"Não se passa nada"
in EXPRESSO/Actual de 31-12-2004
Um ano marcado por algumas grandes retrospectivas
(Foto: Escultura de Tony Cragg nos jardins de Serralves)
Duas antologias de Júlio Pomar, cobrindo uma 60 anos de actividade em contínua transformação e outra referente às obras recentes do seu «estilo tardio»; a actualização do contacto com Paula Rego, com acentuação da importância dos estudos desenhados diante de modelos vivos na preparação das suas pinturas a pastel; a evocação de Vieira da Silva através de obras dispersas por museus de todo o mundo; Gérard Castello-Lopes e o seu duplo papel de pioneiro moderno e de fotógrafo actual; Nuno Teotónio Pereira, arquitecto e figura cívica - a simultaneidade das revisões de algumas carreiras mais marcantes caracteriza o calendário de 2004 como um ano singular e irrepetível.
A que se poderiam juntar, entre outras, mais uma retrospectiva de Helena Almeida, o inquérito proposto à obra visual de Mário Cesariny (Prémio EDP 2002), a reunião da obra recente de Pedro Calapez, a reconsideração das actividades conjuntas dos Homeostéticos.
O tempo é de reexames e revisões, seguramente mais por aleatória
coincidência de agendas do que por propósito deliberado, mas o fenómeno
talvez não deixe de significar, quanto aos primeiros nomes citados, a
necessidade de situar sobre mais seguros pilares uma circulação
expositiva institucional demasiado ocupada com muito vulneráveis
interesses imediatos e efeitos de espuma efémera. A necessidade de
reencontro com o público, para o qual existem as instituições, seria
outra hipótese de trabalho não despicienda.
Entretanto, tem de notar-se paralelamente a falta quase total de
equivalentes, ou mais recuadas, aproximações a autores estrangeiros de
obras historicamente consagradas, ainda que por cá tenham aparecido
este ano, em exposições de escala excepcional, dois grandes escultores
britânicos que se afirmaram nos anos 70-80 (Cragg e Gormley).
Entre
nós, dispensam-se centenários e outras oportunidades de contacto com a
história, como se já se tivesse superiormente decidido que é em Madrid,
Bilbau ou Barcelona que tais coisas acontecem, como é normal
acontecerem em todos os grandes centros civilizados - esse já foi o
tema principal do balanço do ano passado. Não é a crise económica que
explica a sua ausência, porque não são essas as exposições
necessariamente mais caras e as que fazem menos bilheteira, mas elas
não servem os pequenos interesses próprios de quem decide (uma
burocracia artística fechada sobre si mesma e que aprendeu a resistir a
todas as mudanças políticas).
São elas que fazem mais falta para
consolidar uma mais culta e séria relação com as artes visuais, como se
passa em geral com a música ou a literatura.
Deveria, aliás, perguntar-se se algumas das grandes exposições que
marcam o calendário não acontecem apenas por táctica concessão de
conveniência ou por necessidades de marketing, passando sem deixar
marcas no discurso implícito dos programadores. Um famoso director
declarava a sua hostilidade a Paula Rego insinuando que desde que ela
entrara para a Marlborough (a famosa galeria multinacional) tinha
passado a «pintar mulheres gordas» (referência a Botero); agora temos
Paula Rego em Serralves, como tivemos Bacon em 2003, mas como insólitas
bolhas na programação, sem que deles decorra um aprofundamento crítico
sobre a diferença radical das suas obras, isto é, um reexame crítico
das condenações que foram sendo ditadas por uma interpretação muito
estreita de modernismo (a figuração, o assunto, a pintura, etc.) e do
que se pretende entender como padrão da arte contemporânea.
Nada se discute e tudo vai sendo uniformemente elogiado pela (pouca) imprensa restante, sucedendo-se as exposições, numa oferta apesar de tudo crescente, sem que em simultâneo se eleve a qualidade da recepção. Em certos casos não há mesmo recepção possível, de tal modo é silenciada a apresentação de algumas obras sob a contraditória lógica de promoção de outras exposições. Note-se o investimento ideológico feito em torno das «inovações artísticas» de 1965-75 ("A Obra de Arte sob Fogo", segundo o título da co-edição com o «Público») e o silêncio que envolveu Tony Cragg - em Málaga, em 2003, uma menor exposição justificou-se com a monumental tradução do seu catálogo completo (Signs of Life, 552 pág., 30 €).
Outras coisas aconteceram e ficam sumariamente apontadas: a adopção de novas políticas de intervenção mecenática por parte dos bancos Millennium e BES (este concentrando-se na fotografia); a alargada oferta oficial espanhola, deixada sem contrapartidas equivalentes (apesar da grande abertura dos centros de arte regionais a artistas portugueses); a multiplicação de exposições fora de Lisboa e Porto, algumas delas - Ricardo Valentim, no CAPC de Coimbra; Susanne Themlitz, em Sines - a merecer certamente inclusão na lista das 10 melhores, a julgar pelo que deles se viu noutras oportunidades.
As escolhas
:
Paula Rego (Museu de Arte Contemporânea de Serralves)
Tony Cragg (Casa de Serralves)
Vieira da Silva nas Colecções Internacionais (Fundação Arpad
Szenes/Vieira da Silva)
Anthony Gormley, Mass and Empathy (Fundação Gulbenkian, CAM)
Vidas Imaginárias (Fundação Gulbenkian, CAM)
Català-Roca, Barcelona/Madrid Anos 50 (Galeria da Mitra, CML)
Gérard Castello-Lopes - Oui/Non Centro Cultural de Belém)
António Júlio Duarte, We Can’t Go Home Again (Módulo, Lisboa)
A desilusão: Tony Cragg (Casa de Serralves
A lista acima reduz-se a oito itens por razões particulares que se compreenderão facilmente. Já a coincidência da «desilusão» com uma das escolhas das mais importantes exposições do ano tem de ser explicada (aqui e no texto ao lado). Em vez de catálogo, as esculturas de Tony Cragg que ocuparam a antiga Casa recuperada e os Jardins de Serralves, e que ficam na memória como uma das mais ambiciosas exposições já realizadas no Porto, só tiveram direito a uma folha de meia dúzia de linhas informativas e a uma lista de títulos com imagens microscópicas, enquanto a estratégia de promoção do museu dava toda a prioridade a uma muito duvidosa operação de revivalismo pós-68 («Interfunktionen»). A contestação do objecto artístico que aí se pretendia ilustrar como bandeira da arte contemporânea era contrariada pelas esculturas de Cragg, e era este, de facto, o artista contemporâneo. Por isso se fez silêncio à sua volta?
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