"Retrato de grupo"
Europália, "Portugal 1890-1990", comissário António Sena
exposições em
Charleroi, Musée de la Photographie: Joshua Benoliel / "Regards Étrangers" (Jorge Calado) / "Les Années de Transitions, 1927-1967" / Helena Almeida
Antwerpen, Provinciaal Museum voor Fotografie, "Regards Inquiets"Expresso Revista, 23 de Novembro de 1991
PODERA citar-se a propósito da representação da fotografia na Europália o que se costuma dizer da garrafa meia cheia e meia vazia. Ou seja: o que se levou à Bélgica sob o título «Portugal 1890-1990» foi uma sumária, incompleta e parcial retrospectiva construída sobre apenas alguns momentos significativos da história fotográfica portuguesa; e foi, também, a primeira tentativa global de revisão histórica, o mais amplo panorama desde sempre reunido sobre a história da fotografia em Portugal, e ainda uma belíssima exposição. Não se poderá pretender, contudo, que se tratou de um primeiro passo para fazer aquela história: para lá de algumas outras contribuições episódicas, uma parte central do projecto resulta directamente da acção desenvolvida ao longo da última década pelo comissário António Sena e a associação/galeria Ether, sendo afinal essa mesma actividade que foi agora projectada numa maior dimensão institucional.
Como a falta de memória é uma marca essencial da fotografia em Portugal, importa referir objectivamente os acontecimentos incluídos no programa Europália. Começando por precisar que a representação enviada à Bélgica, embora constituísse uma exposição única, acompanhada por um só catálogo bilingue (francês e holandês), se apresentou dividida entre os dois museus da fotografia do país, um em Charleroi, na região francófona, e outro em Antuérpia, região flamenga.
No primeiro caso, o museu ocupa uma antiga abadia, tendo a nave central, de pequenas dimensões, sido dividida em três espaços atribuídos a mostras individuais de Joshua Benoliel, Sena da Silva e Helena Almeida. Uma outra sala reuniu fotografias de António José Martins, Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias, Gérard Castelio Lopes e Jorge Guerra, num itinerário que se desenvolvia entre os anos 30 e os anos 60 através de uma nítida sequência de autores.
Paralelamente, em mais duas salas e um corredor, num percurso labiríntico em torno de um claustro e entrosado com espaços de exposição permanente, apresentaram-se cerca de 70 fotografias feitas em Portugal por fotógrafos estrangeiros, numa selecção de Jorge Calado que incluía exemplares pertencentes à colecção que ele próprio reuniu para a SEC (mostrados parcialmente em Janeiro na Galeria Almada Negreiros), mais alguns da Fundação de Serralves e outros expressamente adquiridos já este ano e para esta exposição graças a uma dotação da Caixa Geral de Depósitos.
Quanto a Antuérpia, o Museu apresentou em duas galerias de mostras temporárias uma selecção de fotógrafos portugueses actuais, incluindo, na primeira, de novo G. Castello Lopes e Paulo Nozolino, José Rodrigues, Rui Fonseca, José Francisco Azevedo e Daniel Blaufuks; e na segunda galeria sequências e «instalações» fotográficas de Mariano Piçarra, Augusto Alves da Silva, António Júlio Duarte, João António Motta, Francisco Rúbio e António Carvalho. Num outro piso, na zona de exposição permanente, apresentou-se Victor Palia e Costa Martins com 10 painéis referentes ao livro de 1959 Lisboa, Cidade Triste e Alegre (originais de paginação, colagens com anotações, folhas de contacto, etc.) e mais nove fotografias de recente reimpressão (Lisboa e Tejo e Tudo), ainda como extensão autónoma do panorama relativo aos anos 50.
O CATALOGO, agregando as obras separadas pelos dois lugares de exposição num único discurso, constitui de certo modo um objecto autónomo e no qual é mais compreensível a concepção global do projecto. Embora se trate de um volume de boa qualidade de impressão, ficou ainda longe de corresponder às ambições do comissário, uma vez que o número das reproduções (de página inteira) foi reduzido a menos de metade das provas expostas, algumas reproduções atraiçoaram o carácter de sequência ou instalação dos trabalhos, as legendas ficaram incompletas e os dados técnicos foram drasticamente abreviados por dificuldades editoriais belgas. Neste caso, o confronto com outras edições de A.S. é uma curiosa prova de como, às vezes, se sabe fazer muito melhor em Portugal do que no «estrangeiro».
