar três anos de aquisições
«ARTE CONTEMPORÂNEA. COLECÇÃO CAIXA GERAL DE DEPÓSITO
(Inaugurações em Lisboa e Porto)
Depois de um intervalo de sete anos, a Caixa Geral de Depósitos vai voltar a apresentar publicamente a sua colecção, em duas exposições que se inauguram na próxima semana, em Lisboa e no Porto, preenchidas por cerca de 90 novas obras. As aquisições foram retomadas em Novembro de 2000, após uma paralisação de quase cinco anos, sob a administração de João Salgueiro, adoptando-se, a partir da presidência de António de Sousa, novos critérios de orientação propostos pela Culturgest, com um orçamento anual de 40 mil contos. As duas mostras correspondem às aquisições de três anos, incluindo as verbas de 2002.
Com a inauguração do núcleo a expor no Porto inicia-se também a extensão a esta cidade da programação da Culturgest, em parte do edifício da CGD na Av. dos Aliados, projectado nos anos 30 por Pardal Monteiro. Cedido no ano passado para actividades da Porto 2001, dispõe de um espaço de exposições, incluindo três casas-fortes na cave, e poderá acolher colóquios e outras sessões públicas, embora não tenha condições para espectáculos. Em 1993, foi igualmente com a primeira apresentação da Colecção CGD que se inaugurou a Culturgest em Lisboa.
A internacionalização das aquisições, com abertura aos países de língua portuguesa, surgirá como a mais evidente alteração do projecto da colecção, que já inclui um importante conjunto de artistas brasileiros e dois de Moçambique, Estêvão Mucavale e Shikhani. O acervo alargou-se também à fotografia, vídeo e instalações. Entretanto, singularizada pelo novo perfil lusófono, surgiram já solicitações para a sua apresentação no Brasil e em Espanha.
Orientada, por um período classificado como experimental, pela Culturgest - por Fátima Ramos, vice-presidente da respectiva administração, e António Pinto Ribeiro, director artístico -, sob a tutela de um administrador da CGD, a colecção passou a vocacionar-se para a criação mais recente e o acompanhamento da emergência de jovens artistas (em correspondência com o seu orçamento reduzido, que, com outras escolhas, poderia ser absorvido por uma única obra anual). A opção justificou a alteração do nome da colecção, trocando-se a designação arte moderna por arte contemporânea.
No Porto, expõem-se obras dos brasileiros Waltercio Caldas, Marcos Coelho Benjamim, Nelson Leiner, Rochelle Costi, Carmela Gross, Geraldo Barros e Caio Reisewitz (os dois últimos, fotógrafos), pintura de Jorge Martins, fotografias de Margarida Dias, Paulo Nozolino, José M. Rodrigues e Júlia Ventura, vídeo de Francisco Queiroz e instalações de Armanda Duarte e Baltazar Torres.
Em Lisboa estarão os brasileiros Lygia Pape, Tunga, José Damasceno, Leonilson, Ana Maria Tavares, Edgar Sousa, Jac Leirner, Daniel Senise, Adriana Varejão, Efrain Almeida, Walter Golfarb, Valeska Soares, Rosana Palazyan e Courtney Smith, os dois moçambicanos Estêvão Mucavale e Shikhani., mais Álvaro Lapa, Fernando Calhau, Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft, Pedro Portugal, Cristina Ataíde, Ilda David, Fernanda Fragateiro, Rui Serra, Fátima Mendonça, Joana Vasconcelos, Susanne Themlitz, Joana Rêgo, Leonor Antunes, Cristina Robalo, Rui Macedo, Sara Maia, Kiding (dois jovens artistas do Norte) e ainda Gérard Castello-Lopes, Graça Pereira Coutinho e João Luís Bento (fotografias).
A exposição será acompanhada pela publicação do inventário de todas as obras integradas no património da CGD desde a sua fundação em 1876, num total de 735 peças de 343 artistas (a mais antiga de 1842). Para além das peças adquiridas para decoração de instalações, cedidas em pagamento de dívidas ou com outras origens, o projecto de uma colecção de arte moderna data de 1983, inicialmente orientada por um quadro da empresa, António Nelson. Com a administração de Rui Vilar procedeu-se em 91 à reestruturação da colecção, ficando Fernando Calhau como responsável pelas aquisições, que foram expostas em 93 e 95. Por ocasião da Europália, Jorge Calado constituiu um núcleo de fotografias realizadas em Portugal por autores estrangeiros. É um novo capítulo da vida da colecção que as próximas exposições vão apresentar.
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"Caixa económica"
EXPRESSO 4/5/2002
Exposições em Lisboa e Porto mostram a nova direcção da Colecção CGD e três anos de compras
«ARTE CONTEMPORÂNEA. COLECÇÃO CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS. NOVAS AQUISIÇÕES»
(Culturgest, Lisboa e Porto, até Junho)
Na semana em que abriram as mostras simultâneas das novas aquisições da CGD, duas pinturas de Paula Rego expostas para venda em diferentes locais foram transaccionadas por cerca de 55 e 60 mil contos. Sabendo que o orçamento anual da colecção é de 40 mil contos e que a actual exposição é a soma de três anos, dispomos de elementos para identificar diferentes níveis do mercado de arte e diferentes modalidades de coleccionismo, privado e público.
A Caixa é económica nas suas compras e o modelo da colecção decorre dessa limitação, tal como acontece com a generalidade das colecções institucionais. O acompanhamento da actualidade galerística e, em especial, das emergências de novos artistas é o seu horizonte possível de actuação, sendo inacessível outra direcção mais selectiva apostada na incorporação de peças tidas por decisivas que se disputariam aos coleccionadores privados.
Assim, o que a Culturgest apresenta, na sua sede e nas instalações que inaugurou no Porto, é uma vasta exposição de «Arte Contemporânea», como indica o título e se procura conceptualizar com alguns problemáticos riscos teóricos no prefácio do catálogo. Com uma centena de obras, geralmente muito recentes, de cinco dezenas de artistas portugueses, brasileiros e moçambicanos, alargada à fotografia, ao vídeo (Francisco Queiroz, apenas) e às instalações. O que desde logo a singulariza, como exposição e apresentação da nova orientação da colecção, é essa abertura internacional que reúne artistas de língua portuguesa. É uma opção que tem o mérito de contrariar o fechamento nacional (ou a eventual «mundialização» arbitrária) de quase todas as colecções institucionais, que se articula com a atenção multiculturalista imprimida pela Culturgest à sua programação geral e que poderá favorecer a curiosidade exterior pelo acervo reunido.
Outras marcas de singularidade são reconhecíveis na exposição e no novo projecto da colecção, que além de económica é ecuménica: uma larga presença de mulheres artistas (14 em 30 nomes portugueses), talvez não por uma lógica de quotas mas como outra aposta na «diversidade cultural», e a presença significativa de artistas que se incluíram em exposições da Culturgest, como sucede com Jorge Martins, José M. Rodrigues, Armanda Duarte, Fernanda Fragateiro, Leonor Antunes, F. Queiroz.
Reconhece-se também a intenção de diferenciar esta colecção de projectos equiparáveis graças à imprevisibilidade dos nomes incluídos. Na sua deliberada diversidade cabem artistas de longo itinerário, como Álvaro Lapa, ou recentíssimas aparições, como João Luís Bento e a dupla Kiding; novas obras que se vêm juntar a núcleos já representativos na colecção, como as de J. Pedro Croft, Cabrita Reis ou F. Calhau, e outras que inauguram novas representações, como as de Rui Serra, Rui Macedo e Sara Maia; artistas sistematicamente favorecidos pelas instituições, outros que percorrem itinerários independentes e ainda outros que poderão ver-se como apostas próprias e exploratórias. Essa relativa independência face a lobies e opções críticas é uma simpática característica num universo com tendência à homogeneidade e decorrerá de a selecção estar a cargo de comissários não profissionais (Fátima Ramos e A. Pinto Ribeiro, da Culturgest).
Mas a essa positiva imprevisibilidade da selecção poderá também associar-se a suposição de algum carácter aleatório, se se considerarem nomes não incluídos nesta etapa de aquisições (Novembro de 2000-Fevereiro de 2002) que tiveram presenças destacadas no mesmo período. Uma possível lista de «faltas», de critério pessoal, incluiria pelo menos Augusto Alves da Silva, António Júlio Duarte, João Queiroz, Gil Heitor Cortesão e José Loureiro (já na colecção com obras de 94-95).
Entretanto, se as duas presenças de Moçambique, Mucavale e Shikhani, são ainda só indicativas de uma intenção, o largo panorama brasileiro, com 21 artistas, estabelece um idêntico horizonte de diversidade. Nele se incluem nomes de circulação já conhecida, como os de Geraldo de Barros (1923-98), Nelson Leirner, Lygia Pape, Tunga e Leonilsen (1957-93), e outros de recente projecção, como Caio Reisewitz ou Walter Goldfarb, enquanto vários casos prolongam trânsitos por Portugal (Daniel Senise) e também pela Culturgest (Efrain Almeida, Courtney Smith, Adriana Varejão).
A montagem, não organizada por regiões, rompe com o agora muito habitual isolamento das presenças autorais, propondo diálogos entre obras e confrontações de significados e intenções propícios a uma relação interrogativa com as criações, que certamente prolonga a própria lógica que presidiu à sua selecção (apesar de se dizer no catálogo que «a arte deixou de significar o mundo e se tornou auto-referencial»). É o que sucede, em Lisboa, logo no primeiro espaço, onde se associa um trabalho legível como pura especulação formal, de Cabrita Reis, à vontade de comentário social sugerida na impressão fotográfica de Rochelle Costi. A seguir, os cruzamentos de sentidos prolongam-se nas inquietas meditações fotográficas simétricas de Júlia Ventura e Graça Pereira Coutinho junto às contemplações negras de Calhau e Tunga; depois, nos diálogos do espectador com os espelhos reais ou imaginários de Nelson Leirner, Fátima Mendonça e Sara Maia, com passagem às referências à paisagem nas flores de Joana Rego, J. Luís Bento e Cristina Robalo.
No Porto, a Culturgest utiliza como espaço de exposições o átrio da sede da CGD (prolongado pelas quatro casas-fortes na cave), onde as qualidades arquitectónicas e decorativas do edifício projectado por Pardal Monteiro propõem um estimulante desafio de convivência com as obras. Entretanto, o catálogo reproduz imagens de todo o acervo da CGD (mais de 700 peças), de que esta já é a quarta exibição pública desde 1989. Tal como sucede com o prefácio dos comissários, que pretende ser uma reflexão teórica sobre a história da arte do século XX e a era «pós-média», aí se oferecem mais pistas para reflexão e debate.
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"Novas peregrinações"
A colecção CGD/Culturgest de artistas africanos
"Mais a Sul"
Culturgest, Porto, até 30 de Março - EXPRESSO/Actual 14-02-2004
As colecções públicas e privadas têm-se mostrado de uma flagrante monotonia; com escassas diferenças entre si, adoptam o programa sumário de seguir a actualidade nacional, ou a sua espuma, comprando jovem e barato e, em geral, o mesmo. A colecção da Caixa Geral de Depósitos, que é uma pequena colecção apesar do gigantismo da instituição, saiu da rotina quando em 1999, já sob a orientação da Culturgest, passou a ter como horizonte alargado a arte dos países de língua portuguesa. É uma opção coerente com uma programação que tem dedicado atenção à produção cultural de origens não europeias (incluindo, já em 1995, a exposição francesa «Encontros Africanos»). Por outro lado, à falta de políticas oficiais de cooperação cultural, para além de um frágil esforço de sobrevivência do espaço linguístico, é uma direcção com sentido estratégico num país que parece não resolver os complexos do seu passado colonial e que raramente pensa a cultura ou a arte como algo mais do que ostentação e desperdício.
O domínio brasileiro teve já razoável relevo na apresentação da colecção que se fez em 2002, e a vertente africana, então reduzida a dois nomes (Mucavale e Shikhani), alargou-se o bastante para se apresentar agora numa exposição própria. São 13 os artistas reunidos sob o título «Mais a Sul», seis de Moçambique, outros tantos de Angola e um de Cabo Verde, alguns com anteriores presenças entre nós e outros desconhecidos, com formação e carreiras europeias ou com circulação restrita aos países de origem, por vezes com raízes em tradições populares. Esta diversidade assegura-lhe a qualidade imediata de ser uma mostra imprevisível, onde se atravessam fronteiras que não são só geográficas e se fazem vacilar os critérios habituais de validação das obras, convidando o visitante a descobrir e interrogar o que se expõe e não a seguir um guião preestabelecido. Por sinal, é também uma mostra que suscita uma significativa afluência de público.
Ao cruzarem-se trabalhos que podem ser caucionados por padrões vindos das abordagens etnológicas com outros que ambicionam integrar-se nos circuitos de reconhecimento dos centros artísticos, que a dinâmica da globalização torna mais poderosos do que nunca, põe-se à prova o que na retórica dita multicultural e pós-colonial continua a ser uma atitude de absorção e exclusão definida «mais a Norte». Há que lamentar, entretanto, que apenas se tenha publicado um folheto reduzido a sintéticas notas biográficas, quando importaria informar sobre os contextos artísticos representados e justificar opções selectivas que foram realizadas a partir de um trabalho original de prospecção no terreno, para além de ser oportuno estruturar alguma memória sobre o que tem sido a circulação de artistas africanos em Portugal. Por outro lado, é óbvio que a criação de uma colecção deste tipo tem condições para se prolongar numa acção de intermediação internacional, orientada para os países de origem e para outros espaços geográficos, o que exige instrumentos adequados de representação.
FOTO
Estêvão Mucavale, «Montanhas de Moçambique»
Malangatana (n. 1936), que comparece com uma pintura de 1967 onde se faz referência à sua prisão política, é o mais conhecido dos artistas e dá testemunho do que foi a procura de uma possível autenticidade popular africana, transferida para a pintura com grande voluntarismo autodidacta e alguma absorção de referências do surrealismo e dos realismos fantásticos, atingindo por vezes uma dimensão plástica muito poderosa. A esse padrão de negritude oficializada, muito influente em Moçambique, escapam as paisagens transfiguradas, desertas e monocromas de Estêvão Mucavale (n. 1941), pintor de origem «naïf» que se profissionalizou na África do Sul, e também as figuras esculpidas em barro por Reinata Sadimba (n. 1945), artesã de etnia maconde que desenvolveu uma obra visionária e original de grande interesse. Shikhani (n. 1934) é outro artista com identidade própria.
O único representante de Cabo Verde, Tchalé Figueira (n. 1953), é um pintor com estudos artísticos em Basileia, já com anteriores exposições em Lisboa (na Galeria Novo Século), que imprimiu à sua temática africana referências dos neo-expressionismos dos anos 80, com apreciável fluência.
O panorama angolano que se expõe é muito marcado pela diáspora, mostrando uma pluralidade de direcções de trabalho individual. Fernando Alvim (n. 1963), com carreira feita a partir da Bélgica, é o artista mais conhecido, documentando-se aqui a passagem de uma pintura com qualidades à instalação, numa peça que transporta outros estereótipos culturais. Miguel Petchkovsky (n. 1956), que estudou em Portugal e em Amsterdão, na Rietveld Academie, igualmente cineasta, e Alex (n. 1974), pintor também com formação na Holanda, têm presenças que se relacionam positivamente e de diferentes modos com o seu país a partir de aprendizagens exteriores.
Paulo Capela, angolano de origem congolesa (n. 1947), é uma figura singular do interior, autor de acumulações instaladas de objectos e documentos heteróclitos. Está presente com vastos conjuntos de envelopes de correio que ostentam pequenas pinturas com personagens e cenas de estereótipos africanos, que se vêem como uma posição paródica ou crítica face a um imaginário de folheto turístico.
Viteix (Vítor Teixeira, 1940-1993), doutorado em estética em Paris e artista com uma extensa circulação internacional, é outra das presenças estimulantes, a quem a Culturgest dedicará já em Abril uma mostra retrospectiva.
Posted at 14:59 in 2002, CGD, Colecções | Permalink | Comments (0)
ARTE MODERNA II, Culturgest/CGD
Expresso 25-03-95 (nota)
Apresentação de um segundo núcleo da Colecção da CGD, com obras de Helena Almeida, Batarda, Bertholo, Bravo, Alberto Carneiro, Lourdes Castro, Dacosta, Escada, Jorge Martins, Menez, Pomar, Paula Rego, Rodrigo, Ângelo, João Vieira e Pires Vieira (a inaugurar na 3ª feira às 18h). No catálogo, parece classificar-se este grupo de artista como uma espécie de «segunda divisão», em relação ao primeiro núcleo da Colecção mostrado há pouco mais de uma ano. Com efeito, Fernando Calhau, responsável pelas aquisições, escreve no catálogo que «nesse primeiro conjunto dava-se conta
de um sector da Colecção centrado num núcleo de autores que têm problematizado, com maior eficácia e visibilidade, os caminhos da modernidade.» Além da alegada «maior eficácia e visibilidade», os mesmos autores, «que (significativamente) construiram o seu percurso após 1974», teriam marcado «a internacionalização da arte portuguesa». Se tais fórmulas revelam, pelo menos, uma total inabilidade e deselegância, no momento e no lugar em que se publicam, sucede também que o juízo crítico que eventualmente as sustenta (ou será antes um «juízo» geracional, ou de grupo?) se afigura muito mal fundamentado nos comentários propostos como «Itinerário para uma exposição».
Alguns exemplos: a respeito de Paula Rego (e da «maior parte dos artistas presentes») aponta-se «a mistura de referências portuguesas com as referências culturais que surgiram da Pop Arte»; uma obra de René Bertholo é considerada «certamente representativa da arte cinética»; de Jorge Martins diz-se que «sempre aliou a paixão pelo racionalismo francófono a um interesse particular pela arte do post-expressionismo americano» e que «é patente no seu trabalho a dimensão cosmopolita tributária das suas longas permanências no estrangeiro». A polémica em torno desta exp. está
assegurada, mas vale a pena alargá-la à consideração das razões de fundo de uma situação mais geral de que ela é, apenas, um descuidado emblema.
