EXPRESSO/Actual de 13/7/2002
"O lugar da pintura"
Pinturas e desenhos recentes de José Loureiro em Serralves
Numa entrevista recente, Luc Tuymans, um pintor «terminal» que Serralves já expôs, cita uma «boutade» de Catherine David, comissária da Documenta de 97, segundo a qual a pintura é académica quando é boa e reaccionária quando é má. E acrescenta: «Tudo isto é extremamente simplista, como a maior parte dos discursos actuais sobre o carácter obsoleto da pintura, discursos vazios de sentido, porque a pintura é muito mais do que um médium» («Artpress», Paris, Julho-Agosto). Para o discurso institucional, a pintura é, quando muito, um «meio expressivo» entre outros meios de comunicação, ou de produção de imagens, no seio da abstracção «Arte em geral» onde se dissolvem as práticas artísticas concretas. De vez em quando, já duas vezes este ano, as instituições francesas redescobrem a vitalidade da pintura em mostras compungidas a que chamam «Urgent Painting» (Museu de Arte Moderna de Paris) ou «Cher Peintre» (agora no Centro Pompidou).
A apresentação em Serralves de José Loureiro, «um dos pintores
portugueses cuja obra mais se tem vindo a afirmar desde finais da
década de 80», como informa o museu, começa por levantar problemas de
programação e enfrenta esse condicionamento discursivo sobre o carácter
obsoleto da pintura.
O espaço que lhe foi atribuído, habitualmente ocupado por instalações e
vídeos, não é apropriado a uma obra onde é precisamente substancial a
distância entre pintura e imagem, que não pode confundir-se com a
eventual diferença abstracção-figuração. A deficiente iluminação
(talvez já em parte corrigida com a abertura de uma janela) dificulta
uma contemplação que actue sobre a superfície do quadro para percorrer
(decifrar?) tudo o que nela se expõe e oculta, a flutuação do seu
espaço virtual, o tempo inscrito nos materiais, a opacidade ou vibração
da cor, etc. Também seria possível questionar o desequilíbrio da
programação entre maiores e menores representações, mesmo antes de
chegar o mega-evento de Verão e de bilheteira que serão as intimidades
de Nan Goldin, mas importa mais reflectir sobre o uso de um jargão
«especializado», simplista e obscuro, que esconde os objectos em vez de
os iluminar. «A obra de José Loureiro confronta o tempo de quem declara
a pintura como um género extinto nas suas possibilidades», afirma João
Fernandes, director-adjunto e comissário, logo no começo do seu
prefácio. Não é claro se ele próprio declara o «género extinto», mas
ainda mais obscura é a adaptação do seu texto que abre a «folha de
exposição»: «Os quadros de J.L. revelam uma singularidade que se torna
visível no confronto com os saberes e práticas que testaram os limites
formais e conceptuais da pintura enquanto género.» A sua singularidade
não é a de um exercício dentro de limites da pintura anteriormente
«testados», mas a invenção de um campo infindável de possibilidades,
inéditas mesmo se dialogam com as invenções de outros artistas (outro
prefácio, de Filomena Molder, interessa-se precisamente por essa
continuidade de experiências e significados). Na sequência de uma série
mostrada na Galeria Cristina Guerra, os novos quadros colocam à prova e
alargam as direcções que partem de uma provisória regra construtiva,
onde uma estrutura rígida de linhas paralelas horizontais é
aleatoriamente interrompida pela animação dos fundos de cor e por
traços verticais irregulares. É com elementos mínimos, que não são um
mero jogo formal, que a pintura acontece ao fazer-se, ultrapassando os
sistemas e limites de que parte para absorver o olhar e pôr em cena e
em questão as virtualidades de uma prática chamada pintura.
Numa segunda sala, uma nova série de desenhos dá a conhecer uma
produção paralela à pintura, como um campo experimental onde se ensaiam
ideias de pintura, sem que esta nunca seja a aplicação de um projecto
prévio. Esses desenhos reabrem um diálogo entre figuração e abstracção
que tem estado sempre presente no trabalho do pintor: sobre as linhas
horizontais de uma mesma pauta regular surgem silhuetas de corpos
humanos, sobrepostas e variavelmente descentradas ou flutuantes na
página branca. As linhas de contorno repetidas identificam o uso de
moldes recortados a partir de fotografias, contornados com a
irregularidade da mão (de novo a regra e o acidente). São mostrados sem
título, mas em alguns desses desenhos, identificados pelo artista,
estão, por exemplo, Mark Rothko e Merce Cunningham. É imprevisível,
também para o próprio artista, o que poderá, ou não, decorrer desta
«experiência», num trabalho que sempre se reinventa sobre os
provisórios limites de uma prática viva.
(Museu de Serralves. Até 6 Out.)
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