“As pinturas provocam outras pinturas”
(3 de Março de 2001)
Publicado em JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2001
De uma exposição para outra - das palavras cruzadas às bolas, e destas ao que se lhes seguiu -, como é que se estabelece um programa de mudança?
- A palavra programa é demasiado forte. Não existe programa, as coisas vão-se desenvolvendo e vão-se modificando naturalmente. Houve uma passagem lenta de bolas outra vez para riscas, que não são propriamente riscas: as bolas foram ficando reduzidas a linhas, a barras muito estreitas e muito próximas umas das outras, e daí a superfície da tela começar a parecer-se com um ecrã… A aproximação das barras e a sua instabilização com os pontos criou uma vibração óptica, que a certa altura resultou numa espécie de ecrã, muito vibrátil.
Há uma série que se substitui a outra, ou os quadros sucedem-se sem
existir um corte?
- São mais os quadros a sucederem-se, apesar de nas exposições haver
alguma unidade entre as pinturas. Não penso que tenho uma exposição e
faço um bloco de quadros que traz alguma coisa de novo, e a seguir
outro bloco que adianta mais alguma coisa. Não tem nada a ver com isso.
A pintura é um processo de constante mutação e às vezes de mutações
imperceptíveis, de que a certa altura não nos apercebemos muito bem mas
que se tornam preponderantes; às vezes acontecem reenvios, ou há
pinturas que vão mais adiantadas para outros lados. Vejo o meu trabalho
mais como uma linha contínua de progressão, não como uma coisa
programada.
O ecrã apareceu e agora mais uma vez desapareceu. Essas barras
pontuadas e muito vibráteis transformaram-se em barras mais rígidas,
com uma presença mais forte… Mas continua a haver essa noção de pintar
nos interstícios de qualquer coisa que já está lá, e a desmultiplicação
dos planos continua a ser importante.
Uma nova série não corresponde a uma mudança de programa, mas na sua
pintura, as bolas e depois as barras são de algum modo um sistema, ou a
procura de um método, mesmo que ele não se estabilize numa fórmula.
- O método é, digamos, uma percepção mais genérica das coisas. Isto é:
se virmos as pinturas ao longe, percebemos que há um método por trás
delas, mas vendo ao perto, elas diferenciam-se muito entre si. Essas
pequenas diferenças acontecem no acto de pintar. É impossível
estabelecer uma fórmula: não é A mais B igual a boa pintura. Não pode
ser. O método exige lidar com algumas constantes que as pinturas têm,
mas nos interstícios dessas constantes acontecem coisas diferentes.
Qual é a importância dos estudos desenhados? Que relação há entre os
desenhos e as pinturas?
- Jamais consegui aplicar o desenho a uma pintura. É totalmente
impossível, porque os materiais mudam. O desenho é muito mais imediato,
enquanto a pintura lida com materiais mais pesados, que exigem uma
maior distância, e a passagem do desenho para a pintura é sempre muito
problemática. Digamos que eu faço uma série de desenhos, guardo uma
ideia genérica, que é como um conjunto de preocupações, e depois a
passagem para a pintura é muito aleatória.
Quando pinta, trabalha em vários quadros ao mesmo tempo?
- Não. Tenho vários quadros à minha frente, mas pinto um de cada vez.
Quando deixo de pintar um quadro e passo para outro é porque,
momentaneamente, não sei o que hei-de fazer com ele. Mas sei que há
coisas que não estão bem, há coisas que foram massacradas - tenho de
descansar dessa pintura e passo para outra. Tenho a ideia muito clara
de que cada quadro tem de ser pintado sozinho. Não dá para passar cores
de um quadro para outro, nada disso.
Há sempre uma grelha rígida, que surge como um suporte que vai ser
perturbado…
- A estrutura é sempre muito forte nas minhas pinturas, desde as
“Palavras Cruzadas”, e mesmo antes, nas naturezas mortas; sempre tive
uma ideia forte da presença de uma estrutura, de uma organização muito
bem fundamentada. Mas a sequência das pinturas é sempre perturbada, há
uma instabilidade que me interessa. O que é interessante é ultrapassar
e tornar instáveis as regras que às tantas se vão criando na nossa
forma de ver as coisas…
As pinturas provocam outras pinturas. Nas que estiveram expostas no
Palácio da Ajuda houve uma passagem entre quadros em que as linhas
ainda tinham alguns pontos e outros em que, a certa altura, essa
pontuação da linha deixou de ser necessária e as linhas separaram-se.