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Lacunas, eixos e rupturas
ARTE MODERNA 2
Culturgest/CGD
EXPRESSO 01-04-95
É prática comum a constituição de colecções de arte por parte dos bancos e outras empresas, com as quais se cumprem, em geral confidencialmente, objectivos de decoração das instalações, de representação sumptuária e de investimento. A essas muito legítimas razões, que suportam parte essencial do mercado e da produção de arte, a CGD acrescenta a responsabilidade de uma intervenção mais ambiciosa, dando publicamente conta das suas aquisições e atribuindo-lhes uma lógica para-museológica.
Depois de uma mostra inaugural em 1989, a CGD procedeu a uma redefinição de critérios da colecção; apresentou em 1993 um primeiro núcleo de obras reunido sob o título «Arte Moderna em Portugal» e expõe agora um segundo conjunto. Num país sem museus estatais de arte contemporânea e com raras colecções públicas, a iniciativa é sem dúvida meritória, absolutamente respeitável para lá das polémicas que podem justificar os textos dos respectivos catálogos.
Acrescente-se ainda, como genérica reflexão, que uma colecção — por maioria de razão se for privada (ou de empresa, mesmo pública) — não deve nem pode ser consensuamente construida, procurando representar tudo e todos, e seria tão igualmente legítimo seguir um plano de aquisições dedicado à escultura em pedra como à pintura monócroma, às instalações multimédia como ao tema da paisagem, à emergência de novos artistas como a quatro ou cinco consagrados. Ninguém tem, afinal, nada com isso. E será só da soma ou da concorrência das diferentes colecções individualizadas que surgirá a possibilidade de equacionar, sempre ao sabor das permanentes revisões históricas, uma representação momentaneamente universal. Muito mais do que a «abrangência» e os compromissos tácticos, importará a coerência determinada de um gosto ou de uma opção programática, assumidas por um empresário «amador» de arte ou um «expert» contratado.
Em 1993, a colecção da CGD foi apresentada por Fernando Calhau como «fundamentalmente vocacionada para a arte dos nossos dias, acompanhando as tendências emergentes no meio artístico e mantendo uma constante actualização». Aqui se disse então, criticando não a definição de um critério mas as insuficiências dessa definição, que «a arte dos nossos dias» só na superficialidade das aparências e das cumplicidades momentâneas coincide linearmente com «as tendências emergentes». Aliás, não era já de emergências que se tratava, mas da «consagração» institucional de artistas que, desde as décadas de 70 e 80, alegadamente «tiveram ou (têm) um papel fulcral ou paradigmático, como figuras centrais e polarizadoras». Na mesma linha de comentário crítico, sugeria-se que a raridade do coleccionismo de vocação pública e a riqueza dos meios da CGD justificariam uma ambição menos conjuntural e imediatista.
Alguma evolução parece ter-se registado, entretanto, na orientação da colecção. Pelo menos, na apresentação do seu segundo núcleo de obras (ignorando agora as apreciações infelizes incluidas no catálogo, aqui referidas há uma semana) surge justificado o programa das aquisições e da exposição com o objectivo duplo de «corrigir lacunas existentes na colecção» e de apresentar «um grupo de artistas que traçaram os eixos e as rupturas das décadas de 60 e 70».
Os artistas expostos são Helena Almeida, Eduardo Batarda, René Bertholo, Joaquim Bravo, Alberto Carneiro, Lourdes Castro, António Dacosta, José Escada, Jorge Martins, Menez, Júlio Pomar, Paula Rego, Joaquim Rodrigo, Ângelo de Sousa, João Vieira e Pires Vieira. As obras distribuem-se cronologicamente entre 1958 e 1992, desde a abstracção geométrica tardo-mondrianesca de Rodrigo, em 58, até uma recentíssima figuração que dialoga com referências clássicas, na pintura de Menez, de 91-92.
O conjunto, se de conjunto é possível falar mais do que como ocasional vizinhança, é obviamente muito diversificado quanto aos itinerários estéticos prosseguidos e às notoriedades reconhecidas, e de alguns dos artistas se poderia dizer, com tanta ou tão pouca justeza, que «traçaram os eixos e as rupturas» também das décadas de 40 e 50, e certamente, porque muitos deles estão activos, traçam os dos anos 80 e 90. Paradoxalmente, perante o programa anunciado, notar-se-á que é afinal destas duas últimas décadas que datam todas as obras expostas de Batarda, Bravo, Dacosta, Martins, Menez e P. Rego, e também grande parte das restantes. Terá algum sentido apresentar rupturas de 60 e 70 com obras em geral posteriores e que contradizem as propostas então formuladas?
Não há, como é óbvio, nenhuma coerência programática nem cronológica neste conjunto de autores e obras, e valeria certamente a pena assumi-lo sem complexos. A consistência do conjunto poderia situar-se apenas na circunstância temporal das aquisições, que a iniciativa da exposição não deveria criticar-se por isso. E nenhuma tentativa de legitimação teórica importa mais do que a eficácia eventualmente alcançada pela proximidade, dialogante ou contraditória, das obras expostas — ou que a afirmação de algumas de entre elas como situações irredutíveis aos momentos colectivamente definidos.
Esqueça-se então a roupagem justificativa, para sublinhar que a exposição, na sua manifesta diversidade e na aleatoriedade das aquisições, conta com trunfos suficientes para impor a sua efectiva importância. Observe-se o processo da desocultação das imagens e dos sentidos a que se assiste nas três pinturas sucessivas de Menês, ou a revisitação, na busca conjuntural de um novo realismo, da tradição dadaista e surrealista da acumulação e da caixa, com Lourdes Castro (1962), ou a descoberta de singularidades tão poderosas como as três telas de Dacosta (83-6), ou os recortes em papel de José Escada com que brinca com a indistinção entre abstracção e figuração (68), ou as duas pinturas quase-monocromáticas e certamente inéditas de Batarda (sem título e sem data, o que é estranho).
Importam, nesta e em qualquer exposição, algumas obras — e outros farão escolhas diferentes... Mas importa também rejeitar em absoluto a grelha de legitimações pseudo-historicistas, guiada pelas ideias pobres das lacunas e das rupturas, subordinando emoções e sentidos, invenções e interrogações a um formulário que substitui as pequenas estratégias de ocasião à capacidade de ver. E é impossível separar essa mesma ineficácia teórica da surpreendente sucessão de equívocos que se pode ler nos textos do catálogo e do «jornal da exposição». À lista esboçada na semana anterior somem-se a comparação Lourdes Castro-Jeff Koons, a Pop Arte de Paula Rego e de L. Castro, a «nova figuração» de Dacosta, a «pintura culta» de Batarda, por exemplo.
As lacunas existem só nos universos finitos das cadernetas de cromos, não numa coleção aberta. E as rupturas, versão «soft» das revoluções ou sobrevivência empobrecida das seriações de «ismos», contraditam-se na sua própria sucessão, sem progresso, como se sabe. Ou então, isolando obras individuais, apontem-se como verdadeiras lacunas a ausência das sombras recortadas de Lourdes Castro, das pinturas de René Bertholo (antes e depois dos objectos com movimento), das colagens anteriores de Paula Rego e das suas últimas pinturas (e se não for a CGD a disputá-las às empresas inglesas quem o fará?). São alguns exemplos que permitiriam pensar com proveito a ideia de ruptura, mas no interior de cada uma das produções autorais que se impõe como obra e não só como sucessão e reiteração de achados.
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ARTE MODERNA 2 - 29-04-95 (nota)
Num segundo núcleo da colecção da Caixa reunem-se, em geral, autores com forte presença na arte portuguesa desde o início dos anos 40, embora com obras datadas em geral das décadas de 60 a 80. Alguma incerteza na aquisição das obras faz-se por vezes notar, mas, mesmo assim, o conjunto tem uma qualidade museológica global que ultrapassa a de outras colecções públicas e que faz desta exp. um acontecimento de excepcional importância. Noutro plano de considerações, esta mostra permite identificar um muito curioso confronto entre o circunstancial discurso de legitimação escrito para o catálogo e outros discursos que a presença das obras autorizam ao espectador interessado. Mas o mais interessante que aqui sucede, a partir de uma não controlada oportunidade de ver, num mesmo lugar — num itinerário não disciplinado pela cronologia nem subordinado ao reducionismo fácil da ideologia da novidade —, obras que representam situações de maturidade e continentes autorais afirmados num tempo próprio ao lado de outras que importam como documentos de um suposto processo evolutivo global que as obras individuais apenas ilustrariam, é a desmontagem em acto das abordagens mais usuais e mais empobrecidas sobre o objecto artístico. As grandes obras são indisciplinadas e vivem as suas próprias mutações (em relação com o seu tempo, mas com uma necessidade própria) segundo sensibilidades próprias e problemáticas irredutíveis a uma história feita por décadas, estilos, rupturas e fórmulas críticas; as outras são obras irremediavelmente menores que só existem enquanto exemplos episódicos, ilustrações, de um exercício que tem do tempo uma noção jornalística. Entretanto, esclareça-se que os dois quadros inéditos, sem título e sem data, de Eduardo Batarda são trabalhos escolares do Royal College of Arts de Londres realizados entre Outubro de 1971 e Janeiro de 1972.
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ARTE MODERNA 2, 20-5-95
Abrindo com uma tela de Paula Rego, de 1984 (exemplar único na colecção, já adquirido na década passada...), a exp. desconstroi no seu efectivo percurso a proposta de leitura formulada nos textos que a acompanham — os «eixos e as rupturas das décadas de 60 e 70» não são mais que etapas de uma vulgata que dissolve a obra dos artistas numa sucessão progressiva de estilos colectivos, ou só de inovações (aliás, em geral, de importação de inovações), que ilustrariam o «progresso» da arte. A pessoalíssima figuração narrativa de "The Mosquito House", que deve menos à Pop Arte que a Dubuffet, aos Cobra e às ilustrações de livros infantis, ou as últimas telas de Menez e o regresso à pintura de Dacosta, ou Jorge Martins e Batarda, colocam problemas mais incontornáveis e mais abertos ao futuro do que as obras que exemplificam a abstracção geométrica, a não-objectualização, a desconstrução do objecto-quadro ou a auto-referencialidade da superfície. Através dessa resistência de alguns artistas, por vezes expressa nas contradições ou «rupturas» da sua própria obra, à linearidade dos estilos e das cronologias simplistas, demonstra-se a dualidade de alternativas que se colocam a esta colecção «in progress».
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INDICE
1993
26 Jun. pp. 68-71, “Cultura sociedade anónima” (Culturgest abre a 10 Out). / “Entrar nos circuitos”, entr, c/ Manuel José Vaz e Fátima Ramos / Eficácia empresarial, ent. C/ Rui Vilar (I)
9 out 93 "A modéstia do gigante" (a colecção de Fernando Calhau) - (II)
Colecção da CGD, Culturgest 1993 - 16 out , 6 e 13 nov. notas
01 abr 95 Colecção : "Lacunas, eixos e rupturas" 1995 (25-03-95 + 29-04 e 20-05)
(abertura) exp. Magnum 50 Anos, «Janela aberta» 16 Outubro - notas 23 e 30 out
Imagens para os Anos 90 - 18 dez.
24 Dez. “Schiele, o maldito” - p. 13
OUTRAS EXPOSIÇÕES
07 ago "Não há novos" -18 dez Imagens para os Anos 90, Culturgest e 15 e 22 jan 94
“Não há novos”
IMAGENS PARA OS ANOS 90
Casa de Serralves - 07-08-93 pág 13
Pelo terceiro ano consecutivo a Fundação de Serralves apresenta durante o Verão uma colectiva com repercussão nacional e com intencional sentido polémico, numa sequência que se vai constituindo como uma referência indispensável no panorama artístico português, embora naturalmente construída por momentos de desigual importância. Este ano foi o próprio director artístico de Serralves, Fernando Pernes, que se reservou a função de comissário (depois de a ter atribuido a Bernardo P. Almeida e a Alexandre Melo, em 91 e 92), conferindo à mostra um duplo projecto de sinalização de mudanças entre as décadas de 80 e 90, e, por outro lado, de revelação de jovens artistas e de outros menos jovens mas de também recente originalidade criativa.
Se o título do seu texto no catálogo ("O espaço e a hora da juventude") reforça a componente de revelação de jovens artistas, deve dizer-se que afinal eles escasseiam na exposição, onde apenas um (Rui Serra) tem menos de 26-27 anos (idade de Paulo Mendes, João Tabarra e André Magalhães). A média etária é de facto muito alta, superior a 30 anos, e sucede até que um número considerável de nomes volta a surgir como jovem depois de uma "revelação" ocorrida já uma década antes (por exemplo, em "Novos, Novos", de 1984, figuravam António Olaio, Catarina Baleiras, Fernando Brito e J. Paulo Feliciano).
A exposição falha, portanto, no seu propósito de revelação dos jovens dos anos 90, embora não fosse difícil acrescentar-lhe vários outros nomes já postos em circulação através de exposições recentes - aliás, Pernes avisa enigmaticamente que a exp. "sofre de várias ausências (pela nossa parte involuntárias)". Mais preocupante é que a visibilidade ou autoridade de alguns novos nomes se demonstre insuficiente, em parte por ser demasiado escassa a sua representação, mas também por um excessivo ecletismo da selecção - é, pelo menos, o caso de Pedro Andrade, André Magalhães, Fernando José Pereira, Baltazar Torres, Carlos Vidal, João Louro e Nuno Santiago.
Notar-se-á, entretanto, que o próprio processo de "prospecção" de novos artistas ou de novas situações artísticas tem sido até agora liderado por críticos e artistas vindos de anteriores gerações, numa dinâmica que em grande parte corresponde a um esforço de conservação de protagonismos numa situação de passagem da década, enquanto são quase inexistentes as iniciativas próprias dos jovens artistas e não ocorre a afirmação de novos críticos com eles geracionalmente identificados. Foi esse, em 1983, o caso de "Depois do Modernismo", tal como, mais recentemente, sucede com as exposições do "Centro Cultural de Lisboa", lideradas por "artistas dos anos 80" (continuando a usar-se, por mero jogo, este tipo de classificações).
Em Serralves, o mesmo se passa, com a condicionante de F. Pernes usar uma grelha ainda mais marcada pelo seu tempo próprio, ao procurar nos anos 90 a renovação do "diálogo com a rebeldia juvenil dos anos 60". Na referência ao "retomar o desejo inconformista de uma arte de provocação e revolta" ele estará duplamente equivocado: na consideração dos reais problemas que atravessam a actualidade artística e no que entende ser "o papel mais adequado ao projecto interventivo" de um centro institucional e museológico.
Genericamente, e sem lugar a surpresas, a colectiva de Serralves é marcada pela reafirmação (ou mera sinalização de presença) de artistas muito diferentes entre si e com notoriedade já reconhecida, sem que qualquer carácter geracional ou problemática comum efectivamente se imponha: João Paulo Feliciano e Daniel Blaufuks, ambos com as presenças mais afirmativas, Miguel Ângelo Rocha, Joana Rosa, Sebastião Resende e Pedro Sousa Vieira. Numa segunda linha, autonomizável desde logo pela ocupação maioritária do piso superior, destacam-se os trabalhos de Fernando Brito, Paulo Mendes, Miguel Palma e João Tabarra, num quadro mais colectivo de intervenção em que imperam o "achado" e a anedota ou a citação-simulação, onde a possível reflexão se expressa maioritariamente como irrisão. Se a eficácia de alguns trabalhos os coloca também no primeiro plano da exp., ela não basta para caracterizar uma mudança sensível de conjuntura nem mesmo para confirmar autorias. É este em especial o caso de Rui Serra, que não conseguiu resolver o complexo problema de ocupação de espaço que se propôs.
Três autores que utilizam a fotografia, André Gomes, Luís Palma e Valente Alves, figuram também na colectiva. No catálogo deverá ler-se um notável texto de João Pinharanda, que constitui uma desmontagem de alguns dos conceitos convocados pela própria exposição.
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ARTE E DINHEIRO, CGD/Culturgest
EXPRESSO 19-11-95 (nota)
Organizada por ocasião de um congresso sobre Cultura e Economia, esta exposição-intervenção comissariada por
Alexandre Melo ganha, sem dúvida, um particular significado pelo lugar que as obras ocupam no átro da CGD.
Tratar-se-á aqui de reunir algumas obras que explicitam uma análise sociológica empírica, no caso de Warhol, ou que
se propõem, em todos os outros casos, os de Muntadas, Louise Lawler , Pedro Portugal, Paulo Feliciano e Paulo
Mendes, como um comentário crítico do «sistema da arte contemporânea», aproximando-se assim uma abordagem
teórica da arte na área da sociologia do que por vezes se define como uma «arte sociológica» (tal como haverá uma
arte religiosa ou uma arte decorativa?). A exp. é acompanhada pela edição de uma antologia de textos, também
intitulada Arte e Dinheiro (ed. Assírio e Alvim), onde os mesmos artistas assinam o «design» de algumas páginas
iniciais de imagens e textos. «Design» é certamente uma palavra chave para entender algumas obras a que não será
possível reconhecer profundidade de análise sociológica nem originalidade da sua configuração objectual, limitando-
se a reformular graficamente textos e imagens conhecidas ou a construir «gadgets» segundo as regras e intenções da
comunicação publicitária, quando não a ser apenas ilustração de teses políticas. Quanto às 12 pequenas pinturas de
Andy Warhol que se expõem (as flores, os dólares, Lenin e Mao, etc), a evidência da sua menoridade, já bem distante
da banalidade necessária das suas primeiras obras, é certamente um lúcido contributo para repensar o sistema e a
história da arte dominante.
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JOVENS PINTORES
Culturgest/CGD, Galeria 2
EXPRESSO 29-10-95
Existe entre nós uma ampla desconsideração da fórmula concurso, que talvez resulte, para lá do excessivo voluntarismo de grande parte dos agentes culturais, da genérica diluição de um sistema minimamente consistente e consensual que possa estruturar os diversos segmentos, sectores e níveis do
panorama artístico. Tal desconsideração não é alheia quer a uma instabilização permanente, ou mesmo a uma desvalorização, das instâncias críticas actuais, quer a um desfuncionamento notório das entidades associativas e, ainda, a uma possível falta de transparência e, logo, de credibilidade, dos
circuitos de selecção e consagração — que tem por consequência mais imediata os desmandos notórios
nos planos da arte pública (monumentos realizados pelas autarquias, novas decorações do Metropolitano, etc). Os concurso abertos a artistas, jovens ou não, podem garantir aquela transparência dos circuitos artísticos e também acautelar canais paralelos de revelação ou validação de notoriedades,
funcionando, por outro lado, como estímulo de um interesse público de que outras iniciativas abdicam.