Seguindo a sequência dos capítulos do catálogo encontramos primeiro Joshua Be- noliel, foto-repórter particularmente activo entre 1903 e 1918, e que pela primeira vez foi objecto de um trabalho sério de selecção e reavaliação; depois o panorama relativo a «Os anos de transição» (1927-1967), onde se incluiu naturalmente Vitor Palia/Costa Martins; o conjunto dos «Estrangeiros olhares» (1930-1989); e, por fim, os «Olhares inquietos» (1980-1991), abrangendo estes tanto o trabalho de Helena Almeida como a mostra colectiva de Antuérpia. Todas as secções são precedidas por textos de António Sena, com excepção da fotografia estrangeira que é prefaciada pelo respectivo coordenador; no final, todos os autores expostos são objecto de exaustivas notas biográficas e bibliográficas. Parte significativa dos textos de A.S. constituem extractos do livro Uma História de Fotografia (da colecção «Sínteses da Cultura Portuguesa», editada também por iniciativa da Europália na lN-CM).
As duas exposições e essas duas publicações representam, assim, um todo que provisoriamente constitui o mais ambicioso e completo trabalho de revisão histórica. Na sua totalidade estabelecem-se como uma data decisiva no entendimento da fotografia portuguesa, como primeiro esforço de sedimentação de um «corpus» estabelecido e estudado, ao qual terão de se referir todas as contribuições futuras. Importa agora saber se, depois do momento Europália, surgirão outros estímulos para prosseguir na mesma direcção, ou se, como é usual, a falta de iniciativa institucional (indispensável nesta matéria) abrirá um novo intervalo de esquecimento até uma próxima data. Porque pensar num museu da fotografia em Portugal é ainda ambição irrealista.
É NECESSÁRIo, entretanto, referir algumas condicionantes conhecidas que enquadraram e limitaram o programa expositivo. Em especial, deve saber-se que foram muito reduzidos os meios financeiros disponíveis para esta iniciativa (3710 contos para a produção de Benoliel e 1280 contos para o sector contemporâneo), para além de só muito tardiamente os mesmos terem sido confirmados. De facto, o projecto foi inicialmente pensado como levantamento dos «Grandes momentos da fotografia em Portugal», e devia iniciar-se com a apre- sentação de dois mestres do documento fotográfico oitocentista, J. A. da Cunha Moraes e Francisco Rocchini. Razões financeiras e o atraso no estabelecimento do contrato de produção fizeram desaparecer essa abordagem ao século XIX (tal como ameaçaram o panorama dos anos de «transição»). Graças à própria colecção do Museu de Charleroi, no entanto, foi exposta fora do programa oficial e sem referência no catálogo, uma série de 11 «vistas» do álbum de Rocchini sobre o Mosteiro da Batalha, em tiragens sobre papel albuminado de 1870-75. (Assinale-se, a propósito, que Cunha Moraes é actualmente mostrado em Coimbra, em especial através de espécimes cedidos por um coleccionador italiano.)
Quanto a Benoliel, as 34 fotografias expostas resultam de um trabalho de investigação desenvolvido por António Sena na Fototeca da Direcção Geral da Comunicação Social/Palácio Foz, não se tendo trabalhado com os negativos pertencentes aos arquivos da Câmara de Lisboa e outros. Da colecção daquela Fototeca foram inventariados e fichados informaticamente dez mil negativos, sendo realizados 500 diapositivos e 60 provas arquivais, numa colaboração que irá ter continuidade e será publicamente exposta.
Quanto ao sector dos «anos 30/60», ele não pôde ser incluído no protocolo referente à produção da exposição e só foi apresentado graças ao interesse manifestado pelos dois museus e à colaboração dos próprios autores e da galeria Ether, em geral retomando exposições que já apresentara. A não inclusão de Fernando Lemos é uma lacuna particularmente gravosa, mas a recuperação do seu trabalho fotográfico dos anos 50, por iniciativa da Gulbenkian, continua a aguardar-se.
Passando ao sector contemporâneo, importa ressalvar que a ausência de Jorge Molder (referido por A.S., no catálogo, a par de G. Castello Lopes, Helena Almeida, Nozolino e José Rodrigues, como um dos autores que «conheceram, desde 1980, os percursos mais densos e mais regulares») se deve à recusa do próprio fotógrafo - sabe-se que as dificuldades de relacionamento e colaboração entre fotógrafos e entre os agentes da divulgação da fotografia são, infelizmente, uma outra constante decisiva no panorama actual. Entretanto, a inclusão de Helena Almeida partiu de uma proposta de George Vercheval, director do Museu de Charleroi, e foi apoiada pela galeria Valentim de Carvalho.
