As excepções possíveis
EXPRESSO/Actual de 04-01-2003
(Foto: Giorgio Morandi, «Natureza Morta», 1938)
Se a escolha fosse internacional, teria de referir-se Lucian Freud na Tate Britain e «Matisse-Picasso» na Tate Modern e no Grand Palais, seguidos por Max Beckmann no Centro Pompidou e por «Le Dessin Fauve 1900-1908» no Museu Cantini de Marselha, ficando forçosamente por percorrer muito mais mundo. Matthew Barney, também em digressão intercontinental, seria a estrela decadente do ano.
A lista nacional, com uma forçada modéstia que se vai agravando com a crise e pelas opções de quem dirige, pode ser encabeçada pela exposição dedicada ao pintor, músico e coleccionador Alfredo Keil, que se inaugurou no final de Dezembro de 2001, mas se prolongou até Abril, com ela se encerrando em beleza a escassa programação da Galeria de Pintura do Rei D. Luís, no Palácio da Ajuda.
Mais do que uma mera retrospectiva, foi uma redescoberta do lugar ocupado pela obra de Keil no seu tempo, alterando a história conhecida, com base numa investigação aprofundada e numa excelente montagem, mesmo que não seja possível projectar o muito estimável pintor à altura dos grandes mestres (que, aliás, não poderiam existir num meio adverso). Entretanto, a apresentação de Morandi pela Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva é a única escolha comum às três listas juntas. Foi - é ainda por mais três semanas - a mais importante oportunidade do ano de podermos conviver com as obras dos artistas fundamentais da arte moderna, ausentes da generalidade das programações. Acompanhando à distância as revoluções do século XX, isolado das «escolas» sem ser um pintor antimoderno, Giorgio Morandi foi um dos grandes continuadores da tradição figurativa, fazendo uma pintura cada vez mais abstracta a partir da contemplação do visível. OS MELHORES Alfredo Keil Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio da Ajuda Giorgio Morandi Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva NÃO GOSTÁMOS (Os piores) Julião Sarmento Trabalhos dos Anos 70. Museu do Chiado Richard Hamilton/Dieter Roth «Colaborações, Relações, Confrontações». Museu de Arte Contemporânea de Serralves "Frustradas expectativas" Foto: Retratos «intervencionados» de Dieter Roth (à esquerda) e Richard Hamilton Só em função das expectativas criadas ou das responsabilidades assumidas, envolvendo razões que ultrapassam a consideração específica dos objectos expostos, é que o exercício da escolha das «piores» exposições fará sentido (sendo sempre as opções estritamente pessoais). Pode ser esse o caso da exposição dedicada aos trabalhos dos anos 70 de Julião Sarmento com que se ocupou todo o Museu do Chiado, substituindo-os ao que deveria ser a presença pública e permanente (mas não imóvel) do seu acervo, como é legítimo esperar de um museu se se considerar que algo o distingue de uma galeria de exposições temporárias. Acresce que a recuperação de tais obras só vem confirmar o que se sabia já nos anos 80, ou seja, primeiro, que elas não se destacavam pela originalidade ou independência face ao que era então a produção dita conceptual que tinha curso internacional e também vários outros aplicados praticantes nacionais; segundo, que é a partir da produção posterior, em ruptura com os ensaios e equívocos agora recuperados, que a obra de Sarmento ganha importância. Outro exemplo é a mostra que o Museu de Serralves dedica às «Colaborações, Relações, Confrontações» entre Richard Hamilton e Dieter Roth, gigantesco investimento pessoal de Vicente Todolí (com oito anos de investigação, disse-se no «El País») que é manifestamente desproporcionado para a importância das obras respectivas e desajustado face às carências de informação e de meios dos museus nacionais, Serralves incluído. O facto de dois meses depois ainda não existir catálogo (também inutilmente desmesurado?) comprova que os interesses próprios dos comissários têm, neste caso, no anterior e em inúmeros outros, muito pouco a ver com as necessidades e expectativas dos frequentadores de museus. 