Neste prémio promovido pela Companhia de Seguros Fidelidade não ocorrem descobertas empolgantes, nem o panorama médio é susceptível de fundamentar qualquer optimismo, mas não deixa de ser possível constatar algumas das ambições que motivam inícios de carreira. (Até 7 Nov.).
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Anos 80
Culturgest/CGD
EXPRESSO 29-08-1998
Últimos dias da grande produção com que a Culturgest assinalou o período da Expo. Organizada por uma protagonista dos anos 80 ibéricos, a mostra procurou espelhar a grande circulação internacional da década, com a sinalização dos seus vários pólos institucionais e o pluralismo das várias estratégias sobrepostas ou sucessivamente mediatizadas, num contexto em que o optimismo económico generalizado pareceu articular o lançamento das grandes instituições artísticas oficiais com os jogos de mercado, sobre o pano de fundo de um constante estímulo da produção, isto é, da arte.
Apesar da crise que se lhe seguiu (crise económica, crise de modelos culturais, crise da arte oficial predominante), a comissária optou por manter intacta a fachada de um sistema arruinado, através de um jogo calculado de participações e omissões: a presença de Baselitz, «afirmado» nos anos 60; a ausência de Keith Haring e Basquiat, verdadeiros emblemas da década, mas já mortos; a grande representação escolar alemã, o menosprezo pelos franceses (Alberola, Combas, Lavier ou Sophie Calle não são menos desinteressantes que outros eleitos), o empolamento do número dos portugueses, etc.
A lista dos presentes estabelece-se como inventário de notoriedades e sucessão de fenómenos de moda, o que foi, de facto, o ponto de vista crítico que se implantou nos anos 80 (ignorando a profunda reconsideração da história da modernidade entretanto ocorrida). Presenças como as de Martin Puryer e Sean Scully, cuja projecção cresceu regularmente ao longo da década de 80, à margem das tendências dominantes, perturbariam a lógica da narrativa e os interesses de mercado que representa, tal como a comparência dos grandes fotógrafos que se impuseram nos mesmos anos, Sebastião Salgado e Martin Parr (e, por que não, Nam Goldin?). Mas as questões decisiva são ainda outras: a periodização por décadas é um exercício de facilidade e de auto-promoção; a lógica das revelações geracionais é sempre insuficiente para caracterizar as mutações que ocorrem num dado momento.
Sobreviveram mal muitas das notoriedades dos anos 80, mas pouco importa: dentro de dois anos serão todos artistas do século passado. (Até 31)
Posted at 13:11 in 1995, 1998, CGD, Colecções, Culturgest | Permalink | Comments (0)
NA ABERTURA DA SEDE DA CULTURGEST/CGD
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EXPRESSO - 9 out 93
"constituição de um acervo prioritariamente orientado para a actualidade, acompanhando os desenvolvimentos mais interessantes da criação artística dos nossos dias», Rui Vilar
Fernando Calhau (vindo da SEC e da antiga DGAC) à frente da colecção *
agrupando «autores que, embora pratiquem formulações estéticas diferentes, se aproximam conceptualmente»
a mesma área da «actualidade», entendida como a produção dos artistas afirmados desde meados de 70, e alargada a um ou outro artista tido por «precursor”, em que estão a actuar as várias instituições com intervenção neste terreno (Gulbenkian, Serralves e FLAD)
*(sobre Fernando Calhau, 1948-2002: foi artista (da geração de Júlião Sarmento e dele mt próximo; em sintonia com os programas da arte conceptual e minimalista, segundo a Wikipedia) e foi desde cedo funcionário da antiga SEC - actividade que a biografia no site da colecção Gulbenkian omite. Na administração cultural, ocupou cargos na Direcção-Geral de Acção Cultural, na comissão organizadora do Museu de Arte Moderna do Porto, na orientação da Colecção de arte contemporânea da Caixa Geral de Depósitos e no Instituto de Arte Contemporânea, que dirigiu entre 1997 e 2000. (** ver abaixo)
A PRIMEIRA exposição da colecção da Caixa Geral de Depósitos aconteceu em 1989 por iniciativa do Governo, num momento em que este promovia uma política muito voluntarista de estímulo do mecenato. O próprio Ministério das Finanças, a pretexto do seu bicentenário, reunira uma colecção própria (com contribuições alheias...) e mostrara-a sob as arcadas do Terreiro do Paço, antes de apresentar o acervo da Caixa. Na FIL, por esse tempo, a SEC montava uma Feira das Indústrias Culturais que não teria continuidade.
Serralves, que dava os primeiros passos, já tinha realizado exposições dedicadas às colecções da União de Bancos Portugueses (em 87) e do Banco Português do Atlântico (88). Nesse mesmo ano de 89, o Banco Hispano Americano fazia coincidir a sua ofensiva no mercado nacional com uma vasta exposição na Gulbenkian.
Outras operações do mesmo tipo se seguiram com a visita, também à Gulbenkian, da colecção da Telefónica de Espanha (um conjunto excepcional de obras de Chillida, Gris, Tàpies e Luis Fernández), e com a apresentação em Serralves da arte espanhola dos anos 50-80 pertencente à Caixa de Barcelona («La Caixa»), ambas em 91.
As colecções de empresa afirmavam-se então como uma realidade internacional de alguma importância, que se justificava por razões de representação social e publicidade de imagem, por opções de investimento e, em especial, por recentes concepções de responsabilização cultural que pareciam substituir parcialmente o tradicional coleccionismo mecenático praticado pelos ricos amadores de arte. Tal circulação de exposições abrandou nos anos seguintes (como muitas outras coisas no domínio da Cultura), mas já no início do programa de Lisboa'94 se irá ver no CCB a colecção de arte francesa contemporânea da Caisse des Dépots et Consignations, de Paris.
O QUE a CGD mostrou em 1989 era uma escolha de 60 pinturas e esculturas de outros tantos artistas contemporâneos (ou, pelo menos, ainda vivos), seleccionados do total de 204 (!) autores representados na sua colecção. A montagem inábil agravava a dificuldade de entender uma exposição que parecia guiar-se, tal como a colecção, pelo princípio de não fazer escolhas: seguia-se o princípio de mostrar apenas uma obra de cada artista, maior ou menor, ao longo de uma sucessão de gerações que vinha dos anos 30 até às revelações da década de 80.
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A criação da Culturgest em 1993
DOSSIER EXPRESSO 26 Jun.1993, pp. 68-71
1 entrevista de Manuel José Vaz e Fátima Ramos
2. “Cultura sociedade anónima”
3. entrevista de Rui Vilar
1.
“Entrar nos circuitos”, entrevista de Manuel José Vaz e Fátima Ramos
«A CULTURGEST é uma empresa privada e comercial que assegura a animação dos espaços culturais da nova sede da CGD», diz o seu principal responsável, Manuel José Vaz. A utilização de tais espaços constituía, inicialmente, um projecto interno à CGD, dirigido para os seus empregados e para actividades de representação ligadas à natureza própria de um banco. Foi Rui Vilar, presidente da CGD, quem, entretanto, resolveu «voltar também para o exterior a utilização do edifício, abrindo-o à cidade e procurando assim suavizar o impacto negativo de uma tão grande concentração de serviços» numa única zona da cidade, decidida de acordo com concepções de gestão que hoje já não são pacíficas.
Abrir a fortaleza a diferentes usos, com novas circulações de público e horários mais flutuantes, implicou algumas alterações na obra e a revisão de condições de segurança. Mas reconheceu-se que o gigantismo da sede veio, de facto, alterar as características ambientais de uma área densamente povoada, sujeitando-a, para além de outros efeitos secundários, a uma nova vocação de serviços e ao peso do fluxo regular dos seus milhares de empregados. Toda a zona sofreria rapidamente, sem o projecto de animação cultural, um processo de desertificação no período posterior ao encerramento do banco semelhante ao que ocorre na Baixa pombalina.
Entretanto, se o mecenato cultural se tornou, para a generalidade das grandes empresas, um processo de adquirir um renovado prestígio através da ideia de uma espécie de retorno de benefícios, a animação do edifício, em especial na sua fachada volta ao Arco do Cego, corresponde também a uma contrapartida oferecida aos moradores das áreas limítrofes, depois de anos de perturbação causado pelo mastodôntico estaleiro da Caixa.
Mas as atribuições da Culturgest voltam-se ainda para o aproveitamento de algumas das potencialidades do edifício na perspectiva da sua rentabilização (congressos, reuniões, etc), actuando como «interface» entre o público e os equipamentos que se integram na estrutura da Caixa. É o caso da biblioteca da CGD, que, além da sua componente mais técnica e especializada, dedicada à economia, finanças e direito, desenvolverá uma nova vertente com criação de um Centro de Documentação Europeia, em colaboração com o Centro Jean Monet, com acesso a bases de dados internacionais. Paralelamente, outro polo reunirá documentação especializada no domínio das artes plásticas, em articulação com a própria colecção de arte da Caixa, e também no campo das artes do espectáculo.
EM TERMOS de estrutura interna, a Culturgest é uma empresa muito leve, que conta apenas com o núcleo formado pela administração, um assessor artístico, António Pinto Ribeiro, e um director técnico, Eugénio Sena, mais um secretariado de duas pessoas. Não terá estruturas artísticas residentes e, em termos práticos, irá socorrer-se da contratação temporária de serviços especializados, embora conte com a disponibilidade das equipas técnicas que pertencem aos quadros da própria CGD.
Entretanto, a natureza própria dos seus «serviços» levou a Culturgest a constituir um Conselho Consultivo, que já reuniu no dia 15 para apreciar a programação prevista e os princípios gerais que enformam o seu plano de actividades. Actualmente preenchido por 12 elementos, num total previsto de 15, o Conselho elegeu, nessa primeira reunião, Rui Vilar como seu presidente e Rui Machete (FLAD) e Yvette K. Centeno como vice-presidentes, sendo os restantes titulares Eduardo Lourenço, António Barreto, João Marques Pinto (presidente da Fundação de Serralves), Isabel Silveira Godinho, Ruy Vieira Nery, Gerard Castello Lopes, Paulo Lowndes Marques, José Mariano Gago e Manuel Pinto Barbosa. Sem poderes vinculativos, o Conselho reune duas vezes por ano.
1993 é o ano de abertura da sede da CGD e das actividades culturais da Culturgest, limitado a um trimestre de lançamento. O próximo ano será excessivamente marcado pela dinâmica da capital cultural para se poder considerar exemplar dos propósitos da empresa, justificando-se mesmo alguma preocupação dos seus responsáveis perante os riscos de um previsível excesso de oferta cultural global. É, por isso, só para a temporada de 94/95 que se prevê uma velocidade de cruzeiro e uma exacta caracterização da sua lógica de programação. Entretanto, irá procurar criar um público novo, alargando o público cultural existente, para o que se conta em especial com a população estudantil do eixo Cidade Universitária-Instituto Superior Técnico.
Para o futuro, não se exclui a hipótese de outros espaços culturais, fora de Lisboa, virem a ser incluidos na órbita da Culturgest. Para já, porém, existe uma sede precisa para a sua acção, e uma clara distinção entre os apoios mecenáticos que continuarão a ser da competência da CGD, e são várias vezes superiores ao orçamento da empresa, e o seu próprio plano de actividades. A Culturgest não é uma instituição-mecenas, disponível para distribuir bolsas ou subsidiar projectos alheios.
NÃO É SÓ por se tratar de uma empresa comercial que a Culturgest se quer definir como um projecto original no terreno da cultura. A própria linha de programação adoptada (ver texto de abertura) reveste-se de características inovadoras, e a lógica empresarial que se lhe impõe pretende igualmente reflectir um conhecimento actualizado da realidade internacional das indústrias e dos mercados culturais.
Por um lado, apresenta-se, segundo Fátima Ramos, como «uma empresa privada, que é gerida por princípios estéticos, artísticos e de gosto da sua única responsabilidade». A procura de um perfil próprio entre as instituições culturais passa por um opção resoluta pela actualidade da criação artística e intelectual.
«A área principal de actuação vai basear-se na actualidade e em geral no século XX mas, na medida em que o século XX também já é em grande parte passado, gostávamos de imprimir à nossa programação a perspectiva de um olhar de hoje, e mesmo a marca da leitura que o final do século faz sobre esse passado». Daí até ao projecto de estruturar um programa de reflexão sobre o modo como as artes abordam as angústias do final do século e do milénio vai um pequeno passo que certamente será dado com o «Ciclo Apocalipse».
A programação por ciclos temáticos, e não como soma de acontecimentos desconexos ou avulsos, é, aliás, uma das regras da casa. Inscritos na programação anunciada estão já os ciclos «Multiculturalismo e novas mestiçagens», em colaboração com a Comissão dos Descobrimentos, «Mediterrâneos», «Dança do século XX», «La Liseuse» (leituras públicas). «A interdisciplinaridade, o multiculturalismo e o diálogo entre o 'antigo' e o 'novo'. o reportório e o experimentalismo deverão favorecer tensões criativas que contribuirão para uma programação atraente e coerente» — pode ler-se num documento interno.
Por outro lado, a intervenção cultural da empresa pretende expressamente apoiar os artistas portugueses e favorecer o seu acesso às redes da circulação internacional de exposições e espectáculos. Com a reserva das suas limitadas possibilidades de intervenção: «Não queremos sobrepor-nos nem às outras instituições que já existem ou estão a ser criadas, nem entrar em competição com elas, tal como não pretendemos substituir-nos ao que são as obrigações das instituições estatais em matéria de cultura», dizem os administradores.
No entanto, Manuel José Vaz e Fátima Ramos definem como seus objectivos «tentar impulsionar a criação e fazer a melhor divulgação que pudermos das obras dos criadores portugueses, ao mesmo tempo que se apresentarão produtos estrangeiros de boa qualidade». Para além das fórmulas abstractas, trata-se de valorizar a noção de rede e de a traduzir pela prática constante da co-produção, entrando desde o início nos circuitos internacionais: uma estreia não deve esgortar-se na sua apresentação isolada, deve circular; a vinda de uma exposição ou de um espectáculo a Portugal é mais útil e mais económica se ela (ou ele) percorrer um itinerário de várias cidades — e a intervenção cultural é mais sólida, e menos passiva, se for possível participar desde o início na definição do seu programa; melhor ainda se a encomenda feita lá fora tiver as contrapartidas de um processo de trocas.
Segundo princípios já correntes de gestão cultural, mas que são raros em Portugal, trata-se de pensar a programação, desde o início, de parceria com outras instituições, assegurando uma maior divulgação, diminuindo os custos e estabelecendo mecanismos de circulação capazes de assegurar que a importação de criações estrangeiras possa ter a contrapartida da apresentação de autores portugueses no exterior.
Mas será preciso encontrar parceiros em locais exteriores à sede lisboeta, e a realidade nacional não é imediatamente favorável: por toda a parte espera-se acolher espectáculos oferecidos, limitando os investimento à cedência de uma sala.
«É patente a ausência de um mercado de produção e de distribuição artística em Portugal», lê-se no documento já citado. Aí se adianta que «as razões fundamentais residem na inexistência e ignorância dos mecanismos de produção, ... das regras de comportamento laboral e de mercado entre todos os agentes intervenientes no processo cultural, dos artistas aos programadores, na desorganização e na falta de planeamento de produção e organização de reportórios e criações».
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2. “Cultura sociedade anónima”
(a Culturgest abre a 10 Out.)
A NOVA sede da Caixa Geral de Depósitos, ao Campo Pequeno, não é só o maior edifício comercial em construção na Europa — é também o lugar de implantação de uma experiência de gestão cultural inédita em Portugal. A CGD, que tem mantido, nos últimos anos, uma larga mas discreta acção de mecenato, vai ter a partir de Outubro a sua própria «fachada cultural», inaugurando no seu faraónico palácio do Campo Pequeno, um centro de espectáculos e exposições com programação regular.
Não se trata de mais uma fundação, embora houvesse neste caso (ao contrário do que sucede em S. Carlos ou no Centro Cultural de Belém) uma rectaguarda financeira sólida assegurada pelo maior banco português. Para gerir aquela programação e os seus espaços próprios, e rentabilizá-los também através da organização de congressos e da venda de serviços, Rui Vilar criou uma empresa, a Culturgest — Gestão de Espaços Culturais, Sociedade Anónima. Os seus capitais pertencem em 90 por cento ao Grupo Caixa (CGD e a sua holding) e os dez por centos restantes são investidos pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. É uma lógica empresarial, mesmo que inevitavelmente sem resultados lucrativos, que presidirá às suas actividades.
Na respectiva administração encontram-se Manuel José Vaz, engenheiro com uma longa ligação ao S. Carlos (fundador do seu grupo de Amigos e durante três anos membro do conselho de administração, declarando-se, em 1991, indisponível para novo mandato), Fátima Ramos (ex-funcionária superior dos quadros da SEC, vice-comissária geral da Europália 91 e, mais recentemente, chefe de Gabinete de Teresa Gouveia na Secretaria de Estado do Ambiente), e ainda Luís Santos Ferro, em representação da FLAD.
É SÓ A 10 ou 11 de Outubro que se abrirão as portas da CGD/Culturgest, com um concerto inaugural e duas exposições simultâneas: a apresentação das obras de arte da colecção da própria Caixa e da grande mostra de fotografia que comemorou os 50 anos da agência Magnum e se encontra em digressão mundial desde 1989 (passou pela Hayward Gallery de Londres, Folkwang Museum de Essen, Stedelijk Museum de Amsterdão, Pallazo delle Expozioni de Roma, Museo Alinari de Florença, Palais de Tokyo de Paris, e está desde a passada segunda-feira no Centro Reina Sofia de Madrid, para citar apenas alguns pontos da viagem da sua «edição» europeia). As 300 fotografias da Magnum, «In Our Time» no seu título inglês, são uma indicação bastante do «fôlego» imprimido a uma programação que corresponde, de facto, à abertura de um novo polo cultural na capital.
