"Na órbita de Madrid"
EXPRESSO/Actual de 27-12-2003
A programação das instituições segue um modelo único
(Fotos
Francis Bacon, «Duas Figuras Sentadas», 1979
Retrato de Stéphane Mallarmé, por Édouard Manet, 1876, exposto no Museu do Prado)
Exposições de Vermeer, Ticiano e Manet num só ano permitem fazer um balanço triunfal de 2003. Não se viram em Portugal, mas muito perto, a distância acessível a um grande número de interessados, e ouvia-se com frequência falar português nas filas de espera e galerias. Aliás, convém entender que nunca poderiam (nem poderão) realizar-se em Lisboa, porque a capacidade de montar iniciativas deste nível - máximo - não depende da extensão de ambições ou orçamentos: só pode ter origem num dos mais importantes museus do mundo. São as colecções do Prado e a cedência de obras para exposições noutros grandes centros que as tornam possíveis.
Enquanto decorre a integração das economias peninsulares (ou a
subordinação da nossa, a questão está em aberto) e se processa a
ampliação da cidadania à escala europeia, a proximidade geográfica e
cultural em relação a Madrid é um dado favorável ao acesso aos valores
maiores do universo da arte. Para além da Arco, um público alargado faz
ao longo de todo o ano o caminho dos Museus do Prado, Rainha Sofia e
Thyssen - por sinal, todos eles vão inaugurar grandes ampliações das
instalações no próximo ano, como se a crise só existisse deste lado da
fronteira.
É um público que sabe que em Madrid pode visitar exposições que não se
vêem em Portugal e que se interrogará sobre o porquê dessa
desigualdade, descobrindo que as dificuldades orçamentais não explicam
tudo.
A admirável e imensa exposição «Analogias Musicais. Kandinsky e os seus Contemporâneos», sobre a influência do modelo artístico da música (o paradigma não mimético) na linguagem abstracta da pintura, que se apresentou na Caja Madrid e no Museu Thyssen, tinha uma escala só possível numa grande capital. Mas no início de Dezembro podiam ver-se no Rainha Sofia retrospectivas de um dos mais marcantes fotógrafos da actualidade, o inglês Martin Parr, e de um dos mais influentes escultores modernos, Calder (até 16 de Fevereiro), enquanto a Fundação Juan March voltava a Kandinsky e à «Origem da Abstracção» (até 25 de Jan.). Trata-se neste caso de uma magnífica pequena mostra de 30 telas e 14 desenhos ou aguarelas vindos na maioria de museus da ex-URSS, do Tretiakov de Moscovo e de Astrakan, Erivan, Kazan, Krasnodar, etc., incluindo o maior óleo de Kandinsky, de dois por três metros, exposto diante de três filas de cadeiras demoradamente ocupadas (o mesmo se passava à frente do painel das fotografias de "Common Sense", de Parr, permitindo observar a qualidade da atenção - e da recepção - do público madrileno).
Com estes exemplos já é possível identificar um inaceitável desequilíbrio da oferta. Se devemos entender que Madrid é o grande centro em cuja órbita nos situamos, trata-se então de avaliar, comparando os museus que temos e as exposições que acolhemos, se Lisboa se encontra numa relação que não é de periferia mas de menoridade e marginalidade, e não face a Madrid, mas em relação a cidades equiparáveis, como Valência, Barcelona, Bilbau, Málaga, Santiago, etc.
Em Serralves, Francis Bacon foi uma inesperada excepção à regra da sua própria programação, mas a montagem da colecção que se apresenta até 11 de Janeiro, dedicada à «figuração e desfiguração», é a prova de que não teve consequências: regressou-se aos estereótipos da contracultura no texto de parede («A história da arte do século XX pode ser entendida, de forma sintetizada, como uma sucessão de inovações e rupturas que puseram em causa os processos criativos e a definição da obra de arte» - Bacon não cabe nessa síntese) e a uma selecção de nomes que é apenas, quanto aos portugueses incluídos, a reiteração de uma nomenclatura institucional, a ilustração do «mainstream» museal.
A Gulbenkian quase deixou de mostrar as exposições históricas e
os artistas internacionais que por muito tempo só se viam nas suas
galerias. É uma fundação mais rica que a Juan March, mas a programação
é inferior (ambas acolheram as aguarelas de Turner vindas da Tate). A
Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, que ainda mostrava Morandi em
Janeiro, não manteve este ano uma programação de igual nível. O Museu do Chiado trouxe Picasso e Marino Marini, ou mesmo uma irregular mostra de Man Ray, depois estagnou e até se esvaziou. A Culturgest começou com Ensor e Magritte, com Modigliani, Egon Schiele, etc., e deixou de cumprir as promessas. A par do CCB, as principais instituições instalaram-se num modelo único de programação,
raramente cosmopolita e dominado por antologias de artistas nacionais,
descurando os projectos temáticos e transversais, e concentrando a
oferta em actualidades em geral menores.
Em todas as áreas artísticas (da música e da literatura ao cinema) o
contacto constante com as obras maiores de diferentes tempos históricos
e a sua reavaliação permanente são constitutivos de uma relação culta
com a criação e de uma criação viva; no campo das artes visuais os
horizontes têm-se estrangulado.
Os 10 mais
Francis Bacon, Caged/Uncaged, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto
Turner, O Mar e a Luz, Museu Calouste Gulbenkian
Pedras e Rochas, Fundação Eugénio de Almeida, Évora/Arquivo Municipal de Lisboa
Joel Sternfeld, LisboaPhoto - Cordoaria Nacional
William Eggleston, Los Alamos, Museu de Serralves
Pedro Cabrita Reis, Bienal de Veneza; Galerias Presença, Porto; 56 Artes e Politécnica 38, Lisboa
Paula Rego, Jane Eyre, Galeria 111, Lisboa
Maria Beatriz, Galeria Palmira Suso, Lisboa
Ricardo Angélico, Centro Cultural de Cascais e Galeria Ara, Lisboa
Nuno Viegas, Galeria Arte Periférica, Lisboa
Exposições de arquitectura, engenharia («Engenho e Obra») e etnologia
(«A Voz dos Cestos») poderiam recordar-se numa lista mais abrangente -
e também, seguindo diferentes critérios de escolha, as de Lourdes
Castro, António Sena, José Loureiro, Rui Chafes, Fátima Mendonça,
Susane Themlitz, Rui Serra, Rui Fonseca e Rui Ferreira, além dos
pintores chineses mostrados pela Culturgest.
Nas escolhas negativas tomam lugar «Arquivo e Simulação» e «Cara a
Cara», duas mostras fotográficas muito dependentes de primarismos
teóricos e efeitos de moda; e igualmente «7 Artistas ao 10º Mês»
(Fundação Gulbenkian) e o Prémio EDP Jovens Artistas (Serralves), novos
passos no caminho da subordinação dos artistas às ambições de
comissários-tutores, através da promoção de projectos escolares. Reforçam-se assim os nós do academismo contemporâneo e desvalorizam-se os prémios como instância de consagração.
Quanto à «desilusão», diga-se que as ilusões se tinham perdido há
muito, mas a mostra e a sua montagem no Museu conseguiram exceder todas
as previsões.
A desilusãso: Ângela Ferreira, Em Sítio Algum, Museu do Chiado, Lisboa (Até 18de Janeiro)
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