A mostra intitulada «Olhares inquietos», para a qual o comissário contactou três dezenas de fotógrafos com vista à selecção das obras a incluir, constituiu em parte a actualização de uma colectiva itinerante realizada por António Sena para a SEC em 1989, sob o título «Nível de Olho». Registou-se agora a integração dos «consagrados», que aquela mostra intencionalmente deixara de fora, e repetiu-se, com novas peças, a participação de metade dos fotógrafos então expostos (M. Piçarra, D. Blaufuks, António Carvalho, F. Rúbio e J. António Motta).
Quanto aos «Estrangeiros Olhares», verifica-se a incorporação de 11 autores não incluídos no catálogo 1839-1989 - Um Ano Depois (ed. SEC. 1990), onde figuravam já 18 fotógrafos com passagem por Portugal, ou por comunidades emigrantes: os novos fotógrafos são Thurston Hopkins (1950), Cartier Bresson (três fotografias de 1955), Peter Fink (duas, anos 50 e 60), Alma Lavenson (1962), Esther Bubley (1965), Godfrey Frankel (1978), Harry Callahan (três, 1982, cor), Larry Clark (1987), Tod Papageorge (duas, 1989, cor), Lynn Bianchi (1989), Dick Arentz (três, 1990). Não referida no catálogo, apesar de exposta em Charleroi, há ainda a apontar uma fantástica fotografia do Terreiro do Paço de 1942, de Cecil Beaton, reeditada a partir da colecção do Imperial War Museum, de Londres. Por outro lado, também cresceram as representações de Neal Slavin (graças à colecção de Serralves), Edouard Boubat (mais 3 fotos dos anos 50), Brett Weston (1960) e Koudelka (1976).
Particularmente significativo é o alargamento do horizonte temporal da colecção até ao presente, com o acolhimento de trabalhos como os de D. Arentz (provas impressas por contacto directo do negativo, com um aparelho de grande formato, sobre desertas paisagens urbanas) e L. Bianchi (recomposição de pormenores arquitectónicos, em estúdio, com modelos geométricos e nus, num trabalho que recorda o de F. Drtikol nos anos 20), e ainda como as fotos a cores de H. Callahan, sobre fachadas de casas tradicionais, ultrapassando-se assim os pólos dominantes dos olhares estrangeiros sobre o exotismo da Nazaré e de uma Lisboa arcaica e misteriosa, nos anos 50-60, ou mais tarde sobre a «revolução dos cravos».
Paralelamente, o Museu de Charleroi acolheu extra-programa um fotógrafo belga, Michel Waldmann, que visitou repetidas vezes Portugal e apresentou algumas calorosas visões jornalísti- cas, entre outras de efeito mais anedótico.
A recepção interessada das exposições na imprensa de lingua francesa, pelo menos, pode ser registada através de dois títulos significativos: «Photo: un certain regard sinon une forte présence», no «Le Soir», e «Cent ans d'images et de déclics - pour la toute première fois de son histoire, la photographie portugais s'exporte», no «L'Express/Le Vif». A fotografia portuguesa era desconhecida, mas existe - é essa a principal ideia transmitida.
NUMA ordem inversa da da cronologia, acrescentem-se ainda à descrição da iniciativa algumas rápidas anotações criticas sobre os materiais expostos. Na secção contemporânea destacam-se naturalmente os trabalhos de Nozolino e Castello Lopes, e também os de José Rodrigues, fotógrafo com actividade profissional na Holanda que importaria conhecer melhor, sendo todos eles mostrados em breves selecções retrospectivas. Se poderia ser oportuna a sua mais larga representação, não deixa de estabelecer-se uma distinção nítida entre consagrados e novos, uma vez que dos primeiros se expõe uma selecção de trabalhos diferenciados e isoladamente de grande interesse enquanto os restantes mostram um só projecto tematicamente estruturado. Entre estes, confirmam-se abertamente os itinerários recentes de Augusto Alves da Silva e António Júlio Duarte.
A. Alves da Silva apresenta uma sequência de seis imagens alternadas de denúncia de situações de degradação da paisagem algarvia, utilizando uma abordagem friamente distanciada e «neutral» em fotografias de enquadramento frontal sob uma luz constante que privilegia uma gama uniforme de cinzentos; A. Júlio Duarte mostra uma reportagem feita em Macau, com 10 fotos de pequeno formato (P&B), onde a criação de espaços fragmentados e ilusionísticos se prolonga em jogos subtis de máscaras, cartazes e palavras.