É, digamos, como o entreabrir de um estore. A certa altura surgiu uma
espécie de persiana, de um estore, e ele abriu-se, mas isso não é
provocado…
Como é que numa situação em que existia uma marca pessoal
muito forte surgiram referências a Matisse e a Pollock?
- Esse confronto com os pintores que nos dizem alguma coisa é
permanente. É um diálogo com o passado, embora ao mesmo tempo haja um
distanciamento desse passado. Umas vezes esse diálogo está mais
presente, noutras está menos presente, e tem-me acontecido dialogar com
coisas diferentes. O diálogo com o Pollock e com as redes de drippings
sem dúvida que está presente, de uma forma diferente porque a tinta não
é projectada, mas há uma desmultiplicação do espaço, como havia nas
coisas dele, e também existe uma noção de rede: atrás de coisas vêm
coisas que se sobrepõem a outras coisas…
Tratou-se de confrontar o seu sistema de trabalho com o de outros
artistas?
- É muito perigoso quando a pintura se transforma num sistema. Ser
sistemático é diferente de ter um sistema. Eu sou muito sistemático,
mas procuro o confronto. Acho que basta ter apenas uma ideia, uma ideia
muito forte, mas depois há que ter a capacidade de confrontar essa
ideia com objectos estranhos, há que introduzir a estranheza na ideia.
Isso para mim é muito presente. Estou sempre à procura da estranheza,
de introduzir elementos que descompõem, que se desviem de qualquer
previsibilidade. Esse é o perigo de usar uma grelha, mas por outro lado
é um desafio - torna-se um desafio subverter esse sistema: tornar a
rigidez uma coisa leve, etérea, ora mais pesada ora menos, contornar a
rigidez.
E reconhece a proximidade com algumas pinturas do Brice Marden?
- Acho que essa aproximação obviamente se pode estabelecer, mas o
próprio Brice Marden fala do Pollock em relação às suas pinturas.
Quando eu separo as linhas e elas se transformam em barras, como há uma
distância maior entre elas, elas produzem um espaço novo onde podem
acontecer outras coisas, e essas pequenas linhas que se introduzem
entre as barras e que se vão continuando empurram essas barras. O
espaço está dividido e está segmentado, esse espaço pode ser percorrido
por grandes pinceladas horizontais ou por linhas verticais.
Mas acho
que a aproximação ao Brice Marden é acidental; acontece de modo
fortuito porque tem uma origem diferente.
Quando é que uma pintura está acabada?
- Uma pintura está acabada quando se chegou a uma determinada
organização do espaço em que as coisas funcionam entre si, e já não são
o somatório dos processos de fazer. O resultado tem do ser sempre uma
coisa superior ao processo. É uma coisa muito intuitiva. Tem a ver com
atingir uma depuração da imagem, haver uma concentração de meios e não
um desperdício de meios, percepcionarmos qualquer coisa organizada em
que as coisas se reforçam e não se anulam… Mas é um fim sempre
provisório.
Sente-se a trabalhar no interior de um campo a que se poderia chamar
abstracção?
- Creio que não, mas não é uma coisa em que eu pense muito. Podemo-nos
perguntar se a abstracção existe realmente, e talvez exista do ponto de
vista formal, mas muitas vezes um espaço não organizado que não sugere
uma figura pode sugerir uma coisa espectral, sugere figuras que não são
figurações. Realmente não me considero um pintor abstracto nesse
sentido estrito. A prova é o surgimento daquelas figuras nas pinturas
de 99 que foi puramente fortuito: surgiram acidentalmente e sem
qualquer problema, meteram-se lá, e pode ser que se metam outra vez.
Aparentemente as últimas pinturas voltam a ser mais abstractas (entre
aspas), mas não vejo isto como uma organização fria, por elementos...
As grelhas e as barras paralelas não representam nada mas são de certa
forma uma figura, que ao princípio não tem nome e que, pelos vistos, a
partir de certo momento faz apelo a um nome, porque não são
verdadeiramente abstractas. Acho que nunca pensei nessa questão da
abstracção e da figuração porque sempre circulei entre as duas. A
abstracção não superou a figuração, e esse sentido finalista da
história é que foi absolutamente superado.
O que significa para si a mudança de década (e também de século), já
que há o hábito de ligar um artista a uma certa década, ou à datação de
uma determinada problemática?