Quanto à colecção de arte, mostrada apenas uma vez, em 1989, em instalações do Ministério das Finanças, ela foi entretanto sujeita ao reexame da sua representatividade, confiado a Fernando Calhau, iniciando-se depois um novo programa de aquisições. A colecção surgirá, portanto, já redefinida e ampliada.
Para Dezembro, continuando no capítulo das exposições, a programação promete uma mostra de 22 jovens artistas portugueses seleccionados por Fernando Pernes, «Imagens dos anos 90», em co-produção com a Fundação de Serralves e com passagem também por Chaves, e «Cem aguarelas de Egon Schiele», mostra com origem na colecção Sabasky, de Nova Iorque, organizada para celebrar o centenário do nascimento do grande pintor vienense (1890-1918).
Depois, anuncia-se um panorama da arte belga, «Resistências poéticas», também em colaboração com Serralves; «Máquinas de Cena», com cenários e adereços do grupo de teatro O Bando; uma mostra subordinada ao tema «Arte e dinheiro», paralela a um colóquio organizado no âmbito de Lisboa 94 e comissariada por Alexandre Melo, e, por fim, «Paraísos e outras histórias», novas séries ainda inéditas de pinturas de Júlio Pomar, também no quadro da programação da Capital Cultural.
A MÚSICA, a dança e o teatro serão outras áreas de programação regular, dispondo a sede da Caixa de um Grande Auditório com 700 lugares, plenamente equipado e com fosso de orquestra para 40 músicos, e de um outro mais pequeno com 150 lugares, vocacionado para conferências e espectáculos de cunho experimental. Entretanto, tal como no capítulo das exposições, também na programação da área dos espectáculos há duas constantes que podem ser sublinhadas: a programação a longo prazo (o que é raríssimo nas instituições nacionais) e a opção pelas co-produções, com abertura às circulações nacionais e internacionais (ver texto ao lado).
Significativamente, o segundo concerto previsto será de jazz, com a Big Band do Hot Club e um solista de renome, ficando assim provada desde logo a intenção de não restringir a agenda musical às áreas eruditas, mesmo que não se preveja a concorrência com os empresários do rock. O jazz, aliás, dará lugar imediatamente a um mini-ciclo dedicado à música americana, das raízes autênticas dos espirituais, do gospel ou do dixieland, aos grandes êxitos de Gershwin, Cole Porter, etc, segundo um programa da responsabilidade de Gary Gibbs, que é o animador cultural da Ópera de Houston. Mas os grandes acontecimentos do próximo ano serão a colaboração com a Capital Cultural num «Ciclo de Integrais» (32 concertos, de Janeiro a Novembro, sucessivamente dedicados aos quartetos e quintetos de Beethoven, Mozart, Bartok ou da Segunda Escola de Viena e ainda a obras solísticas de Schubert, Ravel e Bach) e, por outro lado, a divisão com a Fundação Gulbenkian da responsabilidade pelos Encontros de Música Contemporânea, em Maio.
Outros acontecimentos, reduzindo sempre o calendário aos grandes títulos, serão a apresentação em Maio da ópera Orfeu, de Walter Hus, encenada por Jan Lawers e que fez parte do Festival de Ópera Contemporâna de Antuérpia 93; um recital de obras de Rachmaninov por Sequeira Costa, por ocasião do lançamento de um disco gravado com a Royal Philarmonic Orchestra, patrocinado pela CGD, já em Novembro; e, em Outubro de 94, o acolhimento de um Concurso Internacional de Clarinete organizado pela RDP.
MAS a dança terá também um lugar destacado na programação do primeiro ano da Culturgest, a que não é alheia a presença de António Pinto Ribeiro como assessor artístico. Anuncia-se já a estreia mundial de uma coreografia de Vera Mantero (Sob) que inaugura um ciclo intitulado «Mediterrâneos» e irá depois encerrar a programação de dança de Antuérpia 93, numa co-produção com Tejo Trust e Ferme de Buisson. Depois, num outro ciclo dedicado à Dança do Séc. XX, seguir-se-ão espectáculos de solos em homenagem a Isadora Duncan, por Margarida Bettencourt, Miguel Pereira e Allison Green, sob o título genérico Atiro uma flecha pelo ar; mais tarde, um espectáculo de Meg Stuart, No longer ready made, numa alargada co-produção da Culturgest com os festivais de Klapstuk, Springdance, etc; uma Homenagem aos Ballets Russes, pela Companhia de Angelin Preljocaj; uma nova criação de Joana Providência com uma bailarina de Cabo Verde, a integrar num ciclo denominado «Novas mestiçagens»; Corol.la, de Angels Margarit; e, a encerrar o ano, a comemoração do centenário do nascimento de Martha Graham, ainda em coprodução com Lisboa 94.
Passando ao teatro, que terá menor expressão no primeiro ano devido à longa preparação de que necessita, alinhem-se os espectáculos Songo la Rencontre, de Vincent Mombachaka, com encenação de Richard Demarcy e actores da República Centro-Africana (ciclo «Multiculturalismo»); Miscelânia de Garcia de Resende, a encenar por Rogério de Carvalho e com vídeos de Daniel Blaufuks (em colaboração com a Comissão dos Descobrimentos e no quadro do VI centenário do Infante D. Henrique); um ciclo de três encenações sucessivas da peça de Pirandello Esta Noite Improvisa-se, por Fernando Mora Ramos, Isabel Câmara Pestana e João Brites, em colaboração com Lisboa 94; e ainda «As Novas Marionetas», com o apoio do Théâtre de Marionettes de Paris.
Para além dos «workshops», ateliers de experimentação e colóquios, que acompanharão, por regra, a actividade da Culturgest, deve ainda destacar-se um programa original de leituras em voz alta, com debate final sobre os textos — nomes anunciados desde já são os de José Alberto de Carvalho, Eduardo Prado Coelho, Helena Amaral, Paulo Ferreira de Castro, Isabel Matos Dias, como leitores, e Musil, Joyce, Gertrude Stein, Adorno e Merleau-Ponty. O título geral será «La Liseuse».
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"Eficácia empresarial", entrevista de Rui Vilar
Rui Vilar é o mentor do novo projecto cultural da Caixa, mas é ele próprio quem sublinha a independência empresarial e programática dos responsáveis pela Culturgest. As suas respostas a um questionário escrito definem, no seu medido laconismo, o quadro global em que se moverá «este novo tipo de gestão cultural», com a «preocupação de eficácia que é inerente à gestão empresarial».
EXPRESSO — Com a inauguração da nova sede, a CGD vai alterar o modo como anteriormente praticou o mecenato cultural, constituindo-se como um dos polos culturais de Lisboa?
RUI VILAR — Não. A CGD não vai alterar no essencial a sua prática de mecenato cultural. Vai, outrossim, complementá-la com outras actividades artísticas e culturais cuja programação será da exclusiva responsabilidade da Culturgest.
EXP. — A criação da Culturgest é significativa de um projecto de gestão empresarial da cultura?
R.V. — A Culturgest foi criada como empresa com o objectivo principal de gerir de forma eficaz e planeada os recursos físicos disponibilizados pela CGD. Este novo tipo de gestão cultural pretende beneficiar directamente a cidade, a comunidade no seio da qual o Grupo CGD está implantado, os seus clientes e também, e de certo modo, os empregados do Grupo.
EXP. — Qual é o horizonte financeiro e qual a orientação predominante, em termos culturais, que lhe atribui?
R.V. — A programação das actividades culturais e artísticas da Culturgest é da responsabilidade do seu Conselho de Administração. A Culturgest é dotada de um subsídio anual que corresponderá a uma determinada percentagem da previsão de custos globais para cada ano e será medido em função do contributo efectivo para os objectivos previamente definidos. Segundo as linhas programáticas da Culturgest elaboradas pelo Conselho de Administração e já apreciadas pelo seu Conselho Consultivo, no horizonte imediato, a Culturgest orientar-se-á para uma programação que privilegia a interdisciplinaridade, o multiculturalismo, a criação portuguesa contemporânea e a reflexão em torno das ciências humanas.
EXP. — Como entende as responsabilidades sociais das grandes empresas e instituições bancárias no domínio da cultura?
R.V. — As empresas têm hoje a responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento, em sentido amplo, das comunidades onde estão inseridas. A preocupação de eficácia que é inerente à gestão empresarial não é contraditória com as actividades culturais: uma sociedade informada e criativa terá mais capacidade de entender e de realizar as transformações necessárias, designadamente no campo económico. Mas, como é também evidente, esta acção das empresas não desresponsabiliza, nem se substitui, ao Estado, aos demais agentes culturais, criadores e público.
Posted at 01:50 in 1993, CGD, Culturgest, Lisboa 94 | Permalink | Comments (0)
Tags: CGD, Culturgest, Rui Vilar
A. Porque é que o logo é tão inepto (e feio)? Porque o que é mal pensado acaba mal feito. O logo e o design são vazios de referências ou significado, é um M para qq coisa
"The most expected Museum of Contemporary Art in Lisbon..."
Museu António Costa: MAC CCB
B. 1. Depois da marca Berardo ter sido construída ao longo de quase 30 anos (desde Sintra em 1997 e até 2008 com a Maria Nobre Franco, depois com o 1º director Jean-François Chougnet, 2007-2011, antes da decadência iniciada por Pedro Lapa), há um futuro incerto em Belém enquanto se aguardam as decisões dos tribunais. À "litigância" do comendador, vítima do caso BCP ao tempo de Sócrates, António Costa respondeu com precipitação e arrogância, e o ministro foi atrás com máxima infelicidade: “O tempo do sr. Berardo acabou”, disse. Era preciso negociar. É preciso respeitar e aplaudir o coleccionador.
Abandonando a designação Arte Moderna, o novo MAC Museu de Arte Contemporânea tem um nome certo, atraente e credível? Não. E não é só uma questão de nomes. A que se chama arte contemporânea? Marca-se uma data ou um estilo? - quer-se impor que a arte contemporânea são as chamadas novas vanguardas e é o estilo minimal-conceptual herdado dos anos 60 (“circa 68”) que veio da contestação política para se entregar ao coleccionismo especulativo, numa produção quase sempre árida e escolar, agora já académica, servida por "curadores" burocratas e destinada a nichos de alegados especialistas.
2. O Centro Pompidou é Musée national d'art moderne – Centre de création industrielle, que concorre com o Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, de tutela camarária e com colecções francesas. Em Londres temos a Tate Britain (nacional) e a Tate Modern (internacional), inaugurada no ano 2000 - a divisão dos artistas pelos dois museus de Londres é em muitos casos um exercício de segregação crítica, e outros. Em Nova Iorque, há o MoMA, Museum of Modern Art, e outros, o Whitney Museum of American Art, o MET: Metropolitan Museum of Art (universal), etc. A Gulbenkian fez o CAM, inaugurado em 193.
Em parte alguma, um edifício com a escala monumental do CCB e com os seus custos pode afirmar a condição de desleixar a arte moderna e querer ser um “MAC”. Os grandes espaços comparáveis nas grandes capitais dispõem de acervos da modernidade clássica e percorrem todo o século XX, e por isso mobilizam permanentes fluxos de visitantes.
A "arte contemporânea" não vende. Museu António Costa também não.
3. Não é por acaso que o logo e o design são muitíssimo maus, vazios de referências ou significado. Desde o inicio do ano que (eles, Costa e Adão e Silva) não acertam, estragam. As artes plásticas ou visuais, que se chamavam belas-artes, não são com eles e não perguntam
4. Chama-se-lhe MAC em concorrência com o Museu do Chiado, assim inaugurado em 1994, mas que passou a identificar-se depois, insidiosamente, como MNAC (Museu Nacional de Arte Contemporânea), que obviamente não é. A concorrência entre MAC e MNAC não é explicada, nem é verosímil, mesmo que a directora Emília Ferreira acolha agora o Tony Cragg a custo zero. O Convento de São Francisco onde reside é ignorado e o Museu do Chiado é deixado sem meios para expor e alargar a sua colecção (vai ter obras em 2024?). Aliás, a dispersão da colecção do Mario Teixeira da Silva pelos herdeiros, apesar de prometida ao Chiado, podia ter sido ou ser ainda travada, se houvesse políticos interessados.
E veja-se que também em Belém não interessam ao Governo os Museus de Etnologia e de Arte Popular, em lugares privilegiados e com patrimónios únicos. Não há políticas para o sector dos museus, e estes são substituídos por uma aleatória e suspeita "colecção do estado", largamente contestada. A recente reforma institucional não tem conteúdo.
C. Não é embirração, é que tudo é muito mal pensado e pior feito no museu imposto por António Costa, cuja cultura artística é proverbial. De facto, é positivo que se tenha querido manter em destaque, numa 1ª exposição de continuidade, o nome do coleccionador e patrono Berardo, que não deixou de ser uma "marca" reconhecida e eficaz - no CCB e nos outros museus com o seu nome, dos Azulejos em Estremoz e da Art Déco em Alcantara, etc.
E é a sua colecção, arrestada e a aguardar sentença dos tribunais, à espera de ser reavaliada e de haver decisão sobre o seu futuro (dividida entre os bancos e o proprietário, adquirida pelo Estado, fixada por acordo em Belém ou em Azeitão por desacordo?)..., é a Colecção Berardo que continua a constituir a base e o valor do Museu, com ou sem o seu nome. Ela cobre todo o século XX e entra no XXI, sem que nunca haja colecções completas - não é a colecção Elipse do extinto Rendeiro/BPP que traz o séc. XXI, isso é mentira. Há anos 1990 e 2000 na Colecção Berardo, já com compras de J.F. Chougnet, e a Colecção Rendeiro fina-se na mesma década.
Entretanto, tem de dizer-se que a arrumação das duas exposições anunciadas é conceptual e cronologicamente errada, absurda.
O título da 2ª exposição seria próprio de um trabalho escolar ou comunicação académica, nunca de uma mostra oferecida a um público alargado. "Revisão dos géneros artísticos" é conversa de mau professor, que subordina a individualidade dos artistas e a identidade das obras a uma catalogação por géneros, tipos e escolas: as obras que importam escapam-se a classificações de géneros e estilos, as outras, as obras menores, ilustram categorias e problemáticas. "Objecto, corpo e espaço" só podem ser pistas redutores para a observação-fruição das obras, são fórmulas áridas de análise escolar como poderia ser o título forma, cor, desenho, tempo ou lugar....
Assim, com estas lições infelizes, a relação com a arte tem vindo a degradar-se, entre a ignorância e os "eventos", entre a perda de públicos e a proliferação de mediocridades (imersivas). Há por aí o gosto de um administrador-programador-curador-anónimo que se identifica como Delfim Sardo, personagem de longa sobrevivência que em 2006 já fora forçado a abandonar o lugar de director do centro de exposições. O CCB secava e empobrecia sob a sua tutela, mas esqueceram-se.
Deve perceber-se na partição das duas mostras a repetida obsessão com a década de 60, defendida como o tempo das neo-vanguardas que devem ver conceptuais, “poveras” e/ou minimalistas - um tempo que foi de contestações políticas e estéticas (anos 60/70) e foi depois congelado pela academia e o pequeno mercado especulativo que os museus e os "curadores" para todo o serviço sustentam. A "Arte", segundo estas versões académicas cada vez mais empobrecedoras, iria das primeiras vanguardas do séc. XX (a que chamam erradamente "primeiro modernismo") às novas vanguardas da década de 60 e suas derivações já exangues. O resto, que é a parte maior e mais admirável, não importa, porque escapa à tutela dos funcionários e mercadores da crítica.
Mas, mais perto de nós e mais presente, mais viva e produtiva, foi a ruptura da década de 80 que reagiu aos estilos canónicos dos 60 e explodiu nos regressos à pintura e à figuração, nas descobertas das periferias regionais, nas obras livres e inclassificáveis, nas margens “modestas” e na valorização do que não se considerava e não pretendeu afirmar-se como vanguardas, que então se desacreditam e extinguiam. Um exemplo só: a Paula Rego. A cor, a expressão, a figura, a irreverência e a invenção estão muito presentes nas escolhas da Colecção Berardo até ao fim do século, mas o Sardo não gosta, como mostrou logo numa exposição cinzenta e frígida em 2005 no CCB antes de haver Museu Berardo. Mas voltou a mandar.
D. À "litigância" do comendador, vítima do caso BCP ao tempo de Sócrates (e das manobras para tomar conta do banco, quando Berardo representava os pequenos accionistas e lhe metiam acções na mão), António Costa respondeu com precipitação e arrogância, e o ministro foi atrás com máxima infelicidade: “O tempo do sr. Berardo acabou”, disse.
Enganou-se.
Foi afinal a sua Associação de Colecções "que adquiriu agora por 1,8 milhões de euros as 214 obras que tinham sido compradas com recurso às verbas do fundo de aquisições do Museu Berardo, co-financiado pelo coleccionador e pelo Estado. Cerca de 30 dessas obras estavam na exposição permanente do extinto Museu Colecção Berardo, e já não foi possível contar agora com elas para o novo MAC/CCB.
Fonte ligada ao empresário disse ao Público que a Associação de Colecções informou já por escrito a Comissão Liquidatária da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo (FAMC-CB) de que estará disponível para anular o negócio caso venha a ser revertida a extinção da FAMC-CB, que Berardo contestou em tribunal, num processo que aguarda ainda uma resolução final." PÚBLICO
A procissão vai no adro, os políticos são descartáveis e os coleccionadores merecem a nossa admiração e ficam na história.