2º Texto A crise mais funda Há questões a debater para além da restrição dos meios Foto: Mondrian, «Composição», de 1923, entrada em 2002 na Colecção Berardo «C'est fini, la peinture», escreve George Steiner a concluir Gramáticas da Criação. Não se refere estritamente à impossibilidade da pintura, mas ao fim do conceito de «poiesis», que pensava a criação artística e poética por analogia com o fazer divino e enquanto desafio à fatalidade da morte. Reinventada a criação como «táctica retórica», as galerias não vão fechar: «Aquilo a que se chama 'arte' continuará a ser produzido, exposto e conservado. Os lençóis sujos e vitelos cortados ao meio são em número suficiente.» Foi a estes, ou aos sucedâneos do ano, que se referiu um dos ministros da Cultura do Reino Unido, Kim Howells, chamando «conceptual bullshit» às obras candidatas ao Prémio Turner. Apesar do escândalo, reincidiu em Dezembro dizendo que nunca atravessaria a rua para ver a obra premiada de Keith Tyson e atacou o elitimismo do «stablishment» artístico e as suas insondáveis escolhas, ou seja, a «brigada dos fatos pretos e blusas negras e a incompreensível 'psychobabble' (literalmente, psicobolha) que acompanha tudo isto». A deriva do «new labour» pelo populismo cultural tem riscos, mas foi uma significativa contribuição para que se discuta em voz alta um universo sob suspeita. «A lamentação sobre a nulidade da arte actual tornou-se um género literário, como o romance negro ou a pastorela medieval», lamenta o crítico Nicolas Bourriaud na sua crónica da revista «Beaux Arts» (Outubro). No editorial do mês seguinte, o director diz que «o meio da arte, e a imprensa que o acompanha, sofre desde há vinte anos de uma profunda atonia e é vítima de ter o consenso por regra». Se a ideia de crise é constitutiva da história da arte moderna, o tema da eventual ruptura entre moderno e contemporâneo, a confusão entre arte e comunicação e a subordinação das artes visuais à hegemonia das imagens mediáticas, a institucionalização da ex-subversão associada à mercantilização especulativa alteram drasticamente os dados em presença. Nada disso tem ecos em Portugal, onde a oferta institucional paira numa órbita distanciada e auto-satisfeita, sem preocupações quanto à qualidade da recepção ou ao confronto crítico. Valeria a pena sondar a correlação entre o surgimento de novos equipamentos e a degradação do que se publica sobre arte, nomeadamente a extinção quase total do espaço da crítica na imprensa, substituída por relatos jornalísticos servis ou transcrições de indigentes comunicados. Poderes sem credibilidade, autistas e promíscuos, criam o silêncio à sua volta. É menos importante a crise que resulta das restrições dos orçamentos, revistos após o 11 de Setembro e estrangulados a meio do ano. Redução das exposições, com excessiva fixação nas retrospectivas individuais, que se sucedem sem que projectos temáticos as venham contextualizar e reduzir às devidas proporções, importações mais aleatórias, aquisições irrelevantes, cortes nos catálogos e na informação marcam o ritmo. O próximo ano será bem pior. Termine-se, porém, com um facto positivo e um sinal de optimismo. Primeiro, a vinda para Portugal de uma obra de Mondrian, adquirida para a Colecção Berardo, cujo titular aparece situado a meio da lista das cem mais influentes personalidades do mundo da arte publicada no fim do ano pela revista londrina «Art Review». Depois, a compra das colecções de design e de moda de Francisco Capelo pela Câmara de Lisboa, que, presumivelmente (há vários elementos por esclarecer), vem baralhar todos os cálculos feitos quanto ao Parque Mayer, relegando a questão do casino e a arqueologia da revista para as devidas proporções e dando um novo sentido à recuperação do centro de Lisboa. EXPOSIÇÕES Os críticos do «Cartaz» apresentam o já tradicional balanço do ano, desta vez procurando apontar o que de bom e de menos bom foi produzido nas diferentes áreas do universo cultural português. Sem a pretensão de exarar juízos definitivos e globais sobre autores ou criadores, as escolhas reflectem, nuns casos, uma valoração ponderada das expectativas ou, noutros, a valorização da originalidade, frescura e capacidade de perturbação de um determinado objecto cultural. Foi uma opção arriscada, mas o gosto pela polémica constituiu sempre um dos traços deste caderno. Os dez mais Alfredo Keil, Palácio da Ajuda; Giorgio Morandi, Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva; «Espíritos de África», Museu Nacional de Etnologia; Irving Penn, «Objectos para Impressão», Museu de Arte Contemporânea de Serralves; David Goldblatt, «51 anos de Fotografia», Centro Cultural de Belém; Augusto Alves da Silva, «CNB», Arquivo Fotográfico de Lisboa; «Espaço de Tempo»/«Ugly», Museu do Chiado; «Xerox», Promontório; Susana Solano, Porta 33 (Funchal); António Quadros, Casa da Cerca (Almada); Luís Pavão, «Lisboa / Em Vésperas do Terceiro Milénio» (livro de fotografias), Ed. Assírio & Alvim
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