Avigdor Arikha em Lisboa, no EXPRESSO/Cartaz de 30-05-98
"Arikha: o olhar e a mão"
Pintor e erudito, Avigdor Arikha recomeça a pintura «do natural» («from life»), depois do modernismo. Passagem por Lisboa
O PINTOR Avigdor Arikha foi um dos mais discretos participantes no seminário «A Europa e a Cultura», promovido pela Gulbenkian. A sua obra nunca foi exposta em Portugal, e o nome não faz parte das referências obrigatoriamente incluídas no que pode chamar-se cultura geral, ainda que seja possível vê-lo exposto, todos os anos, entre os artistas apresentados na Arco de Madrid pela galeria Marlborough, perto de Paula Rego e de Bacon.
Pintor e erudito, ensaísta sobre temas de história da arte, comentador das cartas de Poussin, autor de filmes sobre arte para televisão e comissário de exposições (de Poussin e Ingres, em especial), Arikha é um artista original e solitário que é possível situar entre a meia dúzia dos nomes mais importantes da arte contemporânea. Actualmente tem uma exposição em Londres, naquela mesma galeria (até 15 de Junho), e apresentou antes, em Nova Iorque, uma selecção dos seus desenhos desde 1965 até ao presente. No Outono, uma retrospectiva da sua obra será mostrada ao mesmo tempo nos museus de Tel-Aviv e Jerusalém, viajando depois apenas até Edimburgo.
A Lisboa, veio falar sobre «a perda do critério da qualidade em pintura», e a sua intervenção pôde ser classificada de polémica e provocatória, porque as artes ditas plásticas são, actualmente, um terreno de maiores perplexidades que a música ou a literatura. Se a relação com a música, por exemplo, passa pela exigência de uma escuta atenta, pela educação do ouvido, por uma experiência sensorial e emocional e, por exemplo, pela apreciação da excelência de uma interpretação, a pressão da massificação cultural e uma certa ideia de democratização da arte, associadas a um entendimento da modernidade moldado pelas ideologias vanguardistas, parecem desqualificar idênticas exigências em relação ao olhar. O dom de um artista, o talento, a aprendizagem do olhar (que também é uma faculdade desigualmente partilhada, embora admiti-lo se entenda como uma posição elitista), a qualidade ou a ressonância emocional de uma obra e o gosto individual ou o juízo estético passaram a ter pouco acolhimento nesta área.
Arikha utiliza muitas vezes a distinção entre imagem e pintura como se fossem as duas faces de uma moeda, para separar o que num quadro é da ordem da descodificação e da informação, comum à ilustração ou ao «design» de pictogramas, e, por outro lado, o «como», a intensidade do facto pintado, que é intrínseca aos meios picturais e não decorre do «assunto». Considerada «menos 'retiniana' que descodificável», traduzida em «conteúdos» por comissários e críticos a quem deixou de exigir-se «um gosto seguro guiado por um olhar apurado», segundo disse Arikha, a relação com a pintura parece ter regressado a um tempo anterior a Mondrian.
Para além de referir que já Renoir, no começo do século, associava a maquinização do antigo trabalho artesanal («a supressão do trabalho inteligente nas profissões manuais») ao «aumento anormal» do número de pintores e escultores e à sua «mediocridade geral, como inevitável consequência», Arikha defende que o quase total abandono da luz natural nos museus se tornou uma «calamidade». «A luz artificial - insistiu Arikha na sua conferência na Gulbenkian - distorce a percepção cromática, sendo a cor só reconhecida através de uma reconstrução memorizada. Mas a pintura é baseada em modulações tonais que deixam de ser percebidas e, por isso, o que resta de uma pintura sob luz artificial é apenas a imagem. Esta distorção da percepção tem um efeito destrutivo sobre todo o legado pictural da tradição, que é comparável ao declínio que teve lugar na Europa durante os séculos VI e VII.»
Esse é um dos factores de uma crescente «iliteracia visual», sobre a qual se sustenta a ficção de que existe uma «cisão entre a 'arte contemporânea' e a arte do passado», convicção herdada das vanguardas e actualizada pela voga actual do pensamento politicamente correcto.