Noutro pólo de menor eficácia, no qual a procurada dimensão experimental não parece ultrapassar uma certa inconsequência, o amadorismo ou o exercício privado, encontram-se as contribuições de António Carvalho (Folhas Mortas), trabalho literal e certamente ingénuo de impressão fotográfica, colagem, montagem, coloração de folhas de árvores; de Francisco José Azevedo, «homenagem aos polípticos flamengos e à fotografia de cabeceira» (A.S.); de Daniel Blaufuks, «polaroids» anódinos em caixas com iluminação interior, numa possível referência à publicidade e ao vídeo que constitui mais uma deriva num trabalho que parece multiplicar-se em direcções pouco conciliáveis; e António Motta, com uma instalação dedicada aos «arquétipos técnicos e sensoriais da imagem fotográfica» (A.S.), transportando uma pouca partilhável ambição «poética» .
Para lá destas propostas que apenas parecem testemunhar a relação aberta do comissário com a ortodoxia fotográfica, resultam mais interessantes embora carentes de melhor confirmação o trabalho de Mariano Piçarra, as videografias de Francisco Rúbio e a presença do estreante Rui Fonseca com uma série de fotografias da orla marítima de uma discreta dimensão onírica.
É óbvio que se trata aqui de um panorama incompleto (talvez o domínio da foto-reportagem, onde se conhecem alguns trabalhos de segura qualidade, dificilmente pudesse ser apresentado sem um outro contexto integrador), ou de uma selecção afirmativa de interesses próprios do comissário. Mas no terreno das exposições colectivas é perigoso ambicionar consensos e equlíbrios: o que importa é multiplicar as iniciativas, assegurar a independência de comissários competentes e avaliar os efeitos da concorrência entre as suas sucessivas propostas.
A qualidade própria dos trabalhos que representam os anos 30/60 é já conhecida de exposições anteriores. Não se esperará de carreiras ensaiadas à margem de condições mínimas de profissionalização, e quase sempre rapidamente interrompidas, uma produção globalmente competitiva com a dos autores que constituem a história geral da fotografia. Mas todos os fotógrafos incluídos (e também o ausente Fernando Lemos) desenvolveram um trabalho de resistência frente aos valores dominantes no seu tempo e uma incorporação experimental da informação externa, expressos no seu visível interesse simultâneo pela descoberta do país e da fotografia, que se transmite nessas imagens só recentemente recuperadas. Uma outra revisão a fazer deveria agora permitir o confronto directo dessas fotografias, independentemente de uma nítida afirmação de autorias, com uma outra selecção mais ampla feita sobre o foto jornalismo e a fotografia documental do tempo (a arquitectónica e etnográfica, em especial), bem como com o trabalho dos amadores e salonistas seus contemporâneos.
Mas de todo o projecto retrospectivo, é a obra de Benoliel que emerge com definítiva clareza, finalmente liberta das muitas utilizações oportunistas e amadoras de que tem sido presa fácil - e que num primeiro momento justificaram até a rejeição do fotógrafo pelo museu belga. A importância de alguns momentos historicamente decisivos que fixou para «O Século», veio somar-se o encontro com uma efectiva originalidade na prática do fotojornalismo, muitas vezes atenta a um lado mais intimo e inconvencional do testemunho informativo. Veio acrescentar-se a abordagem de um quotidiano da cidade feito de situações «insignificantes», despidas de qualquer retórica ou estratégia anedótica, bem como o interesse por géneros fotográficos menos associados à sua fama mais corrente, como os interiores e as «naturezas mortas». Por outro lado, a exposição ensaiou a indispensável revisão do trabalho de Benoliel em articulação com as condições práticas da divulgação das suas fotografias em «O Século» e na «ilustração Portuguesa», nomeadamente com atenção ao grafismo envolvente, paginação, legendas e textos anexos.
Efectiva redescoberta de Benoliel, como grande fotógrafo e como pioneiro da reportagem moderna dos anos 20, esta exposição mostrou mais uma vez que a autêntica recuperação patrimonial é indissociável do rigor metodológico e técnico, como o trabalho de A.S. tem demonstrado em exposições e catálogos. A retrospectiva nacional e uma edição condigna impo~em-se agora
continua...
Charleroi: espaços individuais dedicados a
Joshua Benoliel / Sena da Silva / Helena Almeida
+ uma sala com
António José Martins, Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias, Gérard Castello Lopes e Jorge Guerra
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Olhares Estrangeiros (I)
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