Em aproximação a Columbano
EXPRESSO/Cartaz de 9/3/2002 (Capa: «Retratos com vida»)
Museu do Chiado. 28 de Fevereiro até 26 de Maio, 2002
"Verdade e convenção"
Retrospectiva de um académico do século XIX, entre o intimismo do retrato e a pintura de SalãoGraças a uma fortuita coincidência de programações, expõem-se em Lisboa as retrospectivas dos dois pintores que o catálogo do Museu do Chiado, de 1994, agrupou sob a designação de pré-naturalistas: Miguel Ângelo Lupi (1826-1883) e Alfredo Keil (1850-1907). Ambos foram figuras singulares no seu tempo respectivo, arredadas de intervenções programáticas e de grupo, e às suas obras se atribuíram lugares individualistas e de transição entre as caracterizações dominantes da segunda metade do século XIX, romantismo e naturalismo. Keil era, em grande medida, um desconhecido e a mostra do Palácio da Ajuda projecta numa nova dimensão o seu paisagismo topográfico e sensível que concorreu até final do século com a academização folclorizante dos naturalistas de escola.
Lupi, depois de ter sido hostilizado pela crítica naturalista (Ramalho Ortigão), foi consagrado ao longo da primeira metade do século XX como o melhor mestre académico de Oitocentos, em especial graças à admiração que lhe votava Columbano, seu discípulo e director do antigo Museu de Arte Contemporânea, onde ficou reunido o essencial da sua obra. A actual revisão vem confirmar a qualidade da sua produção como retratista e também a incerteza das tentativas que fez noutras direcções, no quadro de uma prática de pintor desinteressado de outros programas estéticos que não fossem os da disciplina académica, histórica e intemporal.
Contemporâneo da geração romântica de Tomás de Anunciação (1818-79) e Cristino da Silva (1829-77), de quem foi colega como professor, Miguel Lupi teve um percurso mais tardio, que desde logo o distanciou das circunstâncias já retardadas da afirmação do romantismo. Se aqueles tiveram formação apenas nacional, dois outros românticos, Luís de Meneses (1817-78) e Metrass (1825-61), trabalharam em Roma e visitaram Paris, entre 1844-47, cerca de vinte anos antes de idêntico itinerário de Lupi, em 1860-64, o que não podia deixar de ter consequências.
Nada se sabe sobre as informações que pôde colher em Paris, mas as biografias valorizam a visita que fez em 63, «onde contacta com o realismo como corrente estética» (catálogo). Ignora-se se então visitou o Salão dos Recusados, bem como se, de regresso em 1867, por ocasião da Exposição Universal, se interessou pelas retrospectivas pessoais de Courbet e Manet. De qualquer modo, não foi a procura da inovação que moveu a sua pintura; o seu academismo, que defendeu em oposição à pintura de ar livre romântica e depois naturalista, associa-se à tradição da pintura dos salões oitocentistas, mas sem os excessos do sentimentalismo e do «kitsch» cenográfico da sua segunda geração francesa.
A formação adquirida sobre a cópia de mestres italianos e a sobriedade intimista que atravessa os seus retratos e alguns interiores, bem como a estreiteza comedida do meio nacional, situam-no numa direcção de equilíbrios austeros, numa procura serena, e rígida, da justa medida entre as realidades e ambições contraditórias do seu tempo. Foi o retrato que lhe ditou o destino e justifica a memória. Apesar de fazer estudos brilhantes na Academia de Belas Artes de Lisboa, Lupi deixa-a aos 20 anos, decerto por temer as dificuldades da vida de artista, e inicia uma modesta carreira de funcionário. Aos 33 anos, era amanuense do Tribunal de Contas (e pintor amador) quando se oferece para executar o retrato de D. Pedro V que aí era necessário.
O êxito desse quadro (o primeiro da exposição) assegurou-lhe uma pensão do Estado para estudar em Roma; no regresso, em 64, é nomeado professor da Academia e quatro anos depois é provido no cargo de professor de Pintura de História, que mantém até à morte prematura por doença. Outros retratos posteriores, de aparato e de amigos ou próximos, garantiram a notoriedade póstuma, chegando-se a inclui-lo numa genealogia nacional vinda de Nuno Gonçalves até Domingos Sequeira, que passaria depois a Columbano. Duas figuras femininas ocupam lugar destacado nessa galeria, a marquesa de Belas e a mãe do dr. Sousa Martins.
No primeiro, tem sido valorizada justamente «uma grande simplicidade aristocrática tingida de melancolia» (J.-A. França) ou a melancolia romântica presente na naturalidade da pose, em «aproximação a uma atitude realista» (Pedro Lapa), apontando-se o acordo sensível do colorido do vestido e do fundo, a concentração da atenção sobre o rosto pela ocultação das mãos, a metafórica presença da rosa solitária; tudo converge numa afirmação de intensa interioridade e suspensa intimidade, oferecida e inacessível, para além da suposta semelhança necessária. No segundo, as marcas da idade do modelo conjugam a austeridade verista com a densidade psicológica, destacando-se o rosto e as mãos de uma luminosa harmonia de negros do vestido e do sofá. Também notável é a Baronesa de Folgosa, retratada realisticamente à luz de mais distantes critérios de elegância mundana, enquanto o Duque de Ávila e Bolama, odiada figura cimeira do carreirismo político do tempo (a quem coube proibir as Conferências do Casino), com o seu rosto fechado e o peito medalhado, sustenta, por honestidade da observação, a projecção de diferentes olhares críticos.
A galeria prossegue com sólidas figuras da burguesia do tempo, a sobriedade elevada do cego Castilho e, ainda, noutra direcção de gosto, muito menos formal e de maior cumplicidade, o amigo Bulhão Pato e a mulher do sobrinho deste. Todas as outras direcções da prática do pintor são apenas esboçadas, por vezes com dificuldade, no caso da Paisagem e da História - faltando à mostra duas obras que lhe deram notoriedade inicial: Melancolia e o imenso Tintoreto Retratando a Filha Morta, onde se juntam a evidência da antiga lição italiana e o gosto salonista.
O mesmo compromisso com a pintura de Salão e as suas convenções, presente em A Sesta e A Família e nos retratos de género da Aguadeira de Coimbra e Os Pretos de Serpa Pinto, dispersos por diferentes núcleos, contrastaria melhor, noutro alinhamento, com as propostas de observação intimista de algumas cenas de interior e do Contra-luz, bem como com a surpresa do inexplicado e tardio Pedreiros e Serventes. Entretanto, a reposição da colecção oitocentista do Museu constitui uma feliz contextualização da retrospectiva de Lupi comissariada por Maria de Aires Silveira e Cristina Azevedo Tavares, e é mais um alerta sobre a necessidade de se ampliarem as respectivas instalações.
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