"Equilibrios instaveis"
"A pintura impura de José Loureiro, entre os seus programas prévios e o acontecer do quadro, num momento de aproximação às grelhas de Mondrian"
EXPRESSO/ACTUAL de 17 de Março de 2007
Galeria Cristina Guerra
É inevitável pensar em Mondrian e nas suas composições de rectângulos e quadrados definidos por traços negros que estruturam o espaço plano do quadro, onde se inscrevem zonas brancas ou de cores primárias. Nas pinturas de José Loureiro as linhas rectas interrompem-se ou duplicam-se (são a justaposição de contornos de moldes usados como régua, em precária aliança da mão e da máquina), a ordem é instável (arbitrária, mas justa), a estrutura vacila sem se desmoronar, a superfície branca «all-over» vibra, abre-se para dentro, numa insondável profundidade flutuante, como um ecrã catódico, mas é a grelha de Mondrian que se move nestes quadros. Não é a primeira vez que esse encontro acontece nem ele é acidental, tratando-se de um pintor que põe em jogo meios de organização sistemática do espaço do quadro, com formas modulares, padrões, barras e outros elementos de repetição estrutural - e também, para lá da fronteira movediça do que se chama abstracção, matrizes recortadas de figuras e objectos, adoptando a disciplina da variação mecânica em situações de representação figurativa.
A grelha teve, no século XX, a partir do cubismo, um papel de especial importância, chegando-se a substituir o mundo visível pela busca da sua estrutura espacial (Rosalind Krauss chamou-lhe o «emblema da ambição modernista»). Mondrian levou mais longe que ninguém a especulação sobre a variabilidade harmónica da grelha geométrica não decorativa, investigando questões de ritmo, equilíbrio dinâmico, tensão e oscilação ópticas ou vibração espacial. A visualidade pura da «nova plástica» não se pode isolar, porém, duma reflexão milenarista, utópica e de contornos místicos que a distingue de outros formalismos modernistas.
No âmbito da conflitualidade ideológica do primeiro pós-guerra, tratava-se de atravessar as aparências para atingir um equilíbrio universal de relações, partindo da dualidade fundamental da vertical/horizontal para abordar ou resolver outras dualidades: masculino/feminino, material/espiritual, abstracto/natural, etc. No caso de José Loureiro, o conhecimento das vicissitudes das utopias escreve-se silenciosamente na prática pictural, mas os elementos formais também nunca são apenas formas destituídas de conteúdo e expressão. São sempre possibilidade de sentido e de emoção, dinamizada pelo olhar activo do observador que contempla. Numa entrevista, Loureiro falou do gosto em «flutuar» entre Mondrian e Soutine. É isso que aqui se passa, nestes quadros de grande formato que usam os meios mínimos da pintura (a linha e duas não-cores, branco e preto, mas transformadas em cores com luz própria), não como resíduos dum caminho geral fatalmente reducionista mas como elementos bastantes para continuar a manifestar toda a ambição da pintura.
Loureiro chegou às actuais grelhas instáveis a partir de trabalhos em que repetia módulos contíguos de dimensões constantes, numa estrutura ortogonal plana sujeita a sobreposições ocasionais de formas iguais mas de cores diferentes. A estrutura aparentemente rígida (vendo melhor, sempre variável de densidade, espessura e velocidade do seu traçado modular) dava lugar a uma rede irregular graças a esses módulos móveis, descentrados e ligeiramente oblíquos, que conferiam relevo espacial à superfície e inscreviam o seu tempo de factura na imagem-objecto plástico. Nesse trânsito que a pintura inclui importam o programa e a sua variação improvisada, a regra e o acidente, a hesitação da mão e os acasos materiais, como se a vibração do fazer dessa grelha a tornasse mais atraente e perfeita, talvez porque mais humana. A possibilidade de recomeçar, repintando tudo, oculta-nos o que, ao olhos do observador privilegiado que é o pintor, se pode tornar uma obra falhada (era esse o caso do «quadro negro» exposto em Sines em 2005).
Na passagem para as telas actuais, a regularidade modular deu lugar à malha variável de rectângulos e quadrados a preto e branco que tem a marca especulativa de Mondrian, mas sem a economia e equilíbrio duma tensão geométrica que procura o universal e o intemporal. Todas as hipóteses simbólicas da janela, da cruz, da árvore, etc., são também anuladas pela recusa da simetria e das relações de proporção que Mondrian designava como «trágicas». Em vez da contemplação da forma plástica que busca a harmonia dum tempo messiânico, de uma ideia da «aparição abstracta das coisas» alheia à aparência natural, estamos perante o acontecer material da pintura, com as impurezas, os acidentes, os acasos, o tempo e os modos do fazer que se interpõem entre o projecto e a decisão de chegar ao fim de um quadro.
Numa outra tela, de ainda maior formato, a inscrição de um rectângulo muito alongado e também vacilante, numa breve deslocação lateral, pode ver-se como um encontro com Barnett Newman. Não é citação, apropriação ou simulacro, nem vem prolongar o sentido metafísico dos eixos verticais do pintor americano, sem certamente se recusar a ser uma homenagem prestada a um dos herdeiros de Mondrian. Duas telas mais, muito diferentes (e toda a exposição simultânea no espaço Chiado 8 que se prolonga até dia 23 - ver «Actual» de 20-01-07), situam esses encontros com o que já é história, sem deixar de ser pintura viva, no âmbito do itinerário pessoal dum grande pintor dos nossos dias. Entretanto, falar de «regresso da pintura» não é mais do que ruído.
José Loureiro
Galeria Cristina Guerra, de 1 a 31 de Março
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