A actuação dos supercoleccionadores internacionais está a mudar os valores e as condições de circulação da arte
Expresso/Actual de 21-10-2006
Charles Saatchi, o «supercoleccionador» inglês, e Nicholas Serota, director-geral da Tate
François Pinault, Christie’s e Palazzo Grassi, Veneza, e Bernard Arnault, grupo Louis Vuiton e Dior
José Berardo, Museu de Arte Moderna e Contemporânea, e João Rendeiro, Ellipse Foundation
Em Inglaterra, os protagonistas são Charles Saatchi e Nicholas Serota. O primeiro era um brilhante publicitário associado às vitórias de Thatcher quando abriu ao público uma galeria privada, em 1985. Transformou o coleccionismo graças à compra e venda de obras aos lotes, apadrinhando e abandonando artistas. Promoveu a «nova arte britânica» (com Paula Rego), os Young British Artists, o New Neurotic Realism, o «Triunfo da Pintura», etc. Organizou exposições na Royal Academy mediatizadas por escândalos, seguidas por digressões e leilões. Apesar de demasiado controverso, é o paradigma do coleccionador profissional. Ajudou a Grã-Bretanha e os seus artistas a ocuparem um espaço internacional sem precedentes.
Serota é o patrão da Tate, o homem por trás das polémicas do Prémio Turner e do êxito da Tate Modern, o modelo do director de museu com ânimo empresarial - em competição com Thomas Krens, cabeça da multinacional Guggenheim. Desenhada para 1,8 milhões de visitantes/ano, a Tate Modern recebe mais de 4 milhões e vai ser muito ampliada antes das Olimpíadas de 2012. Ninguém se arrisca (nem o Pompidou nem o MoMA) a separar em diferentes edifícios o que se costuma distinguir como arte moderna e contemporânea; esta não convive bem com a ideia de museu.
Entretanto, a arte contemporânea (posterior a 1960, mas a barreira pode ser de estilo e não de data) chegou à ribalta dos leilões, com um segmento de obras cada vez mais frescas a atingir preços sempre mais astronómicos. O «top» proposto por museus de ponta confirma-se em feiras muito selectivas, como a Frieze de Londres e a Miami-Basel, e logo em museus privados de multimilionários itinerantes. O êxito social do coleccionador-investidor, que dispõe de acesso a informação privilegiada («inside trading») por via de ligações institucionais, baralhou o triângulo clássico que tinha como vértices artistas, galeristas e coleccionadores, separadamente (só os «marchands» ou «dealers» sujavam as mãos). Pelo caminho, críticos, historiadores e conservadores passaram a ser comissários, assessores e agentes de um mercado que pode ser muito lucrativo. A arte é valorizada como uma área de investimento, com cotações diariamente actualizadas por empresas da especialidade. Muitos dos anteriores interessados, frequentadores de galerias e coleccionadores por gosto, têm desertado desse mundo pouco credível, onde «mainstream» passou a ter um sentido positivo.
A França, que é um parceiro menor desde que Nova Iorque lhe «roubou a arte moderna», tem um prudente coleccionismo privado, e o Estado forte perdeu a corrida com o capital internacional. Tem-se esperado que venham agitar essas águas dois supercoleccionadores assentes nas indústrias do luxo: François Pinault (Printemps, Redoute, Gucci, Chateau-Latour, a leiloeira Christie’s, mais o clube de Rênnes e a Fnac) e Bernard Arnault, líder mundial do sector (Louis Vuitton, Moët Hennessy, Dior - ex-Phillips leilões).
Pinault anunciara uma fundação/ museu em Paris, mas colocou a colecção (a render) em Veneza; por sinal, Berardo foi convidado a preencher o seu lugar na «île» Séguin. Agora é Arnault que promete para 2009 uma fundação no Bois de Boulogne, sem se comprometer a expor o seu acervo. O projecto é de Frank Gehry e já lá tem um parque de diversões. Os dois têm sido coleccionadores secretos, mais do que publicamente influentes, mas espera-se dessa rivalidade maior projecção para a arte francesa, seja lá o que isso for.
O que se chama artes plásticas, antes belas-artes, tem mudado com o tempo, resistindo ao fim anunciado. A direcção canonizada pela história esteve ligada às encomendas das cortes e das igrejas - ao Poder, portanto; as artes populares tinham a sua circulação própria e depois foram dando lugar ao consumo dos entretenimentos de massas. Com as revoluções abriram-se as colecções ao público (o conceito era novo); passou a reinar o gosto (a estética e a crítica) e o «salon». A independência ou livre concorrência dos artistas, que assegurou a autonomia moderna da arte, precisava dos vários mercados, oficial e particular, académico e de vanguarda. O século XX inventou a anti-arte e integrou-a no espaço da arte oficial, instituindo a «tradição do novo». Projectou a cultura (com a informação e os lazeres) como um sector económico de pleno direito.