Posted at 17:48 in 2023, Berardo, CCB, Museu Berardo, Museus, politica cultural | Permalink | Comments (0)
O Eric Corne, que comissariou a exp. inaugural do Museu Berardo ao tempo de Jean-François Chougnet, apareceu agora nos comentários do blog a lembrar o que eu tinha escrito sobre o vídeo de Justine Triet que então expôs e foi depois adquirido para a colecção do Museu: Sur Place
" Je relis votre très belle critique sur le film, Sur place, de Justine Triet qu'avec l'accord de Jean- François Chougnet, j'ai souhaité présenter à l'exposition d'inauguration du musée colecão Berardo dont j'étais un des commissaires. Défendant cette jeune artiste, je n'imaginais pas alors qu'elle obtienne la Palme d'or à Cannes cette année avec son superbe film Anatomie d'une chute. J'en profite pour vous remercier de vos articles, Très cordialement Éric Corne"
Sur Place, de 2007, era uma 1ª obra: a sequência é notável.
https://en.wikipedia.org/wiki/Justine_Triet
SOBRE ANATOMIE D'UNE CHUTE
https://fr.wikipedia.org/wiki/Justine_Triet
https://www.lemonde.fr/culture/article/2023/09/23/anatomie-d-une-chute-depasse-le-million-de-spectateurs-en-salles-a-defaut-de-representer-la-france-aux-oscars_6190660_3246.html
https://www.allocine.fr/film/fichefilm_gen_cfilm=297303.html
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Visto por extenso, e não só os três quatro minutos ocasionais, o filme cresce mais ainda. O movimento abstracto dos grupos, a coreografia, o azul, são de facto um documento poderoso, impressionante e inquietante, sobre o presente - as manifestações dos jovens dos bairros periféricos de Paris (Março de 2006). E são a passagem do documento circunstancial a algo de mais produtivo e, enquanto objecto e desafio, algo de mais indefinido, a que podemos chamar arte.
Não é uma "reflexão sobre", um exercício académico sobre a imagem, o poder da imagem, a ontologia da imagem, a ideia de arte, etc, etc... Mais do que vontade ou pretensão de arte, esta (a palavra arte) é uma situação de chegada - uma proposta de apreciação valorativa.
SUR PLACE - France / 2006 / vidéo / coul. / 30' , de Justine Triet - autoproduction. Colecção Berardo
No movimento dos grupos e dos corpos, a dança é agressão e violência (um grupo de jovens contra alguém desconhecido que é depois salvo por socorristas), é combate organizado (entre grupos anónimos, imprevistos, encapuçados, e as forças da polícia, parte delas à paisana), é agitação irracional. Os "voyous", "la pègre", o antigo lumpen e as forças radicais de hoje, a acção política ("demission revolution" num cartaz) e a delinquência, a insegurança urbana e as tropas de assalto (?) contra o velho mundo da teoria situacionista. As formações tácticas dos polícias, os escudos e bastões a lembrar antigas batalhas pintadas, Uccello. E também os observadores (objectivos?, imparciais?), os repórteres fotográficos que fazem parte do espectáculo que fotografam, igualmente de capacete, em geral encostados aos cordões de polícia, por vezes atacados pelos bandos.
No fim, uma figura solitária que deambula no nascer do dia, e no princípio um rosto, um rosto jovem, depois um pequeno grupo que se prepara para a acção, e a seguir uma verdadeira batalha de rua - quem contra quem?
Espantosamente filmado, com os recursos de luz e movimento das pequenas câmaras de vídeo, também sempre em movimento, de fora e de dentro da acção, com uma montagem sem atritos na mudança dos pontos de vista e das acções, ao longo de inúmeras horas (a noite cai, os fogos que se acendem, o dia nasce).
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destaquei então outra obra da Colecção, de
(Depois de "Sur Place" de Justine Triet , outra obra maior do Museu Berardo):
Amarylis, 1987, óleo sobre tela, 220 x 180 cm. Col. Berardo
Posted at 18:02 in 2023, filme, Museu Berardo | Permalink | Comments (0)
Tags: Anatomie d'une Chute, Colecção Berardo, Eric Corne, Justine Triet, Sur Place
Previstos 2,2 a 3,2 milhões de libras, para 162x155 cm e 160x120 cm de pintura: "Dancing Ostriche from Walt Disney's 'Fantasia'", 1995, um record para Paula Rego.
20th/21st Century: London Evening Sale | Live Auction: 13 October, London
É uma pintura dupla (ou duas pinturas dispostas como um díptico) de médio formato, da série “Avestruzes Dançantes”, onde Paula Rego se refere ao filme 'Fantasia' de Walt Disney. Fazem parte de um conjunto de 8 desenhos (pinturas) a pastel sobre papel colado em alumínio que constituíram de início uma obra única realizada para a exp "Spelbound: Art and Film", na Hayward Gallery em 1996, Londres.
Posted at 01:35 in 2023, mercado, Paula Rego | Permalink | Comments (0)
É mantendo o nome do Império, a Praça do Império, no Porto, e o monumento fascista aí implantado que podemos apreender e reconsiderar ou reavaliar a história; e que podemos condenar não o colonialismo (absurda pretensão a-histórica) mas os crimes coloniais, onde eles existiram.
Rasurar, demolir, ocultar é um exercício de apagamento que não muda o passado mas impede que ele se conheça, e que sobre ele se reflicta.
Temos de saber distinguir o colonialismo fascista do colonialismo republicano (sem o mitificar ou ignorar as suas circunstâncias agressivas e também racistas, conformes com o seu tempo), temos de distinguir o colonialismo explorador e opressor dos projectos, programas e vontades de conhecimento, estudo, instrução, desenvolvimento e dignificação das populações nativas, protagonizado por colonos e/ou patronos expatriados e por nacionais africanos de etnias europeias ou locais.
Não se trata de pactuar com a celebração de quaisquer páginas negras (atribuindo intenções propagandistas a uma qualquer peça de história já morta) e não importa acenar com apegos de direita a uma qualquer época áurea, desenterrando sempre fantasmas à falta de argumentos.
E temos de ser implacavelmente críticos das ditaduras e terrorismos africanos do presente, o que se conjuga com as "restituições".
Que fazer a coisas como estas?
monumentos, retratos, mulheres e seja o que for, feitos em série, toscamente moldados (numa hipótese condescendente) e "esculpidos" em fábricas espanholas
Discutindo as obras do autor/produtor/artista e esperando q a opinião pública entenda q são lixo poluente
Posted at 16:57 in 2023, Arte oficial, crítica, Escultura, escândalos, Porto | Permalink | Comments (0)
Posted at 17:07 in 2023, Africa, Colecções, Museus, Polemica, politica cultural | Permalink | Comments (0)
É um filme notável sobre um livro notável, As Mulheres do meu País, de Maria Lamas. Um documentário que é um road movie seguindo a inspiração de Maria Lamas, às vezes seguindo a sua viagem pelo país, seguindo o livro, a jornalista e fotógrafa, procurando lugares fotografados, possíveis sobreviventes ou idênticas vidas femininas, leituras/leitoras actuais, sem descansar nas normas habituais do documentário, os depoimentos de possíveis especialistas (se existem), a cronologia, a fácil síntese informativa. É uma aventura de cinema em que as autoras interrogam o que foi a aventura editorial ainda surpreendente de Maria Lamas e questionam a sua própria admiração pelo livro, lendo-o e interpelando outras mulheres. Fica (quase) de fora o itinerário pessoal, literário e político de Maria Lamas e tudo o que seria desfocar a atenção dedicada a essa obra única.
Estreou em 2022 no Festival Indie e não teve então o menor eco crítico, o que comprova a indigência criminosa da crítica de cinema instituída na chamada comunicação social de referência.
Tem andado por aí em sessões periféricas e ontem (14 SET.) foi apresentado num ciclo dedicado a mulheres ilustres pelo cine-clube de Alvalade (Cinema Fernando Lopes, U. Lusófona). Só soube do filme ontem mesmo, graças à Maria d'Aires Caeiro, a neta que tem tratado e ajudado a divulgar o espólio fotográfico - ignorava-o ainda que desde há muito escreva sobre Maria Lamas fotógrafa e procure tudo sobre o livro em fascículos de 1948-50, sobre a preciosa reedição da Caminho em 2003 num fac-símile trabalhado por José António Flores (pouco divulgada e comprada e depois guilhotinada pela Leya), e sobre a actual distribuição com o Público numa produção também em fascículos e muito cuidada.
Em 2024 a Gulbenkian apresentará uma exposição sobre Maria Lamas fotógrafa e o seu livro, comissariada por Jorge Calado, que já mostrou em Paris e no Dubai (!).
Comprara mas não li o livro de Susana Moreira Marques "Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro" (onde o terei desarrumado?), que é também uma viagem guiada pelo livro de ML, mas é brilhante, certíssimo, o seu texto livre e inteligente que acompanha e sustenta o filme, a outra parte das belíssimas filmagens e ideias de cinema de Marta Pessoa.
Onde está o filme en streaming? Quem não o edita em dvd? Quem não o distribui? Quando passa na RTP2 ("tudo menos Hollywood" - desestabiliza-me ouvir um tal dislate)
Outras pistas:
"Em Portugal, o equivalente fotográfico da FSA (Farm Security Administration) é obra de uma única mulher: Maria Lamas.” - Jorge Calado, catálogo “Au Féminin: Women Photographing Women 1849 – 2009”, ed. Fundação Gulbenkian 2009 (exposição apresentada em Paris e não trazida a Portugal - era então Jorge Molder o director do CAM).
"Em 1947, quando Maria Lamas dá início às suas viagens pelo país para a publicação de 'As Mulheres do Meu País', tem 53 anos, e fora até há pouco directora de 'Modas e Bordados' (publicação de O Século), jornalista e romancista. "Resolvi arranjar uma máquina e ser eu, também, fotógrafa", lê-se numa notícia publicada no boletim 'Ler - informação bibliográfica', Publicações Europa-América (Maio-Junho 1948, pág. 1.
"A obtenção de fotografias, confessa, foi uma das maiores dificuldades que encontrou, pois queria-as ‘verdadeiras, expressivas, com valor documental e inéditas’. Acabará por assumir-se como repórter fotográfica, num trabalho pioneiro" – in 'O Primeiro de Janeiro', Porto, 28 de Abril de 1948 (entrevista na pág. "Das artes e das letras"). https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre.../maria-lamas/
Posted at 01:59 in 2023, filme, Maria Lamas | Permalink | Comments (0)
“Episódicos são todos os movimentos modernos, transformando e transformando-se — foi isso mesmo que aconteceu com o neorrealismo quando olhamos para os artistas que o praticaram, bem como para companheiros próximos e afins como Augusto Gomes ou Resende.
Além destes artistas sempre lembrados, outros há que me surgem imediatamente na memória, com obras que podem entender-se como um prolongamento das exigências estéticas e éticas do neorrealismo:
Paula Rego é uma evidência nas suas indignações, tal como Graça Morais nos retratos de mulheres, bem como na recente evocação das misérias deste mundo. Especial é o caso de Manuel Botelho com a sua figuração preocupada em resposta à figuração despreocupada dos anos 1980; Clara Menéres expondo um soldado morto em tempos de guerra colonial; Artur Varela afundando no Tejo a Torre de Belém; Henrique Manuel blasfemando contra tudo e todos; Virgílio Domingues com os seus monumentos anticapitalistas; José Miguel Gervásio na alegoria de uma “aurora da liberdade” sem fronteiras e... e basta!
Seria possível juntar mais nomes a estes, mas estes bastam para afirmar, mais do que uma posteridade, uma continuidade em expansão de intencionalidades que o neorrealismo afirmou, ele também na continuidade dos realismos dos anos de 1920 e 1930."
É uma passagem do artigo de José Luís Porírio na última revista do Expresso (8 set.23), a propósito de uma exp do museu de Vila Franca de Xira: "O poder do neo-realismo". E é uma tese, ou proposta de entendimento da história q me parece bem problemática.
É possível identificar como "prolongamentos das exigências estéticas e éticas do neorrealismo" obras de Paula Rego, pela "evidência nas suas indignações"; ou Graça Morais, "na recente evocação das misérias do mundo"; ou Manuel Botelho, "com a sua figuração preocupada", que se identifica a expressões críticas da Escola de Londres? Parece-me que não.
Porfírio vem lembrar artistas que lhe interessam, e a mim também, como Artur Varela e Henrique Manuel, dois irreverente e/ou provocadores, e também José Miguel Gervásio, este vivo mas estranhamente pouco mostrado pelas galerias, depois de passar pela Módulo. E também refere Clara Meneres e Virgílio Domingues, este que se afigura ideologicamente próximo.
A pressão ou transmissão neo-realista, ou o movimento, encerra-se pelo fim das Gerais e pela intervenção da Gulbenkian no mercado expositivo. Artistas como Sá Nogueira e Nikias Skapinakis praticam já uma outra figuração urbana e com nova informação; a nova geração da galeria Pórtico e da revista Ver, depois do exílio e do KWY, a par da renovação da arte religiosa (o MRAR), separa-se radicalmente dos condicionalismos do movimento, que desaparece sem ruído. A oposição ao neo-realismo, o corte com o complexo partidário que de vários modos o prolonga, afigura-se mais determina-te do que qualquer continuidade. Sim, Querubim Lapa, entre as encomendas decorativas, e Rogério Ribeiro por afinidade partidária, podem ser prolongamentos, mas só esses. Ou um posterior Espiga Pinto.
Porfírio, decano da crítica de arte, é nestes dois casos sensível a relacionamentos pessoais, mas os outros nomes que cita pertencem a obras linhagens críticas (como também o Batarda da sua primeira figuração imaginista).
E tb tenho mt dificuldade em considerar Júlio Resende um "companheiro afim" - muitos pintaram o povo, também à direita ou sem definida consciência/propósito... Há fronteiras formais, além das ideológicas.
Posted at 01:47 in 2023, Neo-realismo | Permalink | Comments (0)
Capelo e a Misericórdia, A "Casa Ásia":
Na Rádio Observador, "Contra-Corrente", dia 30, o JMF e a HM discutiram a situação da "Santa Casa": o título foi "Quem deu cabo da Santa Casa da Misericórdia?"
Ora aconteceu que se esqueceram, ignoraram ou silenciaram um dos assuntos graves da dispersão da Misericórdia por casos sumptuários e descentrados das suas responsabilidades. 3 milhões para o "mecenas" + os custos do museu, que pretenderá concorrer com o Museu do Oriente
Posted at 11:02 in 2023, Lisboa, Museus, politica cultural | Permalink | Comments (0)
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A arte é profissão para alguns, dedicação-paixão para parte desses e outros, e ocupação de tempos livres para mais outros, e toda ela se joga nos seus respectivos mercados, oficiais e marginais, autónomos ou alternativos enquanto as instituições os não absorverem e domesticarem, mercados sempre, com e sem especulação ou financiarização.
Para os que a praticam e os que trabalham em actividades associadas ou parasitas, as artes visuais (belas-artes, depois artes plásticas, arte em geral) são vocações e talentos (e resistências à adversidade) ou são empregos que vieram oferecer substituição para as actividades produtivas deslocalizadas e robotizadas. São uma necessidade para alguns, sao um privilégio, são a possibilidade de escapar ou tentar escapar ao trabalho assalariado, são um lugar de especialização, num “mundo da arte” tendencialmente fechado sobre si mesmo e burocratizado.
Para os espectadores amadores especializados, quando existem (são poucos), a arte é um interesse entre outros, por vezes uma compulsão e uma adição, um hobby, uma aplicação financeira, uma distinção social. Se vão a galerias dirigem~se directamente ao escritório do/da galerista e reservam fotos que lhes mostram. Coleccionam.
Para o público indiferenciado, de fim de semana de lazer em família, a arte e a cultura tradicionais ou alternativas não são indispensáveis, e têm razão: vão ao museu com jardim e bar, e poucos entram nas galerias:
a atenção estética partilha os objectos de arte intencionais (obras de arte) com outras atenções despertadas por lugares, factos, práticas ou artefactos que não são obras com ambição e condição de arte, face a objectos atencionais também com efeito ou eficácia estéticos: a paisagem, a praia, os corpos próximos ou entrevistos, a dança, os desportos (como o ministro referiu bem a propósito do futebol, na Visão), os comeres, outros coleccionismos (soldados de chumbo, selos, discos, postais), etc.
As artes musealizadas, coleccionadas, eruditas, institucionalizadas não se substituem à possível arte de viver. E podem impedi-la. A arte não tem de ser uma chatice, um sacrifício. Não tem de ser difícil. As artes modestas podem ser mais felizes que as artes pretenciosas.
Elas transportam a memória da arte como veículo de dominação / instrução religiosa e polítíca, deuses e senhores, retratos de heróis e do poder. Transportam a memória ± recente do combate das chamadas vanguardas pelo novo contra a tradição da arte, a anti-arte, que foi recuperada e instrumentalizada (a tradição do novo, Rosenberg) na segunda metade do século XX, na mesma lógica das vanguardas políticas, leninistas ou não, por entre reclamações de autonomia dos artistas e recusa austera da encomenda e do divertimento (Adorno), ambições de pureza das disciplinas ( Greenberg) e proclamações do fim da arte (Danto).
Desaguaram na cumplicidade entre museus públicos e privados, fundações e galerias e colecções pessoais, que sustentam os valores de venda sucessivamente anunciados como recordes (100 milhões um último retrato de Klint), que nenhum "leigo" pode entender e aceitar. Entre ignorâncias, desinteresses e rejeições, o "mundo da arte" segue o seu curso, mas há mais mundos, que vivem com e sem arte.
Posted at 02:13 in 2023, Exposições, mercado | Permalink | Comments (0)
Posted at 11:24 in 2023, España, Santander | Permalink | Comments (0)
Posted at 11:04 in 2023, Júlio Pomar, Santander | Permalink | Comments (1)
Posted at 14:43 in 2023, Santander | Permalink | Comments (0)
Sem informação não há público.
Visitei a exp. no domingo às 4 da tarde e era o único intruso, para 4 ou 5 vigilantes.
Não se pode fotografar, avisaram, e andei a evitar a vigilância. Sirvo-me de fotos encontradas no facebook, neste caso de Pedro Alfacinha, feitaas durante a inauguração a 7 de junho.
Sem informação não há público. Visitei a exp. no domingo às 4 da tarde e era o único intruso, para 4 ou 5 vigilantes.
Não se pode fotografar, andei a evitar a vigilância. Sirvo-me de fotos encontradas no facebook, neste caso de Pedro Alfacinha.
Posted at 14:31 in 2023, España, Santander | Permalink | Comments (0)
Posted at 14:21 in 2023, España, Santander | Permalink | Comments (0)
3 em 1: o edifício sumptuosamente bancário, com mobílias, memórias históricas e adereços funcionais.
