"Viagens artísticas"
in EXPRESSO/Cartaz de 2/3/2002
Galeria de Pintura do Rei D. Luís, até 17 de Abril
Uma grande retrospectiva que propõe um olhar renovado sobre um pintor sempre mal conhecido
Aos 15 anos, Alfredo Keil iniciou um livro de «Viagens Artísticas» onde se propunha reunir desenhos e comentários sobre seis itinerários que o levariam de Lisboa ao cabo Espichel, à Ericeira, a Colares, a Leiria, a Sintra e ao Zêzere. O plano ficou logo interrompido, mas serviu de guia a António Rodrigues para a excelente montagem da retrospectiva da sua pintura. A precocidade não é surpreendente, tratando-se de um jovem nascido em 1850, numa família abastada e ilustrada de origem alemã; a primeira peça para piano escrevera-a aos 12 anos, aos 13 começou lições de desenho.
Os primeiros naturalistas franceses eram muito novos, quando, 30 anos antes, irromperam na cena artística francesa à margem das correntes académicas, e Théodore Rousseau também pintou as primeiras paisagens com 14 anos. O que é notável é a justeza da opção do comissário, que, de viagem em viagem, propõe um olhar inteiramente renovado sobre a obra de um pintor (e compositor e coleccionador-museólogo) que a história da arte sempre maltratou.
A primeira destas «Viagens Artísticas» leva Keil «De Lisboa a Nuremberga» e corresponde aos anos iniciais da formação, de um Fim de Tarde com Carvalhos (1864) de evidente inspiração romântica, quando Tomás de Anunciação era visita da casa e Cristino da Silva uma referência nacional, até às paisagens ora melancólicas ora cenográficas dos lagos da Baviera e da Suíça, em que transparecem aprendizagens germânicas. Sem cumprir a formação escolar canónica, mas já depois de uma participação elogiada no Salão da Sociedade Promotora das Belas-Artes, saíra em 1869 de Lisboa, com o pai, numa demorada viagem de estudo e visitas à família.
Durante cerca de um ano estudou na Academia Real de Nuremberga, sob a direcção do neo-romântico August von Kreling, mas num tempo em que a idealização alemã da paisagem também já dera lugar à observação realista, fiel e minuciosa, da natureza e das suas constantes variações de luz e clima. A segunda «viagem» tem Barbizon por destino e data de Junho-Julho de 1877, já alguns anos depois do prolongamento, irregular e pouco interessado, dos estudos na Academia Real de Lisboa, onde foi colega de Rafael Bordalo Pinheiro e Malhoa.
Essa estada em Barbizon, mostrada em sete pequenas telas daí trazidas e num auto-retrato pintando na floresta, já do ano seguinte, em Lisboa, de mais imponente formato, é uma das grandes surpresas oferecidas pela exposição. O facto de ser ignorada pelos que escreveram sobre Keil é tão mais surpreendente quanto a história nacional atribui oficialmente o início da nossa pintura moderna, dita naturalista, à aprendizagem de Silva Porto e Marques de Oliveira nos arredores de Paris, mesmo se a «Escola» que informalmente aí nascera, já banalizada pela concentração de pintores e consagrada nos salões, se pudesse entender, na década de 70, como a despedida da última geração romântica.
Keil foi sendo sempre designado como neo-romântico, tardo-romântico ou pré-naturalista, segundo um modelo historiográfico (Reynaldo dos Santos e José-Augusto França) que prezou demasiado as fórmulas classificativas e de grupo, consideradas como obrigatórias etapas de passagem num único itinerário progressivo. Com escassa observação das obras e errada informação documental, as etiquetas davam-no como um «pintor de transição» e «isolado» face aos membros do Grupo do Leão, «preso a um espírito neo-romântico», que continuou, no entanto, a gozar dos «favores de uma clientela mundana». Esse desentendimento, prolongado na ideia de um diletante e amador (de facto, não cumpriu formação académica e dividiu-se por múltiplas actividades, mas com reconhecida competência e deixando uma vastíssima obra de pintor), parece prolongar susceptibilidades do tempo que só uma análise mais fina da vida cultural de Lisboa esclarecerá.
