Arquivo Expresso 04-07-98
"Espanha, reforma e revolução"
Renovação, ruptura e continuidade na arte espanhola das primeiras décadas do século. Entre Paris e o interior, ordem e desordem, vanguarda e classicismo
DE PICASSO A DALÍ, AS RAÍZES DA VANGUARDA ESPANHOLA
Museu do Chiado (Até 25 de Setembro)
APESAR da proximidade e de diversos paralelismos de ordem histórica e cultural, o panorama artístico espanhol das primeiras décadas do século é praticamente desconhecido em Portugal, excepto quanto aos nomes que ascenderam à notoriedade internacional em Paris.
A verdade, porém, é que esse mesmo panorama foi por muito tempo igualmente ignorado em Espanha, em consequência do corte instaurado pela Guerra Civil e pela ditadura franquista com o anterior passado mais renovador e cosmopolita. Só nas últimas décadas tem sido possível reapreciar uma evolução que foi em grande medida ocultada pelo conservadorismo do regime, mas que ficara também brutalmente interrompida pela morte de alguns artistas durante o conflito, pela involução das carreiras de vários outros e pelo exílio de muitos. Aliás, salvo nos casos de figuras de primeiríssimo plano, como Picasso, Miró e Dalí, também as próprias notoriedades alcançadas por outros espanhóis em Paris acabariam por desvanecer-se após a Segunda Guerra, com a progressiva perda do lugar central detido pela capital francesa e a institucionalização da «tradição do novo» como paradigma da modernidade, à custa de muitas simplificações e omissões.
A exposição trazida a Lisboa pelo Pavilhão de Espanha na Expo é uma síntese da renovação da arte espanhola durante as três décadas que vão das primeiras manifestação do cubismo em Paris, com Picasso, em 1907 (embora o seu mais antigo quadro exposto seja de 1913-14), até ao início da Guerra Civil, em 1936. Organizada por Juan Manuel Bonet, director do Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM) e um dos principais investigadores deste período, com uma alargada representação de 37 artistas, ela pretende destacar a contribuição espanhola para a modernidade internacional, mas também dar a conhecer a riqueza e a complexidade do panorama vivido no interior do país, incluindo tanto as manifestações renovadoras de maior sentido cosmopolita como as que estiveram associadas a posições de continuidade com o passado, como síntese entre tradição e ruptura.
Ao longo das várias salas do museu alternam, assim, as situações em que impera o reconhecimento de estilos internacionalizados ou de autorias já familiares (como também sucede com Gris, González e Pablo Gargallo, outros «parisienses», ou o uruguaio Torres García) e a descoberta de núcleos de autores com relevância no quadro da arte espanhola mas de menor projecção externa, que não deixam por isso de ser artistas de grande interesse.
Entretanto, poderá considerar-se que «As Raízes da Vanguarda Espanhola» é um subtítulo a vários títulos problemático. Por um lado, não é claro a que tronco se ligam essas raízes, uma vez que o vanguardismo posterior, que se afirmou a partir de 1957, não decorre directamente das manifestações prévias à Guerra Civil, e que a renovação das primeiras décadas do século tem por sua vez raízes no anterior modernismo espanhol - como se verá numa próxima exposição sobre a Geração de 98, que incluirá Rusiñol, Clará, Sorolla e Zuloaga, Anglada Camarasa e os primeiros anos de Picasso e González (no Pavilhão da Expo, em Agosto).
Por outro lado, o uso espanhol da palavra vanguarda corresponde ao sentido português de modernismo, que no país vizinho já se aplicara àqueles movimentos anti-tradicionalistas do fim do séc. XIX, referindo genericamente o simbolismo, a Arte Nova catalã e os realismos pós-impressionistas.
Aliás, não é consensual entre os historiadores espanhóis a qualificação como vanguardista do processo de renovação da arte espanhola ao longo das primeiras décadas, uma vez que «el arte nuevo», a oposição às tendências institucional e socialmente dominantes (academismo e regionalismos), não assume, na generalidade, carácter de movimento nem o sentido de ruptura que se manifesta noutros países. As direcções do reducionismo e da «pureza» ideal, o sentido finalista e iconoclasta são-lhe, em geral, alheios.