+ A colecção própria, das tapeçarias francesas do séc. XVIII sobre Alexandre o Grande a pinturas antigas e modernas, com salas dedicadas a Vieira da Silva, Malhoa, Hogan, Pomar (esta deixada sem visibilidade), e pinturas assinaláveis de Sousa Pinto, Menez, Nuno de Siqueira, Bual, etc
+ a exp temporária que o titulo NATUREZA VIVA apresenta e é muito recomendável, em colaboração com o MNAA. E com uma pintura de Joaquim Mir e outra de Dario de Regoyos.
A exposição e o itinerário pelo Edifício dos Leões, a sede antiga do Totta / Santander, são de facto uma oportunidade muito rica e muito diversa. E foi a ocasião em que entrei no edifício cujo programa de exposições se iniciou em 2019 com Joana Vasconcelos: 14 obras distribuídas por 3 pisos,.
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Não há um desdobrável ou folha de sala (inaugurou dia 7 jun) - mas há um diaporama comentado, por Bordallo 2 e Joana V., por exemplo. Não há um site e não é permitido fazer fotos.
É curioso observar que as obras vindas de Espanha se encontrem reproduzidas e comentadas no site da Fundación Santander (por ex. Regoyos e Mir), enquanto as portuguesas estão desamparadas de referências, por exemplo os "incêndios" de Joaquim Manuel da Rocha ou as 2 telas muito representativas de Souza Pinto, O calção rasgado ( «La culotte déchirée», Bretanha, Salon de 1883) e Molhado até aos ossos (1888, de um portuguesismo muito elogiado), de que não se encontra imagem digital.
Posted at 13:12 in 2023, Colecções, Santander | Permalink | Comments (0)
Posted at 01:55 in 2023, Arte oficial, crítica, Museus | Permalink | Comments (0)
Em 1947, quando Maria Lamas dá início às suas viagens pelo país para a publicação de 'As Mulheres do Meu País', tem 53 anos, e fora até há pouco directora de 'Modas e Bordados' (publicação de O Século), jornalista e romancista. "Resolvi arranjar uma máquina e ser eu, também, fotógrafa", lê-se numa notícia publicada no boletim 'Ler - informação bibliográfica', Publicações Europa-América (Maio-Junho 1948, pág. 1.
"A obtenção de fotografias, confessa, foi uma das maiores dificuldades que encontrou, pois queria-as ‘verdadeiras, expressivas, com valor documental e inéditas’. Acabará por assumir-se como repórter fotográfica, num trabalho pioneiro" – in 'O Primeiro de Janeiro', Porto, 28 de Abril de 1948 (entrevista na pág. "Das artes e das letras").
Os seus inúmeros retratos de mulheres devem ser vistos como uma grande aventura fotográfica, com um sentido de documentário social, de denúncia e esperança ou optimismo que tem de ser associado ao neo-realismo, como uma contribuição muitíssimo original ao movimento, embora não assumida e não reconhecida como tal no seu tempo (nos anos 40/50 o neo-realismo não teve fronteiras conceptuais fechadas e pode/deve ser assim identificada, ou entendida como aproximação ao movimento, sem que os autores dele se reclamem).
Herdeiras de uma prática fotojornalística recorrente - o retrato individual que acompanha as notícias na imprensa - , as fotos de ML têm uma verdade e uma energia contagiantes, que desde logo decorrem e comungam da situação concreta do inquérito e do voluntarismo da autora. Toda a ambição esteticista ou artística está (aparentemente) ausente: são documento e testemunho, tanto das mulheres encontradas no terreno como na atitude da autora. Certamente nunca foram expostas até 2009, na Gulbenkian de Paris por Jorge Calado (e seguramente não foram pensadas como objecto de exposição, ou colecção, ou edição autónoma), e nem mesmo foram incluídas ou referenciadas, ao que julgo, nas exposições documentais tardias sobre Maria Lamas (em especial, 1993, na BN, quando da entrega do seu espólio literário).
Não referida a edição de 1948-49 por António Sena na sua história, o que é incompreensível, as fotografias permaneceram como objectos não vistos, não reconhecidos, não valorizados, ignorados pelo neo-realismo oficial (o das EGAP de 1946 a 1950...) e também, naturalmente, pelos meios da "arte fotográfica", em que também o neo-realismo penetrou (Lyon de Castro, Cabrita, depois Gageiro e outros). São um não-dito da fotografia portuguesa, que por vezes continua a incomodar quem se rege por etiquetas de "estilos" ou modos corporativos, e não por dados visíveis.
São na maior parte das vezes retratos individuais e também de grupo. Retratos directos e frontais realizados nos locais de trabalho, como que interrompendo momentaneamente a faina. Noutros casos são mesmo momentos ou situações de trabalho que se ilustram, procurando registar a dureza do esforço físico. Totalmente despidas de efeitos de luz e sombra, feitas sob o sol directo e cru, as imagens prescindem também de toda a anedota ou nota de surpresa, à beira de uma impressão de banalidade que se desmente na cumplicidade dos olhares trocados, na firmeza, confiança ou dignidade dos rostos, na eficácia documental das roupas, utensílios e outros objectos visíveis, numa objectividade enxuta e tocante. A banalidade, o banal (como atitude de suspensão da arte), é um tema essencial da prática e da teoria fotográficas, que se manifestara uma década antes durante a "polémica do flagrante", entre nós (revista "Objectiva"), e que foi tendo desde início sucessivos afloramentos, e em especial em Walker Evans, na Pop, em alguma fotografia contemporânea dita conceptual.
Cada fotografia é acompanhada no livro por várias linhas de texto que ultrapassam a condição de simples legendas para fornecer informações complementares e comentar o contexto económico e social de cada situação.
Realizadas por um fotógrafo-não-fotógrafo (nem profissional, nem "amador", no sentido habitual de aficionado da arte fotográfica), que apenas por necessidade recorreu por algum tempo a um "caixote Kodak", estas fotografias suplantam o interesse das restantes imagens do livro, assinadas por um largo e heteróclito conjunto de outros autores, profissionais e amadores, vários amigos, alguns escritores, de que se destaca Adelino Lyon de Castro (foi identificado apenas como A. Lyon de Castro, e vem referido na ficha técnica da reedição de 2002 como Alberto...) e também Artur Pastor. Essa outra muito vasta antologia fotográfica documental que ML escolhe e inclui no seu livro comprovam uma forte relação com o medium, com o acesso a importantes acervos e o relacionamento com fotógrafos, ou seja, uma cultura fotográfica assinalável, para além da produção própria.
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José Neves escreveu sobre "O País das Mulheres de Maria Lamas" (capítulo 15: Mãe Pátria, A besta camponesa e a moderna operária, A mulher do leninismo) e para além da análise ideológica atendeu às fotografias e em especial às suas legendas, no livro Comunismo e nacionalismo em Portugal - Política cultural e história no seu XX, 2008, Tinta da China (doutoramento)
Apresentei-a num colóquio associado ao Centenário da CUF do Barreiro, em Outubro de 2008 (INDUSTRIALIZAÇÃO EM PORTUGAL NO SÉCULO XX. O CASO DO BARREIRO - Actas publicadas em 2010 pela Universidade Autrónoma de Lisboa) em que me ocupei do neo-realismo na fotografia portuguesa, de 1945 a 1963, em especial Maria Lamas e Adelino Lyon de Castro.
Em 1993 Maria Antónia Fiadeiro publicara "Maria Lamas - Biografia" (Quetzal Editores) - capítulo VI, com detalhada informação sobre o livro.
No seu livro Maria Lamas, Mulher de Causas - biografia breve, ed. Município de Torres Novas, 2017, José Gabriel Pereira Bastos acrescentou informações importantes para se entender o contexto ideológico e político, profissional e pessoal, da obra de M.L.
A fortuna crítica da edição de 1948-50 terá sido muito escassa (duas publicações acima referidas, citadas por M.A. Fiadeiro), e a edição de 2002 (-2004) parece ter passado desapercebida, pelo menos quanto à fotografia. Só em 2008 fui alertado e ainda consegui uns 4 ou 6? volumes na Fundação Saramago temporariamente instalada numa vivenda da Gago Coutinho, na passagem da Caminho para a Leya.
ver também https://fasciniodafotografia.com/2018/10/06/maria-lamas-as-mulheres-do-meu-pais-1958-2003/
Manuel Villaverde Cabral desperdiçou a oportunidade incluindo o livro numa secção "Contra-Discursos e contra-imagens" de um apressado volume sobre "Fotografia impressa e propaganda em Portugal no Estado Novo" (Muga, 2021), pp. 234-238, sem saber o que dizer da fotografia. Ver também "Texto e imagem fotográfica no primeiro contra-discurso durante o Estado Novo: «As mulheres do meu país» de Maria Lamas" - https://journals.openedition.org/cp/1970
Para o início de 2024 está anunciada pela Fundação Gulbenkian uma primeira exposição monográfica sobre M.L. fotógrafa, organizada por Jorge Calado.
Posted at 12:40 in Fotografia portuguesa, Maria Lamas, Neo-realismo | Permalink | Comments (1)
Tags: Adelino Lyon de Castro, António Sena, As Mulheres do meu país, Jorge Calado, José Neves, Maria Antónia Fiadeiro, Maria Lamas
Reuni neste volume textos de vários destinos e diversos temas, com predomínio do capítulo neo-realismo/novo realismo, mas alargando o horizonte até aos últimos anos da obra de Júlio Pomar, sem a pretensão de abordar todas as décadas, e foram oito... O neo-realismo é só o começo, muito referido quando se fala do artista, por fixação cómoda aos estilos colectivos, como uma marca indelével, que muitas vezes cega ou esconde, como se fosse um lugar fixo na história. Mas também acontece que ela, a história, é mal contada. É, por isso, de uma correcção de versões académicas e de correntes que em grande medida por aqui se trata, propondo diferentes pistas. O neo-realismo não é o que dele se disse. Como exemplo e eloquente ilustração, a abordagem de algumas obras então trocadas com outros artistas (Fernando Lanhas, Victor Palla, Mário Dionísio, João Abel Manta).
Quase tudo aconteceu na obra de Pomar depois do neo-realismo, e por isso o título. Nos anexos acrescentei 25 textos dispersos, não incluídos nas recolhas publicadas em 2014 pelo Atelier-Museu Júlio Pomar (AMJP), porque eram então desconhecidos. Prefácios para catálogos seus e de outros, uma palestra sobre o desenho e o pincel japonês («A mão contraditória»), apresentações de obras e de um filme, homenagens a amigos e lembranças de circunstância ou de oportunidade – desde 1947 a 2017, com uma gravação de ignoradas data e intenção que ficou a abrir a sequência por tratar da infância. E no segundo anexo publico a pouca correspondência com interesse que sobreviveu às mudanças da vida, sem ser coleccionada: cartas singulares da Galerie Lacloche antes da partida para França, dos amigos Mário Dionísio, Manuel Vinhas, Paula Rego, José Cardoso Pires, mais os extractos de duas dezenas enviadas aos filhos Alexandre e Vitor que percorrem os primeiros anos de Paris, e uma última escrita no Xingu. Outras cartas, trocadas com Menez na viragem dos anos 70/80, já tiveram edição própria do AMJP: ficou a saber-se que a pintura não é produção fácil para alguns pintores e isso raramente se escreve (só em cartas privadas?) e menos ainda se divulga.
Destaco um primeiro texto analítico mais longo que abriu o volume I do Catálogo Raisonné, em 2004, onde identifiquei a Geração de 45, a emergência simultânea e cúmplice de jovens artistas em Lisboa e Porto no fim da Segunda Guerra Mundial, e a originalidade do neo-realismo português no contexto dos realismos sociais e socialistas do mesmo tempo internacional – e aí se seguiu também brevemente a mudança sequencial da obra até 1968, fim desse volume. A informação vinda das Américas e a atenção cosmopolita, fortalecida pela falta de qualquer tradição realista nacional e moderna que fosse reconhecida pelos novos, determinaram a excepção do caso nacional, que teve, logo depois, para outros artistas de uma geração plural, derivas por surrealismos e «abstracções» próprias da época. Recordo também um muito anterior escrito polémico sobre a grande exposição «Os Anos 40» (Gulbenkian, 1982), que sumariou questões críticas não desmentidas e teve uma decisiva consequência pessoal – fiquei comprometido nestes terrenos, e os reparos permaneceram a desafiar o status quo. Aliás, os anos 40 perduraram por várias décadas, a vários níveis. São a grande ruptura do século XX, pela actualização da informação, o contacto internacional e a aparição de grandes artistas modernos com longevidade.
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Posted at 10:31 in 2023, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
Posted at 00:02 in 2023, Adelino Lyon de Castro, Maria Lamas | Permalink | Comments (0)
1. A família de Mário Teixeira da Silva decidiu não cumprir a sua intenção de doar a respectiva colecção ao Museu do Chiado (MNAC), contrariando o que o próprio repetidamente anunciara, também em públicio, e o que estava praticamente formalizado em documentos que ficaram à sua morte por assinar - como, aliás, divulguei por ocasião do funeral.A família, ou melhor a sua herdeira, a irmã, confirmara de início, junto do Museu, a vontade de cumprir o desígnio do galerista da Módulo e mais tarde mudou de comportamento, segundo informou a directora do Museu no lançamento do catálogo da colecção que em 2022 o Chiado apresentou. Estão em jogo valores avultados, para além da importância estética das obras coleccionadas, mas os bens imobiliários deixados pelo Mário deveriam ser suficientes para tranquilizar a herdeira.
O que escrevi em 2002 por ocasião da grande retrospectiva de Freud em Londres, na Tate Gallery (com digressão por Barcelona, La Caixa, e Los Angeles, MoCA). 10 páginas a meu cargo e ainda 4 sobre a "Família Freud" pela Isabel Margarida de Sousa. O Expresso não melhorou depois disso
EXPRESSO Revista 10/8/2002
1. "Em carne viva"
No século da abstracção e dos corpos desfigurados ou fragmentados, a pintura de Lucian Freud levou mais longe que nunca a observação da realidade humana. A Tate Britain expõe a sua obra (Room Guide: http://www.tate.org.uk )
Desde há várias décadas que a pintura de Lucian Freud é classificada como chocante, perversa, cruel ou mórbida, e o seu autor referido como um terrível e misterioso personagem. Hoje, perante a sua mais extensa retrospectiva de sempre, no ano em que vai fazer 80 anos, discute-se se é ou não o maior dos pintores vivos e é admirado como o último dos «Old Masters». Mesmo se há agora menos lugar para o escândalo, a pintura de Freud não deixou de ser perturbante pelas razões de sempre - a presença real (mais do que realista) da figura humana nos seus quadros, a excessiva veemência física dos corpos representados como carne, a nudez crua dos seus modelos femininos e masculinos observados sem complacência e sem pudor, a desmesura e a deselegância de algum desses modelos, a relação pessoal do pintor com os corpos devassados e expostos das suas mulheres, amantes, filhos e amigos. Vê-lo como um pintor consagrado não deverá significar um olhar distanciado e reverente sobre as obras, que continuam a ser incómodas e nos interpelam como um desafio irresolúvel.
mais 10 páginas a meu cargo e ainda 4 sobre a "Família Freud" pela Isabel Margarida de Sousa
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Posted at 02:54 in 2002, Freud, histórias modernas, Londres, TATE | Permalink | Comments (0)
QUEM imaginaria que os cavalinhos dos carrosséis iam ser um dia coleccionados como esculturas e admirados como um tipo de arte digno de investigações e de museus?
A noção de património é, ao contrário das aparências, muito pouco conservadora. O que ainda há poucos anos era duplamente desprezado por pertencer ao campo das diversões e por ser «popular» tornou-se cultura; o que se via como exacto paradigma do gosto «kitsch», a decoração das barracas de feira, por exemplo, redescobre-se como «art foraine» ou «fairground art» (arte de feira?), com os seus estilos nacionais e artistas reconhecidos.
Em Paris, «Il était une fois la fête foraine» (Era uma vez a feira popular, numa tradução aproximada) é uma gigantesca exposição dedicada a essas agora respeitáveis realidades. Instalada no Parque de la Villette, ela não se limita, porém, a cumprir os rotineiros rituais funerários da museologização com que as sociedades contemporâneas procuram compensar a velocidade das suas transformações: exposição-espectáculo para todos os públicos, é, ao mesmo tempo, um levantamento arqueológico das primeiras indústrias do lazer e uma «verdadeira» feira de diversões em funcionamento.
Concebida por Zeev Gourarier, conservador do Museu Nacional das Artes e Tradições Populares, de Paris, propõe uma visão panorâmica e histórica dos divertimentos públicos existentes entre 1850 e 1950, o período de ascensão, apogeu e decadência da «fête foraine». Associando a nostalgia e a investigação histórica, a festa e o museu, evoca num cenário feérico e caleidoscópico todo o mundo das atracções e diversões das feiras, desde que estas, nas grandes cidades do século XIX, perdem a sua função comercial a favor dos mercados permanentes.
1400 objectos salvos do esquecimento e restaurados foram cedidos por coleccionadores privados e por museus franceses (Museu do Livro e do Cartaz, de Chaumont; da Música Mecânica, de Les Gets; da Curiosidade e da Magia, da Publicidade, de História Natural, etc., em Paris) e também de Londres (National Fairground Museum) e Munique (Münchner Stadtmuseum). Com eles recriou-se a memória idealizada da magia dos antigos Luna Parques, entre o Segundo Império e a Belle Époque, mostrando como se foram lentamente transformando com as conquistas do progresso técnico — primeiro a aplicação da máquina a vapor aos carrosséis, em vez da energia humana e animal, depois a electricidade —, até à generalização dos carrinhos de choque e às mutações bruscas do segundo pós-guerra.
A exposição redescobre os artistas e as oficinas que deram corpo à escultura «foraine» no bestiário realista ou fabuloso dos carrosséis ou nos bonecos dos «jeux de massacre» (as barracas de pim-pam-pum), e recupera as pinturas ingénuas das fachadas ricamente ornamentadas dos antigos pavilhões — Toulouse-Lautrec foi autor dos telões que anunciavam a famosa La Golue na Foire du Trône, em Paris. Ao mesmo tempo, reconstitui a genealogia dos espectáculos populares, dos saltimbancos ao cinema, associando também as manifestações da feira-festa aos primórdios dos museus e à divulgação popular das curiosidades ou novos saberes científicos. Sem esquecer os autómatos e os pianos mecânicos, as «ménageries» (jardins zoológicos itinerantes), as barracas de tiro, os comes-e-bebes, os ilusionistas, os charlatães e as cartomantes, autómatas ou ao vivo.
