"O quadro negro"
EXPRESSO/Actual de 20 08 2005
Pintar, entre programar e acontecer
Foto: Sem título, 2005, guache sobre papel
Entra-se na Capela da Misericórdia pela porta lateral que dá para o largo da Matriz, para o mar e a casa branca e azul do Centro Cultural. A pequena porta recorta a pintura em frente, que ao entrarmos se amplia até aos seus imensos 3,70 x 2,96 metros, de um negro brilhante, aparentemente liso e uniforme, estriado por linhas brancas e cinzentas que a percorrem horizontalmente de bordo a bordo. Vendo melhor, a horizontalidade é apenas aparente; as linhas paralelas começam, à esquerda, no sentido da leitura, por um breve movimento ascendente e quebram-se logo a seguir para iniciarem a travessia da tela, não exactamente na horizontal mas sim levemente oblíquas, descendo tão lentamente que o olhar não o distingue de imediato.
O traço é regular, visivelmente apoiado numa régua mas não mecânico, e
cintila sobre o fundo negro com espessuras alternadas e intensidades
regularmente variáveis de branco e cinzento - não é como um padrão ou
um sistema padronizado que essa regularidade se vê, mas como um
acontecer imponderável, regrado mas ao mesmo tempo imprevisto. Esse
negro brilhante do óleo também não é uma superfície invariável ou
uniforme. Para além dos acidentes introduzidos pelos reflexos da luz
projectada (apetece voltar com diferentes ambientes luminosos, de dia
com luz zenital difusa e ao poente que entrará pela porta em frente),
há vestígios e relevos que ficaram de estados anteriores da pintura e
pequenas manchas esbranquiçadas e irregulares que acontecem por
acidente ou voluntária vontade de imperfeição.
Poderia ser um céu nocturno e o movimento das estrelas quando uma
fotografia as regista numa longa exposição, mas o negro e as linhas
claras são aqui poderosamente materiais, e diante do quadro (completo
em si mesmo, não um fragmento de algo que os bordos recortem)
suspendem-se as tentativas de encontrar uma referência conhecida que o
explique. Ele basta-se a si mesmo, com a sua imensa superfície vertical
e as estrias quase horizontais que a atravessam, entre a regularidade
exacta e ao mesmo tempo vibrátil da sua estrutura equilibrada e a
fractura subtil das duas oblíquas desiguais. Visto no espaço da capela,
ao lado do púlpito elevado e lateral ao grande altar de talha dourada,
poder-se-ia procurar um propósito de diálogo com o sagrado, ou com a
razão humana do sublime, mas a realidade é que essa é apenas uma
temporária condição de exposição, antes de outros destinos e outras
leituras. Mais do que esse momentâneo local e as sugestões
iconográficas que ele pode motivar, importará o lugar desta pintura na
sequência do trabalho do pintor, lembrando outras barras, bandas,
riscas, grelhas, que atravessam as telas. Ou podem vir à memória as
pinturas negras de Frank Stella, com as suas bandas estáticas sobre o
fundo plano e impessoal do esmalte, simétricas e voluntariamente pobres
no seu rígido programa formal. Mas essa aparente semelhança muda-se
logo num feixe de diferenças, como se a mesma aparente redução inicial
dos meios fosse, afinal, um ponto de partida para outros destinos e
olhares em aberto.
No catálogo, um texto de João Miguel Fernandes Jorge refere esta mesma
tela mas com diferentes configurações (a segunda vez já num Post
Scriptum que revê a observação inicial). É uma outra pista sobre o
trabalho do pintor, que insatisfeito com o seu quadro o refaz e depois
o recomeça, já inteiramente diferente. Nesse passo de avaliação crítica
do seu quadro, no próprio processo de o fazer, está inscrita a questão
decisiva dos critérios que distinguem a qualidade intrínseca de um obra
(quando a ausência ou indiferença dos critérios de qualidade se tornou
para muitos uma regra). O que teria falhado nessa obra que passava à
pintura sobre tela e ao muito grande formato a linha de trabalho gerada
pelas grelhas de rectângulos que vemos na série paralela de pinturas
sobre papel, na variabilidade aleatoriamente experimentada da sua
estrutura pré-definida, igualmente expostas e excelentes em si mesmas?
O que é, como dizer, a excelência de uma pintura?
José Loureiro
Centro Cultural Emmerico Nunes, Sines, até 4 de Setembro
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