Nos últimos dez anos multiplicou-se por dois o número dos milionários, que seriam em Junho 8,2 milhões. Muitos vêm da Rússia, China, Coreia, Índia e Arábias - já há uma feira de arte contemporânea no Dubai, e na lista dos 100 artistas nascidos depois de 1945 mais vendidos em leilões há 24 norte-americanos e outros tantos chineses (Artprice). Cada vez mais, a arte contemporânea de que se fala é apenas um elemento do jogo social, ao mesmo título que o «yacht» ou o apartamento em Park Avenue, NY, mas com acesso à alta roda artística e a possibilidade de enorme lucros. Os preços da arte contemporânea atingidos em leilão subiram 18% de Maio de 2003 a Maio de 2004, 9% no ano seguinte e 41% no mesmo período até 2006, a maior subida de sempre. Venderam-se 454 lotes acima de um milhão de dólares nos primeiros seis meses deste ano, contra 253 em 2005 e 130 em 2003, todas as categorias reunidas. Com a chegada dos fundos especulativos («hedge funds») crescem os riscos de agiotagem e de explosão da bolha especulativa do mercado de arte. Mas tem havido sempre novos milionários a entrar no circuito.
Em Portugal temos José Berardo e João Rendeiro; o segundo foi este mês 97.º na lista das figuras mais influentes da «Art Review», situado entre os pintores Luc Tuymans e Takashi Murakami - a lista é um mero jogo de sociedade. Berardo tornou pública a colecção em 1995, já então orçada em 6 milhões de contos (€30M). Atribuiu-lhe desde o início a intenção de suprir a falta de um museu de arte moderna. Também desde o princípio, exigiu dos poderes públicos que assumissem a sua parte de responsabilidades e de custos (de funcionamento). Comprou com uma lógica de representação sistemática dos movimentos artísticos, e muita coisa a preços baixos durante o «crach» que se arrastou até 1997. Orientado primeiro por Francisco Capelo, também gestor de empresas, Berardo assumiu depois pessoalmente as escolhas da colecção, aconselhando-se em diversas fontes - essa independência face aos especialistas, contraditando influências, assegura-lhe a desconfiança surda do meio da arte. Manteve durante dez anos, em parceria, o Museu de Sintra e forçou o actual Governo a abrir-lhe o CCB, quando lhe acenaram oportunidades francesas.
O Museu de Serralves, que não tinha colecção e vive como um centro de exposições, é uma parceria com mecenas em que o Governo paga a factura maior - para além da arte que expõe, é um caso de engenharia social, um «argumento estratégico de marketing territorial», um «factor de competitividade regional» e talvez de «coesão social». O Museu Berardo irá associar uma colecção do século XX ao Orçamento do Estado. Como este não é uma pessoa de bem, é salutar que as decisões continuem na mão do coleccionador privado, fixadas por um público compromisso entre as partes.
João Rendeiro partilha a propriedade artística com o Banco Privado Português e a Ellipse Foundation (em inglês, com sede em Amesterdão, onde é mais favorável o direito das fundações). A dita Ellipse começou por ser anunciada como um fundo de investimentos em arte, com rentabilização a sete, oito anos. Já em andamento, mudou de estratégia, afastou o horizonte da alienação (por sinal, as compras são feitas num período de grande inflação do mercado) e decidiu abrir um «art centre» para ir mostrando o acervo - são duas condições que a favorecem como cliente, tal como a associação ao Museu do Chiado por via do curador-director Pedro Lapa. As obras de Sharon Lockart que lá se expõem pertencem à Ellipse, o que tem vantagens desiguais para as duas partes. Outro comprador é Alexandre Melo, que acumula com o posto de conselheiro cultural do primeiro-ministro e com o papel de comissário de exposições oficiais («Portugal Novo», no Brasil e em Luanda - nem todos os artistas são apostas da Ellipse) e particulares (agora na Galeria Presença, Porto, com três artistas elípticos estrangeiros). Os conflitos de interesses são gritantes nos dois casos, mas já se sabe que a arte é um mercado muito pouco regulado e que a imprensa cultural é a mais complacente de todas.
Visitado o «show-room» da Rua das Fisgas, e a extensão de Cascais, os investimentos não entusiasmam, apesar da euforia do mercado: Richard Prince e Cindy Sherman podem ter sido caros, Baldessari e Jeff Wall pode ser que ainda se valorizem. Gastaram-se 14 dos 20 milhões de euros do «plafond» previsto. Não se sabe ao certo se vai surgir uma nova «tranche» para continuar ou se o acervo reunido em quatro anos vai congelar num museu sem visitantes. Mesmo se muito ligado a franjas mundanas de Nova Iorque, um programa de compras não é uma colecção nem uma exposição bem sucedida. É uma lista de nomes, uma carteira de títulos. O papel higiénico que roda nas ventoinhas de Gabriel Orozco será uma paródia deste universo artístico? Que dizem os cronistas sociais e os analistas financeiros?
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