A actual indústria da cultura debruça-se sobre os seus primórdios e recupera-os ludicamente em versão «clean»: sem os fumos das máquinas a vapor ou dos cigarros, sem a algazarra nem as oportunidades de transgressão que também caracterizavam a feira.
DIVERSÕES E ATRACÇÕES
«IL ÉTAIT une fois la fête foraine» ocupa a Grande Halle de la Villette — a galeria de vidro e aço que abrigou o antigo matadouro, sobrevivente entre as novas arquitecturas das Cidades da Música e das Ciências e da Indústria, nas proximidades do Géode e do Zénith (de facto, um verdadeiro «luna park» para o final do século). No seu interior, criou-se uma noite artificial com 3000 metros quadrados de película azul aplicada às vidraças e montaram-se ou reconstruiram-se as arquitecturas efémeras da feira, num cenário que não pretende ser uma reconstituição realista mas um «puzzle» onde coexistem, sem itinerário pré-fixado, os múltiplos estratos cronológicos das suas principais atracções.
Com a cenografia de Raymond Sarti (um colaborador de Jérôme Deschamps e Mathilde Monnier), o céu é atravessado por uma instalação voadora de 120 figuras de carrossel, criadas pelo mais célebre dos fabricantes franceses, Gustave Bayol (1859-1931), grande especialista dos carrosséis temáticos, enquanto 50 sistemas sonoros reproduzem as músicas dos órgãos mecânicos da Belle Époque e as vozes dos reclamistas («bonisseurs») que, nas paradas, diante de cada barraca, atraíam o público.
Ao fundo, a «colina das fachadas» reúne o melhor de um século de pintura e ornamentação populares, através de alguns monumentos miraculosamente conservados: as fachadas do carrossel-salão de Demeyer, de um comboio-fantasma, um palácio do riso, um museu dos monumentos imaginários, etc. Noutros pontos, grupos escultóricos de madeira, de quatro metros de altura — Vercingetorix e César segurando cavalos, um par de figuras femininas aladas, de drapejados esvoaçantes e coroas de flores electrificadas, um centauro e um cortejo de seis sereias — exibem-se como as obras-primas da escultura «foraine».
O espaço da exposição é estrurado em três áreas que correspondem às categorias principais das diversões de feira:
— os espectáculos de palco ou de pista (de «banque», banco, a raiz de saltimbanco e de banqueiro, ambos já presentes nas feiras medievais, mas com desigual fortuna posterior), onde actuavam os acrobatas, mágicos, marionetistas, actores e outros profissionais do circo, recordados em cartazes;
— os carrosséis e outras diversões mecânicas (os «tournants»), máquinas giratórias e de vertigem, como a grande roda, a montanha russa, as cadeirinhas;
— as barracas de atracções fixas («entresorts», de entra-e-sai), nas quais se penetrava para contemplar algum fenómeno ou colecção extraordinária. Outra categoria à parte inclui ainda os «stands» de tiro e demais jogos com alvos, como o traga-bolas e o pim-pam-pum («jeu de massacre»), cujas figuras eleitas, da sogra ao padre ou polícia, dos políticos em desgraça até Hitler e Mussolini, formam um catálogo paródico sempre actualizado de personagens a abater.
Entre as atracções, avulta a reconstituição do museu de cera do doutor Spitzer, instalado primeiro num Grande Museu Anatómico e Etnológico, em Paris, e depois circulante pela Europa desde 1885 até às vésperas da 2.ª Grande Guerra. Dezenas de figuras de cera reproduzem a «Vénus anatómica» e os seus órgãos internos, o parto, as proezas da medicina operatória e os corpos devastados pelas doenças. Os avanços higienistas da segunda metade do século XIX divulgavam-se assim como espectáculo de feira, ao lado de frascos com fetos aberrantes, curiosidades da natureza (a sereia mumificada e a bela adormecida, por exemplo) e raças exóticas. Entretanto, na galeria de cartazes desfilam outros corpos fabulosos, paralelos ao culto da forma física com a difusão da ginática: a «aerogina» (que voava sustida por fios invisíveis), o homem-leão, a mulher-cão, o homem-tronco, o homem-autómato a vapor.
Um outro pavilhão é dedicado aos primódios da fotografia e do cinema, com as maravilhas da óptica que começaram a divulgar-se como divertimento e ilustração, e que fizeram todo o itinerário das feiras até se instalarem, com a televisão, em casa de cada um: lanternas mágicas, cujas placas desde cedo ganham movimento através de sobreposições subtis de imagens ou da deslocação da vela que as ilumina no interior; vistas de óptica, onde um mecanismo simples muda as cenas pintadas, do dia para a noite; caixas de fotografias estereoscópicas, com a atracção suplementar de alguns tímidos nus. Cenas históricas, casos dramáticos e acontecimentos políticos, paisagens, monumentos e obras de arte projectavam-se pintadas em placas de vidro, até circularem os cosmoramas, georamas, uranoramas, panoramas ou dioramas, que antecederam o cinema, também apresentado com nomes fantasistas: o kinetoscópio, o praxinoscópio, vitoscópio.
ARTES E CURIOSIDADES
LUGAR do desregramento consentido, da vertigem e da fantasia, da ilusão e da aprendizagem, o parque de diversões foi, até há poucas décadas, o terreno experimental dos espectáculos vivos. Partindo das tradições do circo e do teatro, de marionetas ou de actores, foi no campo de feira que se inventou a ópera-cómica e a pantomina e foi também aí que, muito mais, tarde se divulgou o fonógrafo e o cinema. A sua invenção encontrou nas feiras o primeiro grande público, graças a Georges Méliès, o «mágico do ecrã», que era então um famoso ilusionista e último proprietário do Teatro Robert-Houdin. Numa sala de cinema «forain» projectam-se a Excursão à Lua, a Dança Serpentina, o Feiticeiro Árabe, As Rosas Mágicas.
Por outro lado, o mundo das diversões populares, inicialmente associadas às feiras comerciais e às festividades religiosas, foi desde sempre um canal privilegiado para a divulgação das novas curiosidades, associando à emoção do espectáculo e à destreza do jogo outras promessas de magia, de prazer ou terror, de fantasia e saber, sempre com fronteiras instáveis. Com as artes dos saltimbancos coexistiram desde cedo a apresentação de verdadeiros e falsos selvagens, de animais sábios ou exóticos, de fenómenos ópticos e de autómatos.
O desmoronar do «Ancien Régime» favoreceu a laicização dos divertimentos públicos e os jogos privados dos cortesãos foram-se comunicando a novos sectores da sociedade, instalados em parques fechados. O Tivoli parisiense do final do século XVIII deu lugar, sob os efeitos da Revolução Francesa, aos «luna park» ou parques de atracções, enquanto a Revolução Industrial trazia novos modos de vida urbana, incluindo o ócio e a marginalidade, e adaptava novas tecnologias às diversões. As preocupações cientistas do século XIX faziam chegar às feiras novas curiosidades e meios de circulação dos conhecimentos, num processo que é anterior — e depois paralelo, mas sempre mais democrático e fantasista — à voga das exposições universais, coloniais, industriais e outras.
As maravilhas e as curiosidades da natureza eram mostradas em gabinetes de física e museus variados (o «Panopticum anatómico», do Jardim das Tulherias, dedicava-se à etnologia, embriologia e frenologia, por volta de 1900). Antes dos jardins zoológicos, as «menágeries» (o termo francês também circulou em Portugal) apresentam os animais selváticos e exóticos e também as monstruosidades naturais ou os seres de fantasia fabricados pelos feirantes. As pinturas dos Louvre reproduziam-se em quadros vivos ou em projecções de lanterna mágica nas barracas de feira. Com a aplicação das máquinas a vapor, os carrosséis (herdeiros evolutivos dos torneios medievais, através de posteriores divertimentos de corte) puderam crescer, ornamentar-se com figuras cada vez mais grandiosas e acelerar a sua marcha.
Em Lisboa, logo no final do século XVIII, anunciavam-se para o Largo do Pelourinho, «Espectáculos da natureza, de subtilezas físicas e matemáticas», contando com «máquinas e figuras autómatas» e um «cosmorama com metamorfoses mágicas». Jardim Mitológico era o nome de um espaço de atracções, ao sítio do Calvário, que já encerrara em 1855, quando abriu a Floresta Egípcia, na Rua da Escola Politécnica. Aí actuou uma «troupe» de 16 atletas que usava o nome de «Companhia acrobática, ginástica, mímica e magnética», enquanto o «giro de argolinha» antecedia o carrossel a vapor que chegaria muito em breve.
No Luna Park que acompanhou a Grande Exposição Industrial de 1932, os visitantes, sempre segundo o registo único de Mário Costa (Feiras e Outros Divertimentos Populares de Lisboa, ed. CML, 1950), dispunham de pavilhões a que se davam os nomes de borboletas mágicas voadoras, carrossel mitológico, montanha russa com «water-chute», circo das cambalhotas, luta de automóveis eléctricos, labirinto chinês, «dancing» monumental, grande roda, glissagem, grande carrossel de choque, carrossel voador, «yo-yo», barcos-balouços, zepellins voadores, poço da morte, carrocel vivo (com cavalos amestrados), palácio do sultão («sonho feérico»), «stand» do prego («com curiosas atracções»). A oferta das diversões separava-se rapidamente do espectáculo e da divulgação. Mas, ainda há cerca de 10 anos, o Gigante de Moçambique podia ser visto na Feira de São Mateus, em Viseu, numa barraca onde se mostravam também criações monstruosas; e, esta semana, cartazes em castelhano anunciam uma «expoanimalia» no «luna park» montado ao cimo do Parque Eduadro VII.
«Il était une fois la fête foraine», exposição síntese sobre uma área de recente investigação e raro coleccionismo, contou com um super-investimento de 23 milhões de francos (700 mil contos; acima dos 21,8 milhões da exposição Cézanne), divididos em partes iguais pela Reunião dos Museus de França e a Grande Halle de la Villette, com mecenato da Eurest. O catálogo editado pela RNM (256 pág., 120 FF) é concebido como um dicionário, em formato de livro de bolso, e foi escrito também por Zeev Gourarier, que já fora autor da exposição «Os Franceses e a Mesa» e um dos responsáveis de «Versailles e as Mesas Reais na Europa».
Entretanto, o centenário do cinema tem estimulado a redescoberta dos seus primórdios e, portanto, também das curiosidades e espectáculos populares. Quatro «exposições-dossier» no Museu d'Orsay proporcionam, até 7 de Janeiro, outras aliciantes visitas a essas memórias recentes mas mais esquecidas como, por exemplo, a arte dos vitrais góticos — antecedentes em linha recta das imagens projectadas.
«Música e cinema mudo» mostra como antes de ser sonoro (ou melhor, falante) o cinema nunca foi verdadeiramente mudo, tal como já sucedia com os espectáculos de sombras e de lanterna mágica. Para além dos pianos e das orquestras que tocavam ao vivo, numerosos aparelhos procuraram sincronizar a música mecânica e a música gravada com as imagens em movimento. Camille Saint-Saens compôs, em 1908, uma música dramática síncrona para L'Assassinat du Duc de Guise e Erik Satie e Honeggar seguiram-lhe as pisadas.
«Lanternas mágicas, quadros transparentes» percorre as suas origens desde o século XVII, com prolongamento em «Antes do cinema: fotografia e movimento». Mais surpreendente ainda é a exposição «Magia e ilusionismo. Em torno de Robert-Houdin», onde se traça a história do ilusionismo e se destaca a figura daquele que mais contribuiu, também como inventor e homem de ciência, para a criação da moderna prestigiditação. Foi o desenvolvimento do racionalismo das Luzes e a secularização da sociedade, segundo sublinha o seu comissário, Nicole Savy, em «48/14. La Revue du Musée d'Orsay» (N.º 1, Setembro de 1995), que permitiu ao ilusionismo, separando-se da feitiçaria e do charlatanismo, afirmar-se como uma actividade puramente técnica e artística, e socializar-se em formas novas. Depois, com Méliès, o cinema nasceria como espectáculo no seio do ilusionismo e no mundo da «fête foraine».
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Havia artes e artistas, havia trabalho para quem não entrava nos salões, e estes, qd havia artistas em excesso, tentavam vender retratos pelos cafés. As artes não melhoraram e em muitos casos deixaram de ter sentido: não decoram, não embelezam, não valorizam as propriedades dos ricos. Também não “criticam”, candidatam-se ao museu, à assistência social =colecções do estado, e eles, os artistas candidatos ao museu, não se safam. Qd deixam de ser promessas, a vender barato, não vendem mais. A crítica não vende e não se estabelece a história. Quase todos os melhores ficam pelo caminho: Num país de pequeno mercado e indigência institucional passam mal.
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Anos Pop (capítulo de um livro a editar em breve: "Júlio Pomar. Depois do novo realismo"
«‘Em pintura, a descoberta da América foi decisiva’ - J.P., 1966
A coincidência entre a mostra do Atelier-Museu Júlio Pomar, «O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68» (15-05 a 29-09-2018), e a exposição «Pós-Pop. Fora do lugar comum – Desvios da ‘Pop’ em Portugal e Inglaterra, 1965-1975», na Fundação Gulbenkian (20-04 a 10-09-2018), em que não esteve representado, foi uma oportunidade propícia para a identificação dos anos Pop de Júlio Pomar, assunto sempre ausente dos ensaios sobre a sua obra. A exposição do ano seguinte do AMJP, «Formas que se tornam outras» (02-05 a 29-09-2019), veio confirmar essa leitura, a partir da reflexão «sobre o modo como o corpo, o erotismo, a sensualidade e a sexualidade atravessaram o percurso do artista». Uma outra exploração alargada sobre a galáxia Pop ocorrera já em 1997 (N1), também sem incluir Pomar, sendo a consideração da Pop sempre alargada muito para lá das suas formas mais canónicas ou mediatizadas, e poucos artistas são reconhecidos sob essa marca.
Para Pomar não se tratou da identificação com uma actualidade de grupo ou tendência, nem da adesão a um estilo colectivo, que aliás a arte Pop não foi. Não foi o efeito de uma estada em Londres. Importa ver a Pop na sua extensão como a resposta bem-sucedida à procura de alternativas à ordem abstraccionista que se entendia como caminho único, por entre procuras de retorno à figuração (que nunca terminara), de novas figurações e diferentes realismos. A segunda metade dos anos 50 dera origem às demandas de uma Figuration autre, em especial por parte do crítico Michel Ragon (na sequência de Dubuffet, Fautrier, Bacon e os Cobra: com Berni, Baj, Dado, Saura, Lebenstein, etc. N2). Por outro lado, na relação sempre atenta com a produção que lhe era contemporânea, as viragens de Pomar nunca foram mimetismo, ou efeito da novidade, mas algo que acontece por necessidade própria, e as influências, ou antes as informações, são acolhidas sem urgência.
«A arte Pop é um novo paisagismo bidimensional (two-dimensional landscape painting), no qual o artista responde especificamente ao seu envolvimento visual. O artista voltou a olhar à volta de si e pinta o que vê». Disse-o um dos seus mais calorosos defensores, Henry Geldzaher, no tempestuoso simpósio sobre a Pop, realizado no MoMA, logo em 1962. Mas também se afirmou que era um «estilo estúpido e desprezível dos ruminantes de pastilha elástica...» (Max Kozloff). A polémica era acesa, enquanto se popularizava nos magazines, com uma projecção nunca conhecida por qualquer corrente artística.
Em França, a apresentação da Pop norte-americana não foi particularmente tardia – chegou com a galeria Sonnabend em 1962, primeiro os neo-dadaistas, depois «Pop Art Américain» em 63, e viu-se no Salon de Mai de 1964; tornou-se então omnipresente e foi em grande parte rejeitada, face à vitória de Rauschenberg em Veneza, nesse ano. O contexto era o da defesa chauvinista dos «Novos Realistas» de Pierre Restany e logo a seguir das «Novas Figurações». O anarquista e influente Michel Ragon, que a defendia desde o início, disse que foi recebida pela crítica da época como «uma arte de analfabetos»; era rejeitada pela elite intelectual e falou-se de um novo assalto da Escola de Nova Iorque contra a cultura nacional, já na sequência do expressionismo abstracto do Pós-guerra (N3).
Pomar estava nos primeiros tempos da instalação em Paris mas em todo este período não se aproxima das «Mythologies Quotidiennes» e da «Figuration Narrative» de Gassiot-Talabot (1964 e 65), exposições que marcavam o tempo local. Não lhe interessa a «narração discursiva», escreveu num relatório de bolseiro da Gulbenkian, em Outubro de 1965. E o engajamento político de muitos não o atrai.
Posted at 12:29 in 2023, Júlio Pomar, Pop | Permalink | Comments (0)
Foi interessante a referência do Manuel Castro Caldas à 1ª estada de Júlio Pomar em Nova Iorque, que ocorreu em 1981 e em que o acompanhou na visita aos museus. Numa sessção realizada no dia 4 no Atelier-Museu, falou do contacto admirativo com os grandes formatos dos expressionistas abstractos aí vistos, sublinhando a propósito (ou a despropósito?) a importância da ruptura que a Pop trouxera à pintura ocidental, ausente em Pomar. É uma interpretação algo estranha.
De facto, os anos 60 em Paris (JP chegou em 1963) contaram com uma circulação considerável de exposições norte-americanas e nomeadamente de Rauschenberg na Galeria Ileana Sonnabend, duas em 1964, vencendo a Bienal de Veneza no mesmo ano. Pomar refere-se a Rauschenberg por duas vezes em entrevistas de 1966 (por ocasião da sua exp. na SNBA) e aponta-o, a par de Velazquez, como um seu artista de referência. "Em pintura, a descoberta da América foi decisiva" disse então a Mário Dionísio. Sobre Rauschenberg afirmava que "É a integração da imagem num novo conceito plástico. Quando a arte abstracta se preocupa com não distinguir o céu da terra, ele, partindo dos elementos mais corriqueiros, imagens gastas, batidas, consegue conferir um valor plástico àquilo que os nossos olhos anteriormente não viam. Uma roda, um movimento, funcionam da mesma maneira que um azul-cobalto. Uma refusão total do mecanismo da visão."