Crítico do modernismo naquilo que considera ser a sua posterior continuidade maneirista, Arikha não é, de facto, antimodernista e faz questão de se distanciar daqueles que, como o seu amigo Jean Clair, preconizam um retorno à tradição pré-moderna. Kandinsky, Klee e Mondrian são para Arikha referências incontornáveis, que vieram mostrar que «a abstracção é a essência da pintura» («essencial e redutora, a abstracção submete a realidade à forma»).
Num artigo muitas vezes citado, Arikha dissera que «a abstracção modernista foi, no seu início, um banho de juventude para a arte ocidental. Ela permitiu desembaraçar a linguagem pictural do mal-entendido literário e relegar a velha 'mimesis', mesmo que ilusoriamente, para o esquecimento. Permitiu afastar enfim a anedota (esse vírus do olhar) e fazer transparecer através da opacidade do quadro o motor efectivo da pintura, ou seja, os seus elementos constitutivos: as linhas, as formas, as cores e as suas relações recíprocas. Ela permitiu a Mondrian arrumar o quarto de Vermeer, desembaraçando-o dos seus acessórios, mas também do seu conteúdo. Ele fechou a porta, embora tenha deixado a chave.»
Referindo-se também à sua própria obra, Arikha diz-nos, no final da sua conferência, que «vivemos numa contradição profunda: o modernismo revelou-nos o poder da abstracção, mas acreditou-se que a abstracção era um caminho a seguir. Por um lado, a abstracção é verdadeiramente a pintura, e é, de facto, tão antiga como a arte, mas por outro lado ela não é continuável enquanto 'pura' abstracção porque se transforma num maneirismo». E acrescenta: «Eu pinto 'd'après nature' \[isto é, «do natural» ou diante do modelo, mas continuo na minha cabeça um pintor abstracto, porque tudo o que me atrai é imediatamente traduzido em forma, em planos, ou seja, em linguagem pictural. É do visível que recebo, ou colho, a minha força. A expressão não basta. Ao fim de vários anos de abstracção, vi que me repetia a mim próprio, que apenas 'falava' de mim. A minha pintura era o eu, e o que me interessa é o tu, o ele, a alteridade, a objectividade, a verdade.»
Arikha não se considera um pintor realista, ao contrário de um Lucien Freud. Define-se como um artista pós-abstracto, apesar de as suas pinturas e desenhos poderem ser vistos como estritamente figurativos.
Os seus retratos, naturezas-mortas, interiores e paisagens, escolhidos (ou melhor, desencadeados) no quotidiano do pintor como «não-assuntos», nascem de uma estrita sujeição à disciplina da observação, mas «não é a representação que interessa» ao pintor. Trata-se, diz, de «refazer o elo entre o olho e a mão, entre o vivido e o sentido, entre a realidade e a pintura», que são, na grande tradição da pintura, o que constitui a sua indizível qualidade.
Até 1965, Arikha foi um pintor expressionista abstracto. De súbito, repetindo de algum modo a viragem que ocorreu na obra de Giacometti, de quem era amigo, e concretamente motivado pela impressão causada por uma exposição de Caravagio no Louvre, passou a dedicar-se exclusivamente ao desenho do natural - «from life» ou «sur le vif» traduzem melhor a sua condição, sem o peso de uma tradição académica que se degradou como convenção, ou dogma idealizado, em meados do século XIX.
Tratou-se de uma espécie de disciplina ou reaprendizagem do olhar e da mão, em que o que importa não é o mimetismo da representação, mas uma emoção imediata, a velocidade e a densidade de uma energia em acto, inscrita como um «traço de vida». O pintor utiliza a palavra chinesa «shi», traduzível por «espírito», mas que significa também estilo ou voz interior e é mais próxima do sentir do que a noção de beleza, tomada no Ocidente como a essência da experiência estética.
