Arquivo * EXPRESSO Revista de 9-Set.-95
"Arte total"
O Centro de Arte Moderna apresenta uma instalação do mais famoso dos artistas ex-soviéticos: Ilya Kabakov: "Incidente no Museu ou música aquática" põe em cena a relação entre a palavra e a imagem, criando personagens e obras que questionam a realidade e a memória da arte
Os Encontros Acarte são um contexto particularmente atraente para a apresentação de Ilya Kabakov, o mais famoso dos artistas ex-soviéticos, autor de «instalações totais» que é possível considerar como «peças de teatro onde os objectos se substituem aos protagonistas» (Robert Storr). Exposição ou espectáculo, Incidente no Museu ou Música Aquática, apresentado em 1992, em Nova Iorque, e remontado na galeria do Centro de Arte Moderna, é uma criação narrativa e cenográfica, uma obra de ficção plástica (?), em que a pintura, a música, a escrita e o espaço onde tudo acontece se integram num todo indissociável.
O visitante encontra à entrada, no lugar habitual, o título da instalação e os nomes de Kabakov e do compositor Vladimir Tarasov, acompanhados por um texto sobre o que julga ainda tratar-se de uma exposição — é provável que então não o leia. Verá a seguir cartazes onde se anunciam obras do pintor Serguei Y. Kocholev, oriundas do Museu de Arte de Barnaul, e catálogos seus mostrados numa vitrine, entre outros editados pela Gulbenkian; retira depois um folheto de apresentação e entra directamente para a sala de um antigo museu, inundada pela água que cai do tecto sobre recipientes improvisados.
Nas paredes há pinturas identificadas por tabelas que as situam entre os anos de 1926 e 1936, nas quais reconhecerá imagens de um realismo de tradição russa, embora modernizado por enquadramentos fotográficos e pela influência de Cézanne, com cenas aproximáveis do realismo socialista mas que não são as imagens heróicas da construção do poder soviético ou dos seus líderes. Encontrará também um curto texto assinado por M. Snitkova, historiadora de arte, onde se faz a evocação biográfica de Kocholev.
Talvez o visitante, então já fisicamente integrado na «obra», tenha reconhecido a musicalidade dos sons da água que pinga ou se recorde da referência ao compositor. Talvez utilize mesmo um dos sofás da sala para assistir ao «concerto»... ou para procurar resposta às suas dúvidas no texto impresso que traz consigo. Aí lerá que «nesta instalação inventada de forma totalmente artificial, há todavia um elemento 'sério', que nada tem de brincadeira; trata-se de uma peça composta a partir de sons aquáticos pelo compositor Vladimir Tarasov» — enquanto os quadros, diz-se, «foram pintados por um artista fictício».
No mesmo folheto, que se entenderá como um elemento da obra total, tal como as paredes do museu, a inundação, a luz, as pinturas e os sons, é proposta uma «chave» para a instalação: «O conceito subjacente a esta obra é, parece-nos, muito simples. O ponto de vista muda de repente e a catástrofe, a destruição, transformam-se em criação, em construção. (...) a destruição de uma situação artística (impossibilidade de contemplar tranquilamente uma obra pictórica) engendra de forma inesperada uma outra criação não menos artística: o aparecimento de uma sala de concerto, dos seus 'instrumentistas' e dos seus 'ouvintes'. Tudo foi invertido, virado do avesso.» O texto é anónimo e a sua prosa impessoal («parece-nos» ?!) é ainda mais um jogo com a noção de autoria — com a individualidade e a subjectividade que é usual atribuir ao criador artístico —, e com o reconhecimento de uma qualquer realidade finalmente estável.
Não se está apenas, como se poderia pensar num primeiro momento, perante uma possível metáfora da desagregação do sistema soviético, nem diante da encenação literal de uma demolidora problematização do sistema da arte. Mas também é certamente razoável que não nos detenhamos na chave fornecida, depois de uma experiência em que os níveis de realidade, as atribuições de autoria, os personagens e as obras vão sendo sucessivamente denunciados e recriados, num jogo de extrema ironia a respeito da ambição e do reconhecimento da arte.
Se a precaridade de uma iconografia oficial é sugerida pelo incidente no museu soviético, notar-se-á que Kabakov poderia ter-se apropriado de reproduções de obras clássicas do realismo socialista, em vez de produzir ele própio pinturas originais «de maus pintores soviéticos, isto é, de outros artistas ou de mim prórpio quando trabalho por encomenda», como diz numa entrevista onde também afirma: «Parei de pintar porque não tenho talento» (catálogo do Centro Beaubourg, 1995).
Ao atribuir obras reais a um fictício pintor supostamente prestigiado (e ao criar a outra ficção de um concerto, convocando um compositor que realmente existe, segundo testemunhos credíveis), é o carácter precário que tem sempre a notoriedade e a memória de um qualquer artista que está em questão — e, afinal, também o reconhecimento do próprio Kabakov, que antes foi oficialmente ignorado no seu país e tem hoje uma carreira institucional em todo o Ocidente. E é igualmente o contexto expositivo como elemento e condição do sentido das obras (o museu, a história da arte, a crítica — e a «arte do contexto» que domina grande parte da criação artística actual) que aqui se põe em cena.
Esses são alguns dos temas constantes na obra de Kabakov, em especial nas instalações de grande escala que começou a realizar depois de ter abandonado Moscovo em 1988. A memória e a sua perda, o que sobrevive, ou não, de uma existência individual, entre histórias privadas e história universal, pode ser questionado a respeito de um artista, no quadro óbvio do museu, mas também no caso da vida do indivíduo «anónimo» — outras instalações constituem biografias de personagens vulgares, apresentando documentos anódinos ou colecções de objectos pessoais. Por outro lado, é sempre com a relação entre a criação plástica e a palavra (a efabulação, a descrição, a crítica, a teoria) que Kabakov trabalha, em instalações onde a ficção — e não o discurso filosófico, semiológico ou político sobre a arte, como procura de uma verdade teórica — é um derradeiro sentido englobante.
Na instalação do CAM, o jogo infindável onde os significados se contradizem, se desmontam ou se suspendem, e em que as autorias se afirmam como personagens sem que uma voz autoral se imponha como última, Kabakov coloca-se numa posição radicalmente céptica sobre o que é a definição da arte, pondo à prova o sistema institucional da arte e as práticas de recontextualização dos objectos.
Se aqui se propõe a ideia de um desastre que se transforma em criação, em outras obras assiste-se à exposição das condições de vida do cidadão comum, à museologização do lixo ou, em Les doutes de l'artiste ou la conspiration des incapables, Berlim, 1994, à recuperação de pinturas que foram rejeitadas e destruídas por um artista e que são expostas por iniciativa de um crítico que se serve de referências a Derrida e a Foucault... Notar-se-á, entretanto, que a esse «não importa o quê» apresentado como obra de arte não basta a recontextualização num quadro instuitucional, mas ocorre sempre a sua inscrição numa situação alargada em que o contexto é ele próprio um objecto de criação ficcional, numa relação entre artes plásticas e literatura que se abre em abismo sem conclusão possível. A «dialogicidade polifónica» de Bakhtin é habitualmente invocada a respeito de Kabakov e dois outros artistas poderiam ser recordados, Marcel Broodthaers e o seu Museu das Águias e também Patrick Corillon.
Nascido na Ucrânia em 1933, Kabakov ocupou sempre uma insólita posição entre os artistas soviéticos, oficiais e da oposição: formado como ilustrador em 1957 pôde assegurar uma estabilidade profissional impossível para os vanguardistas, graças a uma carreira regular de mais de 150 livros ilustrados, ao mesmo tempo que integrava o meio artístico soviético não oficial e se tornava conhecido no Ocidente com desenhos e albuns onde se ensaiavam versões absurdas do mundo do quotidiano, que em muitos casos viria a desenvolver nas obras posteriores.
Segundo diz Kabakov, as suas obras actuais pretendem «assimilar as outras formas de artes plásticas mas também outros géneros (a literatura, a música, o 'show'), isto é tornar-se o 'Gesamtkunstwerk', a obra de arte total, com que se sonhava no princípio do século». Mas são também todas as suas instalações que se podem entender como fragmentos de uma obra total que é a criação continuada de Kabakov, e que ele próprio compara a uma árvore com os seus diversos ramos, ganhando cada criação isolada o seu possível sentido na relação que estabelece com as restantes obras, como partes de um único universo ficcional.
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