Para vários críticos essa é a ruptura (proto-pop) mais decisiva - depois da invenção da colagem que se associa ao cubismo e ao ready-made, nas primeiras décadas do século XX. Em cartas ainda inéditas Pomar refere-se ao apreço pelos pintores Pop britânicos e norte-americanos, e à distância face à "nova figuração" narrativa francesa. A mutação que conhece a sua pintura a partir de 1966-67, com as séries dedicadas ao Rugby e Maio 68 e com o posterior ciclo dedicado a Ingres e aos retratos, de óbvia relação com a Pop, mas então ignorada, é contemporânea de uma grande destruição de pinturas anteriores existentes no atelier (reproduzidas em Void* vol. III) e da realização das primeiras assemblages.
A "descoberta da América" ocorreu na 1ª metade dos anos 60 e não em 1981.
*
Comuniquei por mail ao Manuel CC o meu comentário à sua intervenção, colocado no Facebook e no blog, e ele respondeu logo depois. (O meu 1º texto era público e ele não me pediu reserva, pelo que me parece oportuno divulgar a sua resposta. Há poucas oportunidades de conversar sobre estes temas)
«Sim, mantenho tudo o que disse (não foi inventado em cima do joelho ontem...). Ter "descoberto" alguma coisa no Rauschenberg, gostar dele, ou dizer que gostava de Pop e de Matisse e que os artistas Pop admiravam Matisse, nada disso tem a ver com o facto da pintura do Júlio não ter um feeling Pop (idem para os objectos). Ele manobrou bem para não ser um pintor de Paris, mas não é por isso que se tornou subitamente numa pessoa que se encontrou (como os Pops, americanos, sobretudo) encurralado nas suas estratégias e encurralado nos seus procedimentos por causa de uma geração anterior heróica e nacionalmente (politicamente) erigida em mito, como eram os Expressionistas Abstractos.
O Rauschenberg sabia o que fazia quando apagou um desenho do De kooning: abria caminho para poder respirar. É uma situação histórica, sociológica, económica a milhas do que se passava na Europa e em Paris. E não era por "ver" em Paris trabalhos vindos dos EUA que ele podia encarnar nessa situação que não era e nunca seria a dele nem a dos franceses (nem dos portugueses). Semelhanças formais, iconográficas e outras, tal como afirmações ditas ou escritas, não nos dizem nada se as separarmos de uma análise dos procedimentos compositivos - no sentido mais lato - que o trabalho plástico deixa ver. Trata-se de responder à questão "O que é uma pintura?" num determinado momento. E o Pop respondeu de uma certa maneira, mais claramente nuns casos do que noutros, e o que mostravam é que achavam que uma pintura podia e devia prescindir de muitos dos procedimentos e pressupostos da geração anterior. As pinturas e trípticos (inteiramente) brancos e negros do Rauschenberg - que acompanharam de perto o gesto de apagar o desenho do De kooning - são gestos de libertação, nos quais o pintor prova a si mesmo que não responde da mesma maneira que os seus antecessores à pergunta "O que é uma pintura?". Só depois desse gesto pôde seguir para os Combine Paintings, etc.
Os franceses, todos estes anos passados, ainda não perceberam o quanto de "francês" ainda subsiste na sua maneira de fazer as coisas. Se italianos como o Clemente se safaram de ficar subjugados pelo peso histórico da sua herança cultural, foi porque outras tradições (a Índia e depois NY) vieram ajudá-los a fazer uma verdadeira secessão - um corte, também existencial. Não se trata de falar de misturas formais ou outras, trata-se de modos de encarar a missão de pintor num momento histórico determinado. O resto são as "aparências", isso que jaz na superfície das telas e dos objectos e que está lá para esconder coisas, não para mostrar. Há sempre muitas camadas nas obras de arte, mas elas têm uma ordem (ou uma hierarquia) e chegam ao nosso olhar segundo essa ordem, que se torna mais ou menos sistemática no interior de um dado estilo. Essa ordem diz-nos o que é prioritário e orienta o sentido. Enfim, é como eu vejo....»
*
É óbvio que discordo absolutamente. O desenho apagado (pedido ao De Kooning) é um gesto neo-dadaísta e não abre qualquer caminho. É uma atitude relacional que marca relações entre artistas e entre gerações de artistas de um mesmo meio local e intelectual. Tal como as pinturas brancas ou negras refazem os russos apagando os norte-americanos da época. O que importa são as pinturas seguintes e as combine paintings, que integram iconografias mediáticas.
De facto não entendo o q diz o MCC; não se pinta para "responder à questão "O que é uma pintura?" num determinado momento". É tudo um pouco mais complexo e menos programático. Julgo que é tudo mais experimental, mais vivencial.
Posted at 12:09 in 2023, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
In "Americanos", ed. Rodrigo Betthencourt da Câmara, 2022
"A vida em trânsito"
A fotografia no Moçambique pós-independência foi uma grande aventura colectiva, antes de se tornar um puzzle de artistas singulares. Ficaram a marcá-la alguns fotolivros, que prolongavam exposições e gestos de cooperação internacional: Moçambique, A Terra e os Homens, de 1981 com edição em Roma, 1984; Karingana ua Karingana, 1990, publicado em Milão a cura di Gin Angri; Maputo - Desenrascar a vida, 1997, em Maputo e Lisboa, por via de Nelson Saúte e António Sopa. José Cabral esteve presente e influente nestes dois últimos. Por fim, Iluminando Vidas, de Bruno Z’GFraggen e Grant Lee Neuenburg, Basel, 2002, um sólido panorama por 15 autores onde os seus nus femininos faziam a diferença.
Aquela aventura colectiva teve dois pioneiros, Ricardo Rangel e Kok Nam, mestiços que acederam muito cedo a uma imprensa colonial mais liberal que a de Lisboa e aí abriram as linhas de mudança. A que há a acrescentar Rogério (Pereira), 1942-1987, português em trânsito a partir da África do Sul desde 1968, bem informado do activismo negro. Além da informação portuguesa (o Século Ilustrado), terá contado o acesso aos magazines anglo-americanos e o exemplo empolgante dos fotógrafos da revista Drum, pan-africana. A aventura teve depois uma sede e uma escola, a Associação Moçambicana de Fotografia e o Centro de Formação Fotográfica, no qual se fizeram dezenas de fotógrafos mais ou menos perseverantes - José Cabral foi aí professor, em tempos de activa cooperação estrangeira, em especial italiana (o já referido Gin Angri). A aventura - a "escola moçambicana de fotografia”- cumpria então um estilo testemunhal e militante, para responder às urgências do socialismo, da guerra, das fomes e da reconstrução. Os tempos mudaram.
José Cabral (nascido em 1952, Lourenço Marques/Maputo) chegou por uma via original a essa história colectiva, praticando com um pai amador de fotografia e de cinema, técnico dos Caminhos de Ferro de Moçambique - aos 12 anos ofereceu-lhe um pequeno laboratório e uma câmara “caixote”. Por sinal, o que é relevante, também teve um homónimo avô paterno que foi governador (1926-1938), figura marcante no desenvolvimento colonial; tinha um parque com o seu nome na capital (hoje Parque dos Continuadores) e uma cidade no Niassa, hoje Lichinga. Branco, com um percurso militar difícil durante a guerra colonial, rebelde e de forte personalidade, ou irreverente, tornou-se rapidamente fotógrafo profissional em 1975.
Começou como fotógrafo no Instituto Nacional do Cinema e passou depois de alguma prática de foto-repórter (1979-1982) a programas documentais menos determinados pela urgência para o Ministério da Agricultura e a Unicef. E de autodidacta passou a professor no Centro de Formação Fotográfica, de 1986 a 1990. Foi o primeiro a distanciar-se da dinâmica jornalística: em vez de guerra, miséria, vítimas, ruínas e promessas de reconstrução, que podem ser ainda outra face humanista do exotismo, desenvolveu um olhar subtil: por exemplo, escolheu para Iluminando Vidas belíssimos nus femininos que não tinham qualquer pretexto etnográfico, eram retratos íntimos. A representação acabou por ter problemas nos Encontro de Bamako, no Mali, país de rigores islâmicos, mas Cabral recusou-se a trocar as imagens.
A sua fotografia – em especial a forma de a expor como trabalho de artista - foi-se tornando discretamente mais autobiográfica e até intimista, sempre sem deixar de ser documental e sem pretender ser formalista e narcísica mesmo nos seus muitos auto-retratos de rua; quando terá conhecido os de Lee Friedlander? Essa afirmação autoral, que foi passando por mostras colectivas e individuais, ganhando espaço como fotografia de exposição, era a outra luta que importava travar nas novas condições de crescimento e condicionamento do país, uma batalha já mais individualizada para abrir espaços de liberdade e criação. A exposição As Linhas da Minha Mão, que o consagrava no 3º e último Photofesta, os Encontros Internacionais de Fotografia de Maputo, em 2006, afirmava a dimensão pessoal de uma galeria de retratos, espaços e episódios que desdobravam um percurso de vida – encontros com pessoas, árvores, paisagens e lugares ao longo da história recente e da geografia de Moçambique. Usou o título de Robert Frank como explícita pista de leitura e como ambiciosa homenagem.
Artista fotógrafo de boa cultura visual e literária, que viajou pela América e pela Europa (Itália, em 1987, com uma bolsa de estudo, e Portugal, após 1999), o que era então raro, impôs através da independência da sua obra e das exposições pessoais a liberdade estética e a singularidade autoral, num país sem mercado para a fotografia independente e já sem instituições públicas intervenientes. Nesse sentido foi também um pioneiro, a seguir à geração dos dois mais velhos. Dos seus contemporâneos quero referir João Costa (Funcho) e Sérgio Santimano. Dos que se lhe seguiram as pisadas com vozes próprias destacam-se Luís Basto, Filipe Branquinho, Mário Macilau, Mauro Pinto - Moçambique continua a ser um país de fotógrafos, e eles ganharam por si mesmo circulação exterior.
A obra de Cabral ganhou mais visibilidade nas duas primeiras décadas do séc. XXI, em especial através de exposições subtilmente antológicas, equilibrando um lugar sempre algo à margem com o crescente reconhecimento público. As mostras eram revisões da carreira, mergulho nos arquivos pessoais e projectos temáticos, sempre com a revelação de inéditos. Depois de As Linhas da minha Mão chamaram-se Anjos Urbanos / Urban Angels - «são histórias de crianças: eu e elas», disse - e Espelhos Quebrados, auto-retratos de itinerância da vida presentes em reflexos intencionais.
Urban Angels / Anjos Urbanos, apresentada em Lisboa e Maputo, teve por assunto os seus três e depois quatro filhos e os filhos dos outros, a família e as crianças da rua, expondo variações de cor e de condição social, intimidades e desigualdades. Sem traçar fronteiras entre o particular, o seu espaço doméstico, e o geral, a observação social, há diferenças de situação que se não escondem, pelo contrário, e que tornam mais incisivo o testemunho. Com essas crianças é também a cidade que se habita, bem como o mundo rural e a presença deste na malha urbana. O fotógrafo auto-retratado está já presente no mesmo itinerário, e estará mais na mostra seguinte.
Espelhos Quebrados, em 2012, foi outra revisão da obra, mais desafiadora, onde o fotógrafo está sempre presente no fotografado, testemunha em campo, em situação e em cena. O trânsito faz-se por Moçambique e pelas viagens. Cabral também usou, em Lisboa, o título De Perto, manifestando a sua inscrição de autor-observador no mundo real que percorreu.
Por fim, até agora, o livro monográfico (ed. XYZ / Kulungwana, 2018) e a exposição Moçambique (Maputo e Beira, 2019, coordenação de Alexandre Pomar e Filipe Branquinho), antologiou-lhe toda a obra acessível e retratou o país como uma duplo panorama entrecruzado, íntimo e topográfico, identificando lugares mais percorridos e os temas de eleição. A sua obra afirmava-se como um grande documentário de Moçambique, ao mesmo objectiva e poética, percorrendo uma grande diversidade de géneros. Os retratos, as mulheres e em particular os nus, as árvores e as crianças são tópicos marcantes da sua obra, heterodoxa e indisciplinada -- as fotos têm sempre títulos discretos, topográficos --, associando densidade emotiva e objectividade documental. Não se trata de um discurso subjectivo e menos ainda formalista.
As imagens de José Cabral são simples e belas, são ternas e podem ser terríveis, mas sempre sem os cálculos de acaso procurado, artifício estético ou programa retórico que são tantas vezes a fórmula fácil da arte fotográfica. São ao mesmo tempo directas e carregadas de emoção, sem se distanciarem da vida à procura de metáforas. Há uma história pessoal e há muitas histórias colectivas nestas imagens de Moçambique.
A sua actualidade não era, não é, a da guerra civil, da violência urbana ou da miséria quotidiana - é de um panorama mais profundo e definitivo que se trata, à distância de muita fotografia africana que balança entre a vitimização e a encenação do exotismo. Não é um olhar indiferente à realidade do país, pelo contrário - é um olhar interveniente, construtivo, lúcido e livre. O país, Moçambique, está lá sempre, procurado num longo documentário, por vezes metódico, observado através uma outra forma de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e cúmplice, lúdicos e exigentes.
Faltava visitar a viagem à América, durante três meses em 1996, como bolseiro da Mid-American Arts Alliance, num amplo roteiro por New York, Washington, Chicago, New Orleans, San Diego / California, El Paso / Texas e no Novo México Santa Fé, Las Cruces e White Sands, do inverno gelado aos desertos do sul e volta. Muitos fotógrafos americanos editaram as suas Américas - quero lembrar Friedlander seguindo o Walker Evans de 1938, Stephen Shore, Eve Arnold, Burk Uzzle e Joel Sternfeld (1), mas em geral fizeram-no naturalmente por etapas, por lugares ou por assuntos - e poucos estrangeiros vindos de fora o tentaram depois de Robert Frank (Cartier-Bresson furtivamente em 1991, mas em demoras de 1935 a 1975, ed. Seuil e Afrontamento). Cabral não repete o que outros viram, e não se repete a si mesmo. Faz uma viagem de descoberta - uma aventura para quem saía de Maputo ao cabo da guerra civil - viagem que é também reencontro com as linguagens e as visões que de algum modo o formaram, vistos os filmes, lidos muitos livros, sempre um olhar culto.
Estão lá arquitecturas vertiginosas e outras rasteiras de beira da estrada, as pessoas no espaço urbano, os automóveis e os motéis, os letreiros e cartazes dos comércios, as marcas, The Al Capone Story, Billy the Kid, Chicago Bears, Famous Fashions, Stars (mas não há bandeiras). Estão as janelas que abrem vistas, de fora para dentro e ao contrário, e os muitos espelhos que reflectem e duplicam o visível. As árvores. Os auto-retratos que o inserem na observação, mais “de perto”, como sugeriu. É um visitante itinerante e rápido, em planos gerais que fazem a descoberta dos lugares e dos espaços, descoberta reflectida e reflexiva (interrogada, com distância) e são aqui menos um olhar aproximado sobre as pessoas, já que a barreira da língua não propiciava a troca de olhares frontais, que lhe são tão frequentes. Nunca é um olhar voyeur sobre figuras ou anedotas. Atento sem ser deslumbrado, mas empolgado.
(1) Walker Evans, American Photographs, The Museum of Modern Art, 1938; Lee Friedlander, The American Monument, Eakins Press Foundation, 1976; Stephen Shore, Uncommon Places, Aperture, 1982; Eve Arnold, In America, Alfred A. Knopf, NY, 1983; Burk Uzzle, All America / Mon Amérique, Aperture / Contrejour, 1984-85;
Joel Sternfeld, American Prospects, Times Books e Museum of Fine Arts, Houston, 1987.
9 fevereiro 2022
Posted at 16:39 in 2022, José Cabral, Moçambique | Permalink | Comments (0)
Por vezes a arte não é um exercício só formal, uma prática escolar, uma habilidade ou amabilidade ociosa, uma diversão ou uma facilidade, uma intenção ou a ocupação de uma parede, como quase tudo que vamos vendo à nossa volta, e às vezes acontece que uma obra exposta reage (comenta, acusa, intervém), age no presente, por exemplo sobre o que é a guerra actual a que assistimos com a confortável distância do lá fora, lá longe, como aliás sempre nos aconteceu, irremediavelmente periféricos.
Será uma imagem decorativa ou será incómoda? Será só uma peça de colecção, ou de museu? Como podemos conviver com ela, se nos interpela, incomoda e desafia? E é agora o contexto, as outras imagens expostas, as obras que as acompanham, de facto como um diário nascido no tempo da pandemia, antes de ser um projecto de exposição, que lhe asseguram a urgente necessidade de comunicar.
Ainda é possível representar a História? Pintura de história? Pintura de Guerra? Acontece que esta é uma representação sentida, pessoal, e é íntima também, verdadeira, e não apenas a oportuna apropriação de uma imagem mediática, então mais vista que criada. Há afinal quem desenhe, ou pinte, aqui a pastel de óleo e pastel seco, com uma qualidade material que se sente, mais do que só se observa, e com uma intensidade emocional que se faz partilhar; e a íntima verdade que aqui assim se reconhece importa-nos.
Os aviões, com pás giratórias de helicópteros, investem sobre a paisagem, sobrevoam-na e incendeiam-se, são ameaça e ameaçados, cenário de batalha, há explosões, fogo e fumo por toda a parte, um céu opaco, os foguetes descem a tracejado e uma casa arde. É a casa que vemos noutros desenhos, protecção ou prisão. Há outros desenhos que trazem imagens de terror e morte, rostos escondidos entre as mãos e caveiras. Mas logo aparecem flores, animais domésticos, paisagens amenas. A vida é diversa.
“Diário - dias incertos”, até 25 Fev.
Posted at 19:35 in 2023, Fatima Mendonça, Galeria 111 | Permalink | Comments (0)