Durante oito anos Arikha foi incapaz de pintar, mas praticou nos seus desenhos uma grande diversidade de processos, sobre papéis preparados e utilizando pincéis orientais, dedicando-se igualmente à gravura. Uma exposição dessas novas obras, em 1967, com uma apresentação de Samuel Beckett, frequentemente retratado, e outra em 1970 no Centro Nacional de Arte Contemporânea, que antecedeu o Centro Beaubourg, em Paris, prefaciada por Barbara Rose, estabeleceram desde logo uma importante projecção de Arikha, no contexto dos grandes debates da época sobre o possível destino ou esgotamento do modernismo formalista. Uma outra mostra de gravuras, já organizada pelo primeiro director de Beaubourg, Germain Viatte, com introdução de André Fermigier, percorreu depois, durante cinco anos, de 74 a 79, 28 cidades da França e três da Alemanha, mas, com a década Lang, a circulação de Arikha orientou-se preferentemente para os Estados Unidos e a Inglaterra, defendida com especial paixão por Robert Hughes, Maurice Tuchman, Jane Livingston e outros. Um álbum publicado em 1985 (Arikha, ed. Hermann, em Paris e ed. Thames and Hudson, em Londres) recolheu aqueles prefácios, textos críticos e entrevistas. Uma outra grande monografia, escrita por Duncan Thompson, foi editada em Londres em 1994 (Arikha, Phaidon), enquanto os textos do pintor sobre teoria e história da arte foram coligidos em Peinture et Regard (ed. Hermann, Paris, 1991 e 1994, ed. revista) e On Depiction (Bellew Publ., Londres, 1995).
Nascido em 1929 na Bucovina, província do Império Austro-Húngaro várias vezes partilhada entre a Roménia e a Ucrânia, Arikha é de nacionalidade israelita e instalou-se em Paris em 1954, embora também mantenha actualmente uma residência em Israel.
Ele próprio defende que as biografias dos artistas são supérfluas para a percepção das suas obras, mas, na realidade, poucas vidas foram tão marcadas pela História e também pela sorte. Deportado aos 12 anos, foi, em 1944, uma das primeiras crianças salvas dos campos de concentração pela Cruz Vermelha (os desenhos então realizados são um dos poucos testemunhos directos dos campos e estiveram, quase por milagre, na origem da sua libertação) e viveu a partir dos 15 anos num «kibbutz» próximo de Jerusalém. Participou depois na guerra de independência e foi gravemente ferido, sendo salvo quando se encontrava já num depósito mortuário, passando oito dias em coma. Mais tarde, depois dos primeiros estudos de arte em Israel, transferiu-se para Paris, onde também estudou filosofia e viria a ser acolhido nos círculos judaicos protegidos pelos barões de Rothschild.
Arikha pratica hoje uma muito rara «painting from life 'alla prima'», pintura de observação executada directamente sobre a tela sem recurso ao estudo prévio ou ao esboço preliminar, para a qual se proíbe o apoio na fotografia bem como o uso da imaginação e da memória. Pinta numa única sessão diante do real, num estado de urgência que é dinamizado pela velocidade e pela dificuldade, impondo-se a restituição da aparência de um modelo, sem se considerar um pintor figurativo. A sua atitude não é um revivalismo inspirado na prática dos mestres do passado, mas uma das mais pessoais tentativas de continuar a pintura depois dos reducionismos e dos impasses vanguardistas.
Hoje, Arikha é um artista aparentemente solitário, como o foram Giacometti e Morandi, mas a influência da sua obra tem sido crescentemente reconhecida, ao mesmo tempo que as suas reflexões teóricas se encontram com a actual renovação do interesse pela estética.
Em Lisboa, disse-nos coisas simples que têm hoje a intensidade do escândalo: «Demorou milénios até nos libertarmos de critérios de qualidade impostos e a chegarmos a admitir o sentir pessoal, em que reside a possibilidade do juízo estético. Mas o ver ('voir juste') é hoje perturbado pelo excesso de noções críticas que intervêm entre o indivíduo que vê e a obra de arte. Hoje, quase ninguém é capaz de ver uma obra directamente, sem a interposição de um pensamento crítico cada vez mais desligado da prática e dominado pelo peso das ideologias. Esqueceu-se que a pintura não pode ser o suporte de políticas da cultura de massas, e, aliás, a massa não existe. Só há indivíduos, cada um com as suas alegrias e penas. O artista dirige-se ao indivíduo, e a pintura, como a música e poesia, 'fala' no singular.»
(Foto: Avigdor Arikha durante a conferência na Fundação Gulbenkian sobre «A perda do critério da qualidade em pintura»)
Obituary : Guardian
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