Notar-se-á, de facto, que, depois de Picasso (que, aliás, sabota com os regressos ao classicismo, logo a partir de 1914, a ortodoxia cubista e «o progresso» no sentido da abstracção), com a possível excepção de Miró (mas que era demasiado pintor, segundo Breton) e também do primeiro Dalí, o panorama espanhol é sempre de escasso radicalismo vanguardista. Do primeiro grupo dos espanhóis de Paris (com Gargallo e María Blanchard, nomeadamente, mas também com Gris e González) à outra grande vaga parisiense que se segue ao primeiro pós-guerra (com Bores, Cossío, Olivares e Ángeles Ortiz, e não estão presentes Viñes, Togores e outros, igualmente significativos), o que domina, em vez das ideologias da tábua rasa e da ruptura, é o gosto pela conciliação entre a continuidade das tradições e a modernidade, na busca das sínteses possíveis entre cubismo, abstracção, realismos e surrealismo.
leg.
Timoteo Pérez Rubio, Retrato de Rosa Chacel, 1925
No caso espanhol - e também no português, depois do «episódio» Amadeo -, a informação modernizadora que vai chegando do exterior já não é a das primeiras vanguardas do século («fauves» e expressionistas, cubismo, futurismo e primeira abstracção); decorre de um contexto posterior à I Guerra dominado pelos «regressos à ordem» e por diversos sincretismos («Valori Plastici» italianos, «Art Déco», os realismos nacionais, «Nova Objectividade» alemã, etc). O panorama espanhol inclui-se, assim, sem excessivo isolamento, no contexto amplo dos anos 20 e, a seguir, no das diferentes reacções ao clima de inquietação que crescia ao longo dos anos 30, definido pela consolidação dos totalitarismos, a vitória frentista em França e, em geral, as ameaças do novo conflito mundial.
Por outro lado ainda, o ambiente espanhol das primeiras décadas é de uma extrema complexidade devido à diversidade das situações regionais, que então conheciam acelerados processos de afirmação nacionalista, sendo em especial totalmente diversos os climas culturais de Barcelona e Madrid - a capital catalã estava então mais próxima de Paris do que do centro espanhol, muito mais conservador. Sem se orientar especificamente para a representação das regiões, a exposição não deixa de reflectir algumas situações profundamente marcadas por referências locais, como é o caso do «noucentismo» (novecentismo).
O «noucentismo» é a modernidade catalã que se opõe ao modernismo (no sentido espanhol de simbolismo), especialmente teorizada a partir de 1906 por Eugenio D'Ors e apontada a um reencontro com o classicismo mediterrânico, sobre ideias de ordem e medida, norma e equilíbrio, plenitude e serenidade, que se oporiam ao «sentimento trágico dos povos do Norte». Joaquim Sunyer, Manolo Hugué, Gargallo e o primeiro Torres García estiveram ligados a esse movimento heterogéneo, que se manifesta especialmente em torno de 1911, precedendo os «regressos à ordem» do fim da década, e se prolonga até aos anos 30, com traços comuns ao «Novecento» italiano.
A primeira parte da exposição (sala dos fornos) vai genericamente até 1925, quando o Salão dos Artista Ibéricos consolida um clima de moderada renovação que, entretanto, coincide com o termo de algumas efémeras experiências mais radicais. Depois da entrada parisiense que junta Picasso, Gris e González, o espaço seguinte constitui um confronto alargado onde se inclui a representação de Gargallo e Blanchard, a renovadora continuidade do «noucentismo» e de outras figuras individuais, como Vázquez Díaz e Aurelio Arteta, e as manifestações de sentido mais vanguardista do vibracionismo e ultraísmo.
