Em arquivo, outra passagem anterior do escultor Jorge Dias, de Maputo, entre a Arte Lisboa de 2004 (Galeria Muvart) e a Cordoaria em 2007
in Expresso/Actual de 12 Nov. 2005, pp 56-57
"Descobrimentos"
Dois artistas, do Brasil e de Moçambique, em Lagos
Se fosse necessário um argumento para reunir no Centro Cultural de Lagos as mostras individuais do brasileiro Nelson Leirner e do moçambicano Jorge Dias, o Festival dos Descobrimentos com que a cidade anualmente se recorda como lugar de partida de caravelas é mais uma oportunidade estratégica do que um pretexto comemorativo. Trata-se, de novo, de conhecer o que acontece do outro lado do mar, de percorrer um mundo feito de diferenças e de cumplicidades, agora através da «Zoologia dos Trópicos» que António Pinto Ribeiro apresenta com uma importante escala de produção tornada possível pelo programa de Faro Capital Nacional da Cultura.
Existem pontos de contacto entre as duas obras, na marcação de especificidades culturais exteriores ao Primeiro Mundo, na afirmação de atitudes críticas e na apropriação de objectos de consumo popular ou de artesanato, com larga presença de bicharada tropical: as máscaras de macaco de Leirner, que são adereços para um jogo de espelhos e identidades, e os insectos e répteis de Dias, onde a mensagem política é só uma das leituras possíveis. Mas as duas exposições também traduzem contextos e motivações diferenciadas: o comentário irónico que manipula e recicla imagens já mediatizadas, dirigido ao meio da arte, em caricaturas de tradição dadaísta, no brasileiro; a procura de formas de envolvimento de proximidade com o contexto social e a troca das estratégias da representação pela comunicabilidade sensorial dos objectos, onde o convite à acção e a incerteza do significado dos objectos é ainda uma possibilidade de interrogar e de ampliar o espaço da arte, no artista de Moçambique.
Recusando quer o primitivismo mais ou menos tradicional ou inventado de muita arte africana de exportação, quer a importação de modelos fixos da modernidade ocidental, a invenção de caminhos está do lado do africano.
Nelson Leirner (São Paulo, 1932), já apresentado na Culturgest do Porto em 2003 e antes em mostras colectivas, é um histórico da arte brasileira, conhecido desde os anos 60 por gestos de crítica das instituições artísticas e atitudes de oposição política. Desde o Altar de Roberto Carlos, de 1967, a apropriação de ícones da cultura popular e da sua reprodução industrializada constrói uma versão tropicalista da pop, de sentido lúdico e iconoclasta. Aqui, séries de imagens de santos surgem refeitas com colagens de Barbies e Mickeys, enquanto as montagens de objectos reciclam os mais habituais estereótipos, macacos e bananas.
Em Grande Prémio de Lagos, uma pista de corridas de automóveis sobrevoada por helicópteros, são os pequenos brinquedos de lata que surpreendem.
Neo Casulo, tecido, linha e insecto de arame, 2005
Jorge Dias já teve uma presença notada na feira Arte Lisