Os anos 90 não existiram
Espacio/Espaço Escrito, Badajoz 1998, Nºs 15-16, pp. 106-116
(Começada com o colapso do mercado internacional, a década de 90 subordina-se à política porque os jogos de poder, geracionais e institucionais, passam para a primeira linha dos interesses e das visibilidades. Mais discretamente, outros artistas trabalham)
«Afortunadamente la creación artística no es el mundo artístico, es
bastante independiente del mundo artístico.» — Tomás Llorens
(in «Pintura española de vanguardia (1950-1990)», ed. Fundación Argentaria - Visor Dis., 1998)
1. Duas exposições organizadas em anos sucessivos pela Fundação de Serralves, no Porto — «10 Contemporâneos», em 1992, e «Imagens para os Anos 90», em 1993 —, estabeleceram as coordenadas temporais da passagem da década de 80 para a de 90 e configuram quer as relações de força posteriomente em presença, quer o sentido — e a ausência de sentido — que foi tomando a relação com a actualidade e a história através da divisão por décadas. Observando atentamente o significado das duas exposições é possível estabelecer as principais linhas estratégicas da evolução dos anos 90, antes de, no final, fazer referência a alguns artistas, em geral de afirmação recente e isolada, que podem ser vistos, se aceitarmos o jogo das conjunturas, como representantes dos anos 90. Falarei primeiro, portanto, de questões de poder, porque são elas que estão na base do discurso das décadas, e depois de artistas que fazem nesta década o seu trabalho, com independência face ao tacticismo dos poderes artísticos.
Ultrapassar a «viragem 80/90»
2. A colectiva «10 Contemporâneos», comissariada por Alexandre Melo, teve por objectivo fixar um «Top Ten», assumindo a selecção curatorial como um afirmativo gesto de poder, sob a aparência de uma fria observação sociológica que se sobreporia à eventual opção crítica pessoal. Não tendo já carácter prospectivo (todos os artistas tinham «uma imagem pública consolidada»), a exposição também não podia pretender afirmar carácter geracional ou espírito de década, sob pena de se inscrever como passado frente ao início cronológico dos anos 90. Não se tratava de fazer história nem de sumariar o desenrolar dos acontecimentos da década de 80 ou reflectir (sobre) as suas viragens, sensibilidades e tensões, mas de assegurar, frente à «viragem 80/90», uma lista de artista «que são, ou poderiam ser, com o devido enquadramento institucional, parte integrante de uma situação internacional da arte contemporânea» (sublinhado meu). Os dez artistas escolhidos, dizia-se, «marcam de forma decisiva o momento actual da arte portuguesa» (1992) e «situam (-se) em lugares privilegiados de articulação com problemas e temáticas decisivas na década de 90» (A.M.).
Nessa exposição figuraram Julião Sarmento (nascido em 1948 — primeira individual em 1974), Gerardo Burmester (1953 — 80), Pedro Calapez (1953 — 82), Rui Sanches (1954 — 84), Pedro Cabrita Reis (1956 — 81), José Pedro Croft (1957 — 83), Pedro Casqueiro (1959 — 81), Pedro Proença (1962 — 84), Pedro Portugal (1963 — 85) e Rui Chafes (1966 — 86). Com Sarmento incluiu-se um caso de bem sucedida adaptação à viragem dos anos 70 conceptuais para os 80 neo-expressionistas; com os restantes desenha-se a crescente rapidez das revelações que se sucederam ao longo da década de 80, observando-se a descida da idade da primeira exposição individual dos 26/30 anos para os 23/20 anos. Tratava-se, de facto, de uma lista das afirmações mais assíduas e marcantes da década (com exclusão das práticas fotográficas) — a que se poderiam ter anexado, sem qualquer alteração programática, as presenças de Albuquerque Mendes (1953 — 1971), Manuel Rosa (1953 — 1984) e Xana (1959 — 1985), se o objectivo não fosse, precisamente, restringir a lista dos eleitos. Ao período em causa (e ao grupo reunido, por consequência), o comissário não atribuía «qualquer unidade estética, programática ou ideológica».
Enquanto evidente jogo de poder (candidato ainda a um «devido enquadramento institucional»), esta exposição pretendeu significar duas coisas. Por um lado, estabelecia-se a transferência dos «artistas dos anos 80» para os anos 90, graças à conjunção da rápida notoriedade adquirida com a alegada renovação de «problemáticas» que os manteria na primeira linha da actualidade — isto é, como diz A. Melo, ocupando «os lugares privilegiados» e assimilando os «problemas e temáticas decisivas na década de 90». Por outro, a delimitação de um agrupamento informalmente geracional integrável na «situação internacional da arte contemporânea» pretendia instaurar uma distância definitiva em relação a artistas mais velhos em actividade (Dacosta, Pomar, Paula Rego, Menez, Batarda, ou Rodrigo, Lapa, etc) que tinham sido tomados como referência, especialmente no contexto do «regresso à pintura» do início da década, mas que, implicitamente, teriam já deixado de ser «contemporâneos» e perdido a oportunidade da «internacionalização».
A ideia de que se estava perante uma primeira geração ou primeira década internacionalizável, nascida de modo certamente espontâneo de um contexto anterior que se considerava desligado das realidades mundiais pela vigência do regime ditatorial (apesar da importância notória de numerosas carreiras desenvolvidas na emigração), viria depois a ser usada como princípio estratégico, a partir da clara tomada do poder institucional pelos artistas deste grupo (o artista-director é uma marca da situação portuguesa) ou por agentes com ele identificados. A acção das entidades públicas (Estado e principais fundações) vocacionar-se-ía para a construção de um sistema de trocas internacionais com os chamados «sectores mais dinâmicos», enquanto as iniciativas de representação da arte portuguesa no estrangeiro se subordinavam ao interesse directo destes «contemporâneos», salvo um ou outro caso de ocasional repescagem de artistas que poderiam corresponder, como tradução portuguesa, à rotação dos revivalismos museológicos e salvo, também, algumas iniciativas em torno do modernismo das primeiras décadas do século (aliás, de descuidada concepção, como se observou durante a apresentação de Amadeo Souza-Cardoso na Fundação Juan March).
A operação de apagamento da linha das continuidades na história recente da arte portuguesa, que, a outro nível, a desqualificação quase geral dos estudos universitários de história de arte tornava possível, é uma marca fortíssima do actual panorama institucional, em contradição já demasiado evidente com as estratégias de revisão das diferentes produções nacionais e com as revalorizações quer dos contextos locais quer dos percursos artísticos solitários e não vanguardistas que passaram a interessar às instituições museológicas mais significativas.
Administrar a «revolta»
3. «Imagens para os Anos 90» foi comissariada por Fernando Pernes, então director de Serralves, com a colaboração de A. Cerveira Pinto (conhecido pelo jeito oportunista de cavalgar sucessivas movimentações geracionais e viragens de década). Assumindo um explícito carácter reactivo face à exposição anterior, esta segunda colectiva associou um programa que se queria prospectivo da «mutação de perspectivas críticas» a um discurso caricatural sobre os anos 80, vistos sob o prisma da «valoração da eficácia mercantil, da espectacularidade formal e (...) da efemeridade da moda». Significativamente, Pernes fazia uma óbvia projecção das suas próprias raízes geracionais, ao detectar na década já iniciada sinais de um retomar da «rebeldia juvenil dos anos 60» e o «desejo inconformista de uma arte de provocação e revolta».
Segundo os críticos dos anos 80 que então faziam o «aggiornamento» dos discursos, a exposição era «o obituário de uma ideologia que provou estar enterrada», depois de uma década de 80 «marcada pela hegemonia autoritária de um grupo de artistas que impedia a visibilidade de todos os outros».
Entre os 23 artistas incluidos — de que, por continuidade e interesse do seu trabalho, se poderão, com variável entusiasmo, destacar Sebastião Resende (1954), Joana Rosa (1959), Daniel Blaufuks (1963), Pedro Sousa Vieira (1963), Miguel Ângelo Rocha (1964) e, em especial, Rui Serra (1970), o mais jovem de todos — apenas oito tinham ainda menos de 30 anos e um número significativo estivera presente, com reduzida notoriedade, ao longo da década de 80 ou estreara-se mesmo já nos finais de 70. Nos anos seguintes, a generalidade dos artistas representados iria manter um regime de discreta e esporádica visibilidade, por fechamento do mercado e/ou por orientação da sua prática artística para modelos disciplinares inaceitáveis pelo sistema galerístico — num círculo vicioso e perverso em que o ressentimento parece constitutivo das atitudes que se pretendem de intenção crítico-desconstrutiva-deceptiva.
Na realidade, à amalgama das situações geracionais que aí se tomavam como «imagens para os anos 90» juntava-se uma indiferenciação total de projectos estéticos, mas, na sua própria incerteza, a exposição traduzia dois dados essenciais da nova conjuntura: Por um lado, ao esfriamento do mercado somava-se o efeito de saturação resultante das sucessivas e muito rápidas afirmações de jovens artistas ao longo dos anos 80, as quais, por sua vez, tinham desencadeado um crescimento exponencial do número de candidatos a artistas. «O espaço e a hora da juventude», que Pernes referia no título do seu prefácio, era cada vez mais estreito e iria tardar cada vez mais. Por outro lado, a instituição-museu anunciava a vontade de suscitar ou sustentar as emergências próprias da nova década — oferecendo como palco «de uma arte de provocação e revolta» o lugar da instituição, que teria sido entretanto conquistado pelos herdeiros da «rebeldia juvenil dos anos 60» (mas, de facto, seria o poder dos anos 80 que se instalaria cada vez mais). O texto crítico que então publiquei teve o título «Não há jovens».
4. Os seguintes anos 90 conheceriam muitas outras exposições colectivas de jovens artistas, com mais acentuado carácter de manifesto programático ou com espírito de grupo geracional, pontuando a década como micro-acontecimentos de interesse sociológico, enquanto testemunhos de um contexto muito pouco favorável à afirmação e mesmo à sobrevivência de vozes autorais distintivas. Fenómenos como a dependência de artistas que ambicionavam reciclar os insucessos da década anterior, a subordinação a operações de reequilibrismo teórico de certos críticos, a instrumentalização por ocasionais jogos de poder no interior do sistema institucional, a vinculação a novos modelos de alongamento da carreira escolar que beneficiam da contracção do «mercado de trabalho», a retoma de anteriores perspectivas teóricas de modo simplista ou revivalista (confundindo as revoltas dos anos 60 com uma conjuntura radicalmente distinta) e mesmo a confusão, o desencanto e o ressentimento causados pelo desvanecer das condições objectivas e subjectivas que tinham despertado antes um tão grande número de vocações artísticas acompanharam uma década que, de facto, se iniciou com o colapso internacional do mercado de arte desencadeado nos finais do ano de 1990.
A lista dessas colectivas teria importância se nelas se tivessem configurado proposições estilísticas que fossem mais do que miméticas ou conjunturais, ou se delas colectivamente tivessem emergido artistas de carreira posterior significativa. Não foi o que aconteceu, embora se conheça o surgimento de alguns nomes que, em condições de afirmação individual muito difíceis e mais lentas, devem ser seguidos. Note-se que a valorização das actividades de grupo (a ideia de «réseau», o «regime da comunicação» depois do «regime do consumo» — segundo Anne Cauquelin) correspondia, com uma fatal simetria, à realidade da rede consolidada como poder, tal como a retoma das ideias da desmaterialização do objecto artístico, já não associáveis a um contexto de forte activismo político, espelhava em negativo o fechamento do mercado. Entretanto, cumprindo os seus ciclos temporais, o aparelho museológico estimulava a recolha dos vestígios fetichizáveis da conjuntura dos anos 60/70 («Circa 1968» é o projecto inaugural do Museu de Serralves).
As ideias de ruptura, de vanguarda e de inovação tinham conhecido, com os anos 80, transformações decisivas, que não poderiam mais entender-se na perspectiva simplista de rotação cíclica de tendências ou sensibilidades; por outro lado, a crise económica e a reorganização dos intervencionismos estatais (que em Portugal conheceram atrasos de ritmo) determinam convulsões decisivas do que se chamou «o mundo da arte». Sem ser esta a oportunidade para desenvolver o tema, note-se como particularmente complexo para os jovens artistas surgidos na década de 90 um contexto em que se tornaram incontornáveis os diferendos sobre as crises da arte contemporânea e do estado-providência cultural, bem como em torno da releitura da história (das histórias) da arte do século XX e da renovação da reflexão sobre a estética.
Grandes manobras e lugares individuais
4. Os portugueses anos 90 passam-se sob a alçada de grandes operações de representação do Estado em exposições de visibilidade ou ambição internacional e de vastas oportunidades de encomenda pública: a Europália em 1991, Lisboa capital cultural em 1994 e a EXPO'98. No plano das acções oficiais (Estado e principais fundações), a exposição «10 Contemporâneos» tinha sintetizado a lista dos eleitos, que foi seguida e, num caso ou outro, foi ajustada para cooptar mais algum beneficiário dos favorecimentos públicos. O reequilíbrio dos enfrentamentos geracionais que em Espanha pôde ser protagonizado pela intervenção de figuras como Tàpies, Saura, Chillida, António Lopez e outros não ocorreu em Portugal, em grande parte porque figuras de equivalente notoriedade continuaram situações anteriores de emigração. A carência de autores qualificados nos domínios da estética, da história da arte e da crítica, que prosseguissem com autoridade carreiras afirmadas antes dos anos 80, fez-se igualmente sentir.
Os anos 90 conhecem, sob diferentes governos, de direita e de esquerda, a consolidação de políticas públicas mais orientadas para os «estímulos aos criadores» (a satisfação de clientelas) e a massificação do consumo cultural (os lazeres de massas) do que para a democratização do acesso à cultura, as acções educativas e as responsabilidades patrimoniais. Entretanto, assistiu-se a uma continuada recomposição das instâncias de poder que permitiu, em grande medida, compensar os efeitos da crise internacional do mercado e sustentar as carreiras oficializadas mesmo perante oscilações de qualidade criativa, ao mesmo tempo que se consolidava uma política institucional praticamente monolítica, capaz, por isso mesmo, de se preservar dos enfrentamentos críticos e geracionais. E é a partir dos lugares de poder que se enquadram e administram, enquanto franjas do sistema, sucessivamente descartáveis, as movimentações de mais jovens artistas para quem a alegada rebeldia («arte crítica» e «arte política», por exemplo) não é incompatível com a tutela institucional e que fazem do espaço oficializado do museu o seu interlucutor privilegiado.
À margem do sistema institucional existe um mercado privado dotado de alguma energia, tão mais enérgico quanto consegue autonomizar-se dos centros de poder (e por isso são as galerias ditas «de ponta» que encerram em Lisboa). Nos seus diversos segmentos, mais qualificados ou mais provincianos, preservam-se outras lógicas da criação e do consumo artístico, com um positivo efeito compensador da academização da circulação mais oficializada.
5. Não são necessariamente os mais jovens artistas que produzem as obras mais significativas dos anos 90. Júlio Pomar (1926) e Paula Rego (1935) realizaram nesta década algumas das suas obras maiores ou encetaram viragens de radical alcance. René Bertholo (1935), João Cutileiro (1937) e Jorge Martins (1940) igualmente não se limitam a prosseguir itinerários estabelecidos e têm criado, em anos recentes, obras que caracterizam situações de maturidade vividas com pleno fôlego inventivo, fortemente distintivas num universo que prefere as arregimentações colectivas, as subordinações estilísticas e a troca sazonal das opções críticas. Maria Beatriz (1940), na Holanda, Pedro Chorão (1945), Graça Pereira Coutinho (1949), Manuel Botelho (1950) são outros artistas de trajectos solitários que se situaram com vitalidade nos anos 90, contrariando a ideia de crise da pintura e a substituição da intensidade dos acontecimentos picturais pelos exercícios de codificação de contextos.
Um outro número de «10 contemporâneos», que não se pretende de modo algum contrapôr à totalidade dos artistas referidos no início, completa-se com o caso excepcional de Eduardo Batarda (1943), recentemento objecto de uma retrospectiva «esmagadora» na Fundação Gulbenkian. O seu «regresso à pintura» nos anos 80 (que foi um regresso à tela depois de 13 anos de pintura sobre papel, a aguarela) foi, de facto, um dos mais exaltantes acontecimentos dessa década, e as obras já mostradas na seguinte, conferem à sua carreira um dinamismo sempre renovado, constituindo-se como uma prática superiormente erudita de inventário e reexame de meios, linguagens e imagens da tradição da pintura. Confirma-se, face à sua obra, que a qualidade de uma produção pode reconhecer-se na razão inversa da sua circulação internacional. Aliás, não é ocasional ou irrelevante o facto de a generalidade dos artistas citados (quase todos pintores, sem que se possa falar de uma «Escola de Lisboa») ser alheia às mais insistentes passagens por feiras e salões ditos contemporâneos.