O primeiro destes ismos é praticamente um movimento pessoal lançado a partir de 1916 pelo uruguaio Rafael Barradas como síntese do cubismo e do futurismo, que influenciará a viragem decisiva na obra de Torres García no sentido da abstracção construtivista. O segundo é mais um movimento literário e poético, com muito diversa colaboração artística, que tem a melhor expressão pictural no Pim-pam-pum ou Verbena de Carlos Sáenz de Tejada, antes deste se tornar ilustrador «Art Déco» e cartazista da «Cruzada» falangista. Um projecto de cartaz de Miró, em 1919, pertence ainda ao seu período realista.
Daniel Vázquez Diaz (1882-1969), de formação naturalista e longa estadia em Paris, é um renovador de grande influência sem nunca ter sido vanguardista, que desempenhou, também como professor, um papel essencial na divulgação da «herança» de Cézanne e do cubismo. Praticou uma pintura muito seguramente construída, que se considerou, de novo sob o franquismo, o exemplo maior de uma «modernidade temperada». Foi também influente em Portugal, onde expôs por diversas vezes e teve discípulos.
Pancho Cossío, «Natureza Morta com Dama de Ouros», Paris, 1927
A partir de 1925, a exposição destaca especialmente os novos espanhóis da «Escola de Paris», com a sua livre figuração lírica, uma «pintura poética» dirigida ao «prazer dos sentidos». Um núcleo seguinte reúne obras que Bonet associa ao «realismo mágico», de acordo com o título do livro de Franz Roh, traduzido em 1925. O conjunto é revelador, no entanto, de diversas proximidades alemãs e italianas, desde o verismo à metafísica, passando pelo «pintar duro» do estremenho Pérez Rubio. A seguir, é apontada a primeira «Escola de Vallecas», que já no início dos anos 30, no novo ambiente da República, contrariava o populismo e os realismos militantes trabalhando sobre motivos da paisagem de Castela com influência surrealista e uma notável densidade material (Palencia).
Por último, além da notável síntese da trajectória inicial de Dalí, dois trabalhos de Leandre Cristòfol revelam inesperadas qualidades construtivas e poéticas, pouco antes de um novo impulso surrealista (ou «logicofobista») ser travado pela Guerra Civil. No pavilhão republicano de 1937, em Paris, estava representado um outro artista agora ausente, porque a sua obra nunca pôde ser qualificada como vanguardista ou formalmente renovadora. Do lado da tradição, mas marginal e inclassificável, José Gutiérrez Solana (1886-1945) construiu a mais perturbante das visões da Espanha e foi o mais excêntrico dos pintores.
Nota: O catálogo, embora pesado e caro (9.600$00), é um muito útil instrumento de informação sobre a exposição e o período revisto. Inclui largas referências individuais aos autores e às obras, bem como quatro ensaios assinados pelo comissário, pelo historiador Javier Tusell («A circunstância histórica»), María Jesús Ávila, do Museu do Chiado (sobre as relações artísticas entre Espanha e Portugal, desbravando um terreno oculto), e Aurora Garcia («algumas fontes do surrealismo»).
NOTÍCIA: Expresso 01-05-1998
"Picasso e Dalí ocupam Chiado "
A arte portuguesa empresta o museu às Raízes da Vanguarda Espanhola
O MUSEU do Chiado vai estar ocupado, a partir de 25 de Junho e até ao final da Expo, por uma grande exposição organizada pelo pavilhão da Espanha, intitulada «De Picasso a Dalí. As Raízes da Vanguarda Espanhola, 1907-1936». Não se trata do aluguer do museu à representação oficial de Madrid, mas sim de um projecto desenvolvido em conjunto por Juan Manuel Bonet, director do IVAM, de Valência, especialista das primeiras décadas do século, e por Raquel Henriques da Silva, ex-directora do Chiado e actual responsável pelo Instituto Português de Museus.
No entanto, o facto de a exposição ocupar todo o edifício, obrigando à recolha da colecção de arte portuguesa dos séculos XIX e XX, num momento em que será maior a frequência de visitantes estrangeiros, é objecto de críticas em meios artísticos nacionais.