- Essa datação das problemáticas sempre me fez muita impressão. É uma
espécie de limitação que nos é imposta. Às vezes até terá sido
positiva, quando pensamos naqueles pintores russos do princípio do
século, em toda aquela energia, em todo aquele momento explosivo de
novas coisas que surgiram. Apetecia ter feito parte de uma coisa
dessas. Hoje em dia o espaço está tão estilhaçado, a ideia de vanguarda
é uma coisa tão desactualizada…
Tenho uma noção do que se está a passar no momento e do que se passou
para trás, mas nunca pensei nas minhas pinturas como ligadas a uma
década. Não tenho a consciência de que seja um artista da década de 90,
ou 80, acho isso uma coisa absolutamente secundária no meu caso. É uma
noção muito restritiva porque temporalmente uma década é uma coisa tão
escassa… É um estreitamento, uma concentração do tempo que não é
produtiva. Eu desenho todos os dias… As minhas preocupações são
subjectivas e individuais, sou individualista nesse aspecto. Procuro
ver o que se passa à minha volta, mas depois a criação da pintura, os
desenhos, todo esse corpo de trabalho, é gerido individualmente. A
forma como eu encaro a pintura é uma coisa muito solitária, exige uma
atenção diária, mas isto não significa um isolamento. Há sinais que se
detectam e que acabam por entrar na pintura, mas é de uma forma muito
subjectiva, não programada e não dirigista.
De que artistas se sente mais próximo?
- Os meus gostos em relação a outros pintores são muito variados. É
impossível especificar, interesso-me por muitas coisas; gosto tanto do
Pollock como do Mondrian, ou do Rothko, gosto muito dos expressionistas
abstractos americanos, por exemplo, mas também de muitas outras coisas.
Lembro-me de que quando comecei a expor tinha muito presente o meu
gosto pelo Soutine, que era alguém que estava lá longe… O meu gosto
flutua, embora seja muito ciente dos meus gostos.
E agora assume essa relação com os expressionistas abstractos
americanos?
- Não se trata de assumir… Houve uma aproximação a certo momento em
relação especificamente ao Pollock. Aquela coisa enrodilhada agrada-me,
mas é uma coisa que não é apenas traduzida na pintura dele. Por
exemplo, no Soutine, naquelas pinturas tão mal pintadas (entre aspas)…
gosto dessa coisa pouco pura… O meu uso de grelhas é sempre no sentido
não direi de conspurcá-las, mas de as sujar… Naquela minha pintura do
Mondrian a partir de Lichtenstein, a ideia que estava presente era a de
fazer linhas tortas, pura e simplesmente; era pôr um bocadinho de
Soutine numa linha daquelas… É uma coisa retorcida. Mas, por outro
lado, também gosto de coisas muito claras. Flutuo: há um campo muito
plástico de flutuação na minha pintura.
Mas não existe uma forte pressão para um artista estabilizar uma
linguagem, repetir uma marca?
- Refazer uma assinatura é uma coisa muito melancólica, muito triste.
Para o mercado é simples porque se reconhece um valor, mas uma pessoa
que é consciente dos meios que utiliza não se pode deixar ficar por aí.
Evidentemente que eu creio que tenho uma linguagem própria mas que não
é fechada, é uma linguagem que encolhe e alastra, que está aberta a
variados factores. Mas a linguagem no sentido de um vocabulário é uma
coisa muito pobre, e hoje mais ainda, com toda a diversidade de meios
que temos à nossa disposição. Estabelecer um programa de assinatura,
programar uma assinatura é terrível.
Há uma grande diversidade nas suas últimas pinturas.
- Por exemplo, quando as linhas se despenham através daquelas barras
horizontais, podemos lembrar-nos do Brice Marden ou do Pollock, mas
elas não se despenham só nesse sentido - elas entram em conflito,
conflituam… e esse conflito faz parte. Quer dizer que não podemos estar
nunca satisfeitos com a nossa imagem. Não vejo nestas pinturas um
afastamento das minhas preocupações anteriores, mas elas podem ser
muito diferentes das que foram feitas no ano anterior. Isso agrada-me
porque é um sinal de que a pintura continua a ter possibilidades dentro
de si própria.
É trabalhar em constante risco?
- Eu não vejo isto como uma situação de risco. Acho que nos artistas de
que gosto é uma situação inerente à própria criação. Podemos pegar no
Rothko, que aparentemente andou vinte anos a fazer aquelas pinturas,
mas no caso de um homem daqueles jamais poderemos falar numa fórmula.
Aquelas pinturas têm uma intensidade e uma ética… essa ética é inerente
ao trabalho de um pintor ou de artista. Não é só a intensidade da
pintura, é a vida a imiscuir-se na pintura. Houve uma altura em que
pensava que as pinturas não deveriam ter nada a ver com a minha vida,
mas é uma coisa impossível de destrinçar.
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