José Manuel Rodrigues: Os outros, nós
EXPRESSO/Actual de 11 02 - 2006
Depois da «morte » do retrato fotográfico, José Manuel Rodrigues revoluciona as suas regras
Baselitz inverteu as figuras, nos seus quadros do final dos anos 60, para anular a importância do assunto, tornando-o um mero motivo, banal ou destituído de valor enquanto tema, quando procurava anular os fundamentos da ruptura entre pintura abstracta e pintura figurativa sem ceder à tendência ambiente para a redução da complexidade formal. De cabeça para baixo, os retratos de familiares e amigos eram-lhe necessários para que os quadros não se interpretassem como abstractos, mas não lhe interessava a representação ou o significado do motivo. Como outras dificuldades procuradas - os formatos imensos, a acção impulsiva (mais do que expressiva), o trabalho sobre o solo -, a inversão do motivo, que anulava o problema plástico da relação entre a figura e a superfície abstracta que a envolve, introduzia uma distância que tornava mais intenso o que acontece no quadro com a materialidade dos seus elementos. A inversão de Baselitz parece prolongar de nova maneira o acontecido com Kandinsky, que teve a «revelação» da abstracção no encontro súbito com um quadro que deixara pousado de lado e assim visto se tornara «um quadro misterioso, no qual apenas se viam formas e cores, cujo assunto era incompreensível».
São muito diferentes as questões da fotografia e dos seus modos de representar, mas a novidade radical que resulta da inversão dos rostos frontalmente retratados nos últimos trabalhos de José M. Rodrigues apenas lembra grandes momentos da história da pintura. Na história da fotografia há anteriores rostos vistos ao contrário, de cabeça para baixo, mas são simples variantes de outras poses ou experiências sem consequências, mesmo os belíssimos retratos de Lee Miller e da Mulher de Cabelos Compridos, de Man Ray.
No seu itinerário criativo, a passagem à cor, ao grande formato e à impressão digital são uma soma de rupturas. No entanto, para além destas diferenças nada acessórias para a definição dos novos trabalhos, há uma profunda continuidade de interesses e de métodos em relação a linhas anteriores do seu percurso. Eles prolongam o intimismo anónimo (privado) dos seus habituais retratos encenados e também a relação panteísta dos corpos com a Natureza, ao mesmo tempo que renovam o sentido performativo de antigos projectos experimentais (ou conceptuais, se assim não se ocultar a sua intensa condição vivencial). Um texto de Rui Oliveira no catálogo é um bem informado guia dessa continuidade.
«Solo» é uma sequência de 17 retratos invertidos, de grande formato vertical e horizontal, onde os modelos, ou intérpretes (não nomeados), de quem se vê o busto ou só a cara cortada pelo queixo, são fotografados deitados - alguns parcialmente dentro de água, outros sobre um chão de terra, pedra, areia, plantas (trevos, cardos, etc.). Estão de olhos fechados, semicerrados ou abertos (nestes, o vulto do fotógrafo adivinha-se reflectido nas pupilas, de pé); mais ou menos vestidos (a variação das estações é um dos seus usuais temas de observação); homens e mulheres, novos e velhos, todos muito diferentes entre si, como um inventário do mundo.
A câmara está muito próxima, focada exactamente na vertical dos olhos, com o fotógrafo em posição inversa à do corpo retratado, literalmente sobre os modelos, oferecidos, desamparados e ao mesmo tempo cúmplices.
Os rostos são vistos numa absoluta frontalidade, entregues e serenos ou, às vezes, talvez inquietos, numa escala algo ampliada, mas, para lá do anonimato dos modelos e da transparência ou opacidade do retrato, substitui-se à questão da verdade ou mentira de uma interioridade pessoal a intensidade inteira da presença das caras e dos corpos, como uma revelação imanente, potenciada pela natureza matricial dos leitos em que repousam.
Se os retratos tipo passe das enormes edições de Thomas Ruff queriam mostrar a total impenetrabilidade da sua superfície, sem acesso a qualquer personalidade ou carácter interior, e também a vacuidade desse espelho, estas fotografias exploram caminhos por onde se constroem e celebram as relações de intimidade com os outros e com o mundo. Invertidos, os retratos de José M. Rodrigues, ao contrário do que acontece com as figuras de Baselitz, têm uma presença ainda mais plena e mais real.
Entretanto, não deixa de ser curioso notar a coincidência acidental do título da exposição, e a diferença total do que ele designa, em relação a um trabalho de Paulo Nozolino, reunido num álbum de muito escassa difusão, referente ao Grande Prémio de Vevey, Suíça, atribuído em 1995 e apresentado em 98. O «Solo» de Nozolino é um manifesto da solidão do homem na cidade, retratada nos personagens furtivos ou fugitivos de um extenso jornal de viagem, como uma «série negra europeia», tal como então se escreveu.
Em José M. Rodrigues, «Solo» tem uma explícita dimensão performativa, e os retratados são figuras cúmplices de uma acção construída na encenação fotográfica, enquanto o lugar ou fundo em que se inscrevem, horizontalmente vistos, é também solo, a terra e a água. É um «Solo a solo» (como se intitula o prefácio) em que o outro surge como um «nós», ao longo duma série concebida com projecto, com ecos do «sol a sol» alentejano, num trabalho localmente situado e em que está presente a procura dos elementos primordiais da Natureza, uma das coordenadas essenciais do percurso do fotógrafo.
José M. Rodrigues
«Solo»
Sala Maior, Porto, até dia 14
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