A maneira como envelhecem os textos ditos teóricos é instrutiva. (O problema é que demoram muito tempo a desaparecer e há sempre alguém a desenterrar as ruínas. A "escolástica" vive disso.)
A propósito de Craigie Horsfield, no CAM (ver "Actual" de 26 de Agosto).
Ver como as classificações generalizadoras são quase sempre de pouca consistência e as obras que perduram são as que resistem à caducidade das fórmulas: algumas obras são demonstrativas, ou apenas pretextos para exercícios críticos, outras libertam-se dessas relações instrumentais. Mas esses textos ditos teóricos, sucessivamente recolhidos em antologias escolares, formam uma núvem que a muitos impede de ver.
Por exemplo a "Outra objectividade" de Jean-François Chevrier e James Lingwood (exposição e "doutrina" de 1988, no contexto dos debates pós-modernos).
"As suas imagens (as dos 11 incluidos na exp., com CH) não nos dizem nada de novo sobre a fotografia ou o seu potencial, mas dizem-nos muito acerca do que pode ser hoje a experiência artística (através da e com a fotografia) no contexto da cultura contemporânea. Estes artistas não podem aderir aos consolos (?) supérfluos da agilidade subjectiva ou do alerta visual, como fizeram os Kertesz, Cartier-Bresson, Winogrand e Friedlander, já que estão muito conscientes das restrições estéticas e, em termos gerais, sociais, que condicionam esse método.
Sabem que esta atitude não oferece suficiente resistência à equiparação das imagens produzidas pela indústria cultural. Sabem que esta liberdade de visão reivindicada e cultivada pelos "auteurs" fotográficos é uma fonte de crescente consolo (?) para uma definição abstracta da individualidade e a subjectividade." (trad. do espanhol: "Efecto Real", ed. Jorge Ribalta, GG, Barcelona)
Também aqui é um suposto progressismo político que justifica a desvalorização de uns (por sinal os maiores) e a legitimação de outros (em geral medíocres). Mas é visível que se trata de mais um passo para, em nome da "esquerda", reduzir o potencial da fotografia, trocado pelo "reflectir" sobre "o que pode ser hoje a experiência artística (...) no contexto da cultura contemporânea".
Trata-se de a encerrar na galeria e
no discurso teórico quando o que pode haver de perturbador ou
"subversivo" na fotografia é a imprevisibilidade do trânsito entre os
seus usos funcionais (a informação, etc) e o seu reconhecimento como
arte - um trânsito reversível, onde a passagem à galeria ou ao museu
não significa a prisão num "mundo da arte", autónomo ou reservado. Ela
é instável no seu estatuto "ontológico" e é reutilizável.
Com a habitual lógica do "esquerdismo" quer-se mais resistência à
indústria cultural mas a troco do encerramento no guetto da
"experiência artística no contexto da cultura contemporânea".
A seguir, JFC cita Jeff Wall, que critica a espontaneidade da imagem
fotográfica, a de Cartier-Bresson, por exemplo:
"Este tipo de fotografia torna-se uma versão da arte informal; apesar da sua riqueza formal, está condenada a contemplar sempre admirativa e ironicamente o mundo em lugar de construí-lo" (1986).
A referência superficial às
teses sobre Feuerbach faz a conveniente piscadela de olho política.
É menos conhecido o prefácio em forma de conversa com JFC para a edição
francesa dos escritos de Jeff Wall (ENSB-A, Paris, 2001) onde este
comenta os seus combates perdidos contra a fotografia e, apesar de
muita coisa mal vista, se pretende distanciar do "academismo crítico"
dominante, que surgira a partir de 1973 ou 74 em resposta a uma
exigência política activista e se edificou como uma ortodoxia "qui
sévit toujours".
CRAIGIE HORSFIELD "Quadros impressos"
Entre fotografia e pintura, ou a sua soma
EXPRESSO/Actual de 26-08-2006
Na antecâmara, a imensa ampliação de um baile é acompanhada por informação sobre «projectos sociais» de Craigie Horsfield: «conversas sobre a especificidade dos lugares e das comunidades» ou vídeo-instalações. «Durante a década de 90, esteve na vanguarda do desenvolvimento da arte social, projectos colectivos e da centralidade da conversação», assegura a folha de sala numa redacção pouco fluente (e nada convincente).
O que a seguir se vê são fotografias-quadros - grande formatos, qualidade táctil das impressões (provas únicas), referências aos géneros picturais (retrato, nu, natureza morta), bem como a noções da estética especulativa (sublime, beleza, etc.), a estilos e a certos quadros precisos. Estão ausentes a dimensão potencialmente informativa da fotografia ou as qualidades de atenção e invenção em geral associadas ao olhar fotográfico, embora se possa falar numa objectividade descritiva que prolongaria a argumentação modernista sobre a especificidade do medium: não se trata de teatralização ficcional nem de apropriação de imagens pré-existentes, que alguns debates pós-modernos preconizavam.
As obras de Horsfield começaram a circular pelos espaços institucionais no final da década de 80, e em 1993 foram apresentadas em Lisboa pela Galeria Cómicos, agora Luís Serpa. Importava então a legitimação das provas fotográficas enquanto arte contemporânea coleccionável: falava-se em «fotografia estética» face à ética anti-estética dos artistas conceptuais e reivindicava-se a qualidade do «quadro fotográfico» (segundo Jean-François Chevrier, «a imagem como objecto e quadro») em oposição à tradição documental que tinha por melhor destino a publicação editorial. As naturezas mortas a cores que agora imprime por processos digitais (com «variações» que permitem chamar-lhes provas únicas) acentuam o trilho pictorialista, o esteticismo arcaizante ou o maneirismo deste trabalho. Mas há quem veja na ideia de «Relação», proposta logo no título, «consciência crítica» e «propostas radicais no sentido de uma comunidade futura». O visitante que decida.
Craigie Horsfield
«Relation»
CAM, até 24 de Setembro
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