"Questão de milhões"
A penúria e a ostentação ocupam o espaço público graças à concorrência entre marcas
in EXPRESSO/Actual de 30-12-2006
É tudo uma questão de números. A ministra da Cultura anuncia um pequeno milhão de visitantes nos seus museus (graças a obrigações escolares e duas noitadas de festa), mas oculta subinvestimentos brutais em pessoal, conservação, obras e programas. O sector, que sempre juntou a pequenez à tentação da grandiloquência, não pode escapar à austeridade geral, mas fazem falta um discurso de verdade e mobilização por algumas causas. Ao invés, opta-se por administrar a fuga para a frente, e agora as prioridades são a sucursal do Hermitage e o apagamento do Museu de Arte Popular.
O tema da quantidade de visitantes, em geral poucos, abre a porta aos populismos mas também à consideração da responsabilidade social da arte e da cultura face aos interesses das várias corporações e às lógicas dos nichos. Para haver noção de escala, comparando regiões, deve saber-se que os museus de arte de Barcelona ultrapassam oito milhões de visitas.
O maior evento foi a «Cow Parade», e nunca tanto se falou em arte e artistas, respeitando uma desconfortável separação de campos entre os gostos do povo e os meios cultivados. A questão da grande divisão («The Great Divide») entre arte elevada e cultura de massas teve outros afloramentos equívocos com a mostra de Frida Kahlo no CCB e a colecção que se chamou «O Olhar Fauve» (os simpáticos Marquet e Valtat vindos do Museu de Bordéus), no Chiado. O estado de penúria levou os responsáveis a anunciarem gato por lebre, mas percebeu-se que existe um público ávido que se manifesta pela ausência contra as programações ensimesmadas.
As antigas esperanças depositadas no impacto social das artes não se
confirmaram (a «autonomia» ganhou a batalha), mas um recente relatório
comunitário chamou a atenção para o peso económico da cultura, cada vez
em sentido mais lato. Trata-se, claro, de coisas diferentes. Por cá
pode observar-se que é a concorrência entre marcas, em ano de OPA‘s,
que mantém as portas abertas e paga os cartazes -- 2007 será mais
difícil, portanto.
O Millennium bcp trouxe a Colecção Rau (o
acontecimento de excepção), enquanto o BPI se associa a Serralves e
patrocina Amadeo na Gulbenkian. O BES investe em fotografias (destaque
para Candida Höfer «Em Portugal», no CCB); a CGD tem os seus pólos
artísticos; a EDP reactivou a presença pública.
Entretanto, não há
talentos que cheguem para tantos prémios de consagração e revelação,
nem jurados que fundamentem a diversidade das escolhas. E também não há
amigos, patronos, filantropos ou mecenas que se impliquem na
sobrevivência do Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva.
Se as relações de dependência entre a arte e o poder (político e económico) são um já longo processo, convém observar as suas condições actuais de funcionamento (de financiamento), quando tudo se funda num mesmo imenso mercado do «entertainment business» e as cotações das obras, em acelerado crescimento (lá fora), parecem ter deixado de depender das variações bolsistas - há sempre mais coleccionadores a chegar, e os novos países ricos que entraram na corrida das bienais e das feiras estão ainda a começar os seus museus modernos.
As políticas públicas trocaram a democratização da cultura pelo desenvolvimento cultural (emprego, animação do espaço urbano, turismo, etc.); as políticas privadas passaram do exercício do gosto (ou da ostentação?) à gestão do investimento. Da actual circulação de um conformismo sem fronteiras, capaz de absorver todas as diferenças ou novidades, em que a vanguarda é o mercado e o mercado é a vanguarda, deu conta a Ellipse Foundation.
O ano termina tal como findou 2005: com mais um passo para fixar no país a Colecção Berardo, o que representa a última oportunidade de o século XX vir a estar representado num museu português. O caminho negocial ainda é árduo e está minado por forças influentes do meio da arte, contrárias à noção de museu (todo o dinheiro público é pouco para «apoiar a criação», montar e desmontar instalações, sustentar as carreiras de comissários-directores). Mas trata-se também de fixar um destino para um equipamento (o módulo de exposições do CCB) que tem uma longa história de desorientação administrativa. Além de ser uma questão de milhões, é um grande desígnio.
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