Dois fotógrafos revelados já nesta década, Augusto Alves da Silva (1963) e António Júlio Duarte (1965), podem encabeçar um outra lista de jovens artistas, aos quais há que acrescentar a novidade do regresso a Portugal, da divulgação do trabalho anterior e das exposições mais recentes de José Manuel Rodrigues (1951).
Augusto Alves da Silva, recém-exposto no Museu Rainha Sofia, questiona e desconstroi com ironia os códigos escolares da fotografia dita pós-conceptual. Num trabalho que equaciona o uso documental da fotografia, as noções de estilo e o olhar autoral, mas que é sempre um acto de observação do mundo, A.A.S. sujeita a uma extrema tensão o que (não) separa a objectividade da subjectividade da imagem fotográfica, pondo em causa o lugar do espectador e os modos da recepção, de um modo que é também um comentário subtil às condições da circulação «artística» da fotografia.
António Júlio Duarte, que igualmente estudou em Londres, é um viajante inquieto, com insistentes destinos orientais («Oriente-Ocidente», 1995). Reata com uma larga tradição fotográfica (a preto e branco, em formato quadrado), já informado de posteriores derivas e diários íntimos, fazendo do encontro de acaso com as diferentes realidades um exercício de construção formal rigorosa, marcada por estruturas geométricas e recortes de sombras, onde as caracterizações documentais do lugar e do tempo se tornam de certo modo indiferentes sob a afirmação de uma permanente curiosidade e comunhão do olhar (dos olhares).
José Loureiro (1961), com primeiras individuais em 1988 que o revelavam com um artista prodigiosamente dotado, a que se seguiu um natural período de buscas e incertezas, mostrou nos últimos anos séries de quadros «abstractos», estruturados por grelhas ou tramas de quadrados («Palavras Cruzadas») e de bolas, onde se constrói, de um modo simultaneamente programado e aleatório, como um acontecer de pintura, uma materialidade incerta, de profundidade espacial instável ou elástica, com um notável sentido da cor.
Rui Serra (1970) segue um percurso de gradual «desconstrução» de uma lógica metodicamente programática, partindo da utilização de imagens pré-existentes, da história da arte ou da comunicação mediática, e da aplicação da pintura de modo aparentemente mecânico para se interditar o exercício da imaginação e o evidente virtuosismo. Sob a disciplina do projecto e o rigor dos processos insinua-se a vontade de soltar a pincelada e o olhar.
Fátima Mendonça (1964) faz uma pintura que se vê como um exercício possivelmente confessional (ou será um jogo ficcional?), construído sempre como uma narrativa sequencial de situações de infância e afirmação feminina, de sedução e culpa, de enfrentamento de memórias privadas e da relação conflitual com os outros. O corpo oferecido ou infantilizado, o sangue, o brinquedo e o estereótipo sentimental, a casa, a arena (na figura da mulher toureira), etc, configuram um diário emocional que se inventa em desenho, escrita e pintura.
A última e mais recente «revelação» será Mónica Machado (1966), que trabalha em Paris. Nas suas esculturas redescobre-se a «assemblage» e a acumulação, usando o azulejo e a cerâmica, a fotografia e os mais heteróclitos objectos e materiais, em peças, por vezes motorizadas, de um extremo barroquismo. Muitas vezes com carácter auto-referencial e de comentário sobre a vida pessoal, sobre moldagens do próprio corpo, as suas esculturas são máquinas excessivas, paródicas e terrificantes, que devassam e romontam as anatomias do desejo.
Todos estes são percursos estritamente individualizados, solitários ou muito rapidamente distanciados de afirmações de grupo. Todos eles partem de um domínio rigoroso dos meios, quase obsessivo por vezes, e assumem os projectos da criação com uma intensidade vital que assegura, na viragem do século, a necessidade e a continuidade da arte, uma longa tradição.
Com ilustrações de Eduardo Batarda
Augusto Alves da Silva
António Júlio Duarte
José loureiro
Rui Serra
Fátima Mendonça
Mónica Machado
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