Até 1880, Keil é muito elogiado e premiado. Nesse ano participa pela última vez na exposição da Promotora, a 12ª, onde se revela o grupo dos naturalistas. Ausente das Exposições de Quadros Modernos (depois de Arte Moderna, 1881-88) promovidas por estes, praticamente só voltaria a expor na mostra de «Estudos de Paisagens e Marinhas», com 258 pinturas, que organizou em 1890 no seu atelier, pouco depois dos êxitos da ópera Dona Branca e da marcha patriótica A Portuguesa. Apesar de ter sido talvez a exposição de pintura mais visitada do século XIX, e quase toda vendida, foi praticamente ignorada pela «crítica naturalista».
São as seguintes «viagens» que podem esclarecer esse silêncio, avaliando a diferença de qualidade e gosto entre a pintura «culta, inteligente e intencionalmente documental» de um Keil «independente», dizia Diogo de Macedo em 1942, e o crescente folclorismo estereotipado dos outros, a «queda na pintura de costumes regionais, em que se refugiaram os pintores da época», segundo Manuel Mendes (1950). «Lisboa e a Outra Banda», até à baía de Setúbal, já não segue um critério cronológico mas sim topográfico, conforme com as indicações precisas dos títulos de Keil.
Confirma-se aqui, em numerosos pequeníssimos formatos ao mesmo tempo sensíveis e descritivos, a vertente documental perseguida pelo pintor na observação do cais da Ribeira, o Aterro, Ginjal e Barra, com a sua azáfama de varinas, barcos de pesca e vapores e chaminés fabris entre efeitos de nuvens ao entardecer. Noutras telas, das quintas de Xabregas e Lumiar, como sucede nas «viagens» seguintes, a notação rápida da paisagem acompanha-se com a presença de figuras de familiares, com uma carga de intimismo que é também uma aproximação a aspectos da vida moderna, evitando sempre o gosto casticista dos tipos e costumes populares.
É escassa a representação do espaço urbano (os Restauradores, o Castelo), mas o gosto pelo inventário documental prolonga-se em apontamentos monumentais de Caxias e Queluz. «Viagens a Colares» é uma digressão muito vasta por Sintra, a Várzea, Banzão e a costa atlântica, praia a praia até à Ericeira em outras admiráveis marinhas. A que se seguem as demoradas «Viagens ao Zêzere» e alguns itinerários pela «Galiza, Normandia e Itália». Sempre de pequeno ou muito pequeno formato (com excepção de poucas pinturas de ambição salonista, de algum cunho alegórico e acabamento mais convencional), as obras não se distanciam dos seus temas precisos, definidos com exactidão e rapidez, para se pretenderem expressão «abstracta» do culto da Natureza ou exercício de pintura «pura» em cambiantes lumínicos ou impressões cromáticas.
Essa atenção constante ao real, menos romantizada ou idealizada do que em outros cultores da paisagem, terá contribuído para uma menor valorização por parte de abordagens formalistas posteriores, mas é ela que sustenta a diferença vivida da pintura de Keil e sua contínua frescura face ao predomínio dos estereótipos naturalistas. Numa parede final concentram-se 18 excelentes «Efeitos de Nuvens» de diferentes tempos, 1869 -97, mostrando na diversidade dos seus céus crepusculares (a realidade ainda, emocionadamente vista) como se sustentou duradouramente, nas suas qualidades e limites, a obra contemplativa e fecunda de Keil.
É já à margem, de passagem para núcleos dedicados ao desenho e à fotografia (praticada como documentação para pinturas e não só), que se expõem ainda algumas «Figuras de Interior», pinturas de género e retratos históricos que têm escassa importância no total da obra, ao contrário de valorizações herdadas que respeitavam hierarquias académicas. Diogo de Macedo designou-o como um «petit-maître», o que é valorização sem dúvida positiva: é uma longa pequena obra que explorou o país e a pintura e que ainda nos ensina a ver e a sentir o que vemos. Como se constata à saída, olhando o rio desde o alto da Ajuda e atravessando Monsanto.
Levada a cabo pela equipa da galeria do IPPAR, ao cabo de anos de expectativa e preparação (mas só concretizada por apoios comunitários e mecenáticos), a retrospectiva prolonga-se pela evocação da obra do músico e da vida do cidadão e coleccionador, restituindo toda a originalidade de um personagem singular e fascinante. Acompanha-a a edição de dois volumes demasiado volumosos, com vasta colaboração, de que se destacam os estudo de A. Rodrigues e Rui Ramos, este sobre a «cultura do patriotismo cívico» e a sua época, havendo a lamentar, porém, o desacerto das escalas das reproduções.
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