Raquel Henriques da Silva considera que «este é um projecto que interessava o museu e que corresponde a uma das linhas programáticas de exposições temporárias, relacionada com a tentativa de contextualizar internacionalmente o modernismo português».
Rejeitando qualquer alegação de «subserviência ao poder espanhol», a directora do IPM valoriza «a oportunidade de realizar com custos mínimos uma exposição de elevado orçamento», que certamente não se faria sem as condições excepcionais de colaboração motivadas pela Expo, e destaca também o facto de se tratar de um projecto que atrairá um público muito vasto, «favorecendo a visibilidade do museu».
Quanto ao facto de se desmontar a colecção permanente, responde que o espaço reduzido do museu obriga sempre a esvaziar salas da montagem histórica, em maior ou menor proporção, para apresentar as exposições temporárias, como actualmente sucede durante a retrospectiva do pintor Sá Nogueira. «É uma crítica recorrente a que, mais uma vez também, contraporei a insuficiência sobejamente conhecida do Museu do Chiado», disse Raquel Henriques da Silva.
Entretanto, o EXPRESSO apurou que a possibilidade de um futuro alargamento do museu, mediante a cedência de áreas do antigo Convento de São Francisco ocupadas pela PSP, está a ser estudada pelo Governo.
O projecto inicial previa uma exposição representativa dos artistas das diferentes regiões espanholas, mas foi remodelado por iniciativa portuguesa no sentido de apresentar uma visão coerente da evolução histórica que vai do cubismo ao surrealismo e ao início da Guerra Civil. O seu itinerário inicia-se com Picasso e Juan Gris, que, em Paris, participaram no nascimento do cubismo. A seguir debruça-se sobre as condições de assimilação das novidades vanguardistas no interior na Espanha, destacando a obra de artistas menos conhecidos, como Daniel Vázquez Dias ou Joaquín Suyer, ou a influência dos artistas uruguaios Rafael Barradas e Torres García.
A propósito, Raquel Henriques da Silva sublinha a importância para o estudo da própria história artística portuguesa de «abordar o modernismo espanhol nas zonas ou figuras não exactamente vanguardistas que, em momentos diversos, se cruzaram com percursos nacionais».
Por outro lado, a exposição dará testemunho de algumas recentes reconsiderações da história da arte do país vizinho, como é o caso da valorização por Juan Manuel Bonet de um «realismo mágico espanhol» que inclui artistas como Ponce de León, Maruja Mallo, Ramón Gaya e Timoteo Pérez Rubio. Outras figuras situadas em territórios de fronteira entre o surrealismo e a abstracção geométrica ou que seguiram percursos solitários, como Benjamín Palencia, Leandre Cristòfol e Angel Ferrant, nos anos 30, terão igualmente destaque, além das presenças consagradas de Miró e Dalí.
Entretanto, o Pavilhão de Espanha na Expo vai também exibir obras de arte de grande importância, nas duas exposições históricas que aí se sucederão, em paralelo com outra montagem permanente sobre o tema dos oceanos. «As Sociedade Ibéricas e o Mar em Finais do Século XVI», apresentada só até 25 de Julho e coordenada pelo director do Museu do Prado, Fernando Checa Cremades, contará com quadros de Ticiano, António Moro, El Greco e Velázquez, num contexto dedicado à chegada dos dois Estados ibéricos ao Novo Mundo das Américas.
A seguir, «A Geração de 98 e o Mar», dirigida pelo historiador de arte Valeriano Bozal, é consagrada ao período em que a Espanha perdeu as últimas parcelas do império, Cuba e Filipinas, e inclui os artistas que ilustram uma viragem de século em que se debatem a identidade espanhola e a crise, a tradição, o cosmopolitismo e a modernidade, como Zuloaga, Sorolla, Rusiñol, Isidre Nonell e também Picasso, Julio González e Juan Gris.
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