ARQUIVO
EXPRESSO/Actual de 02-09-2006
«L’Afrique par Elle-même», em versão CPF
“Voz própria”
A África vista pelos africanos ao longo de um século de fotografias, em exposição e em livro
Chegou tarde e mal, mas veio. Passaram oito anos desde que a exposição «L’Afrique par Elle-même» foi inaugurada em Paris, acompanhada pela Anthologie de la Photographie Africaine et de l’Océan Indien, um grande volume encadernado com perto de 500 imagens (1998). Era o culminar das actividades da luxuosa «Revue Noire», que, com retaguarda nos grandes meios da cooperação francesa, se dedicava a explorar a arte e a cultura dos países africanos, e em especial a fotografia.
A revista durou de 1991 até 99, e teve números monográficos sobre Cabo Verde, Moçambique e Angola (entre outros). A mostra seguiu em digressão para São Paulo e Cidade do Cabo, e foi, toda ou em parte, aos Encontros de Bamako, no Mali, a Londres, Washington (o Smithsonian), Nova Iorque, Bolonha, Berlim, Genebra (a ONU) e, já em 2003, ao antigo museu colonial de Tervuren, na Bélgica. O livro teve traduções brasileira e inglesa (disponíveis no Porto) e uma edição condensada, actualizada e de bolso.
Não houve mais nenhum projecto com a ambição de sumariar toda a história da fotografia feita por africanos subsarianos, porque cresceu o campo das investigações localizadas e aumentou a concorrência entre os agentes deste mercado. A versão acolhida na Cadeia da Relação é ainda mais abreviada que a síntese belga, mas mesmo assim suficiente para mudar a informação visual herdada da fotografia etnográfica ou dos postais coloniais que ilustravam as raças humanas e memórias familiares.
De facto, os africanos tinham-se retratado a si próprios desde o princípio do século XX, pelo menos nas zonas que mais depressa se ocidentalizaram, e mostraram bastante satisfação em fazer-se fotografar. O olhar com que enfrentaram os caixotes dos ambulantes ou as câmaras dos estúdios parece, desde o início, associar a orgulhosa consciência das mudanças de identidade social à atracção pelos novos meios de produção de imagens, e a cumplicidade que estabeleceram com os fotógrafos negros continua hoje, após todas as catástrofes, a transmitir dignidade e optimismo.
Entretanto, apesar de conhecido o misto de autismo e falta de meios a que o Centro Português de Fotografia se condenou, já são menos aceitáveis a discrição com que se apresenta esta antologia de referência e a indiferença com que se estabeleceram as condições expositivas. Sem catálogo próprio, haveria que reforçar a informação prestada ao visitante, mas é o contrário que ocorre, sem que se reconheça qualquer sentido sequencial ao longo das quatro enxovias utilizadas como galerias. O que aqui parece disposto ao acaso poderia agrupar-se em grandes capítulos cronológicos e temáticos, embora não estanques, com base nas edições referidas (que usam, aliás, critérios algo aleatórios).
Começar-se-ia pelos «precursores», designação aplicada aos primeiros profissionais africanos, alguns deles anónimos. Entre eles está Antoine Freitas (1919-1990), angolano radicado em Kinshasa que aparece na ampliação de um postal ilustrado, retratando ao ar livre um grupo de mulheres e crianças rodeado por curiosos, e intitulando-se «primeiro fotógrafo congolês ‘à la minute’». São conhecidos, mas não se expõem, os retratos de estúdio da filha Suzanne (anos 50). Faltando Meïssa Gaye, o mais velho fotógrafo do Senegal (1892-1982), destacam-se as imagens anónimas das mulheres de Saint-Louis, o primeiro grande centro colonial francês, onde se praticou um tipo original de retrato doméstico que fixava as diferenciações sociais com recurso sistemático a fotografias de família (ver foto).
Coisa diferente são os retratos das esposas indígenas de administradores e comerciantes, as «signares» (do português senhoras), que as tabelas traduzem mal por beldades, misturando diferentes informações.
Anónimo, retrato, Saint-Louis, Senegal (c. 1915)
Depois, sem uma estrita diferenciação cronológica, identificam-se como «retratistas» alguns profissionais a quem se reconhece a constância de preocupações estilísticas, com passagem ao estatuto de autores ou mesmo de artistas. As presenças centrais são as de Mama Casset (1908-1992), que teve o estúdio da moda da burguesia negra de Dacar, e de Cornelius Yao Augustt Azaglo (1924-2001), da Costa do Marfim, faltando o mais promovido Seydou Keïta (1923-2001), de Bamako, mostrado em Coimbra em 1997.
Outras práticas tradicionais de estúdio continuam em provas pintadas à mão vindas de Adis Abeba e nos retratos a cor de Bobby Bobson, de Durban, já nos anos 80. Uma breve passagem pelas agências oficiais faz referência ao espólio do Centro de Informação e de Turismo de Angola (CITA), criado em 1949, depois integrado no Departamento de Informação e Propaganda do MPLA (DIP), mais tarde privatizado com o nome A Foto, e um fundo de mais de 150 mil imagens. A seguir, é demasiado rápida a presença da revista «Drum», da África do Sul, 1951-1984, muito influente nos novos países independentes.
Para além do caso particular de Ricardo Rangel (1924, Moçambique), o conjunto mais forte é constituído por quatro fotógrafos que sustentaram a prática da reportagem de rua com o sentido do retrato (também no sentido comercial) e que registaram as transformações sócio-culturais dos anos 60 percorrendo os bares e as festas, fotografando os jovens e a noite com uma nova liberdade e recurso ao flash: em Bamako, Abderramane Sakaly (1926-1988) e Malick Sidibé (1936; distinguido com o Prémio Hasselblad 2003, e exposto no CAV, Coimbra, em 2004); Jean Depara (1928-1997), em Kinshasa, e Philippe Koudjina (1940), em Niamey, Nigéria.
A entrada na actualidade faz-se, nas edições, sob o discutível título «Em busca de uma estética», apesar da pluralidade de caminhos representados. Rotimi Fani-Kayodé (Nigéria, 1955 - Londres, 1989) praticou a auto-encenação erótica e ritualizada, enquanto Samuel Fosso (1962) se mantém fiel aos auto-retratos de estúdio. «Les Fous d’Abidjan» (expostos no Espaço Oikos, em 1997) são um radical projecto documental de Dorris Haron Kasco (1966, Costa do Marfim), enquanto René-Paul Savignon (1970, Reunião) fotografa o cultivo do arroz na tradição «humanista», e Zwelethu Mthethwa (1960) é autor de uma notável série de retratos a cores realizados no interior de casas das «townships» do Cabo («Images of Dignity»).
«A África pelos Africanos» Centro Português de Fotografia, Cadeia da Relação, Porto, até dia 24
L'Afrique par elle-même, un siècle de photographie africaine, Essais d’Anne-Marie Bouttiaux, Alain D’Hooghe, Jean Loup Pivin. 178 photographies N&B et couleurs. Co-edition Revue Noire e Musée Royal de l'Afrique Centrale de Tervuren 208 pages, 2003.
(FOTOS REVUE NOIRE, PARIS: Anónimo, retrato, Saint-Louis, Senegal (c. 1915-30) Fotografia de Abderramane Sakaly, Mali (c. 1965) Fotografia de Cornelius Yao Augustt Azaglo, Costa do Marfim (c. 1955-60)
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Mozambique: Ricardo Rangel
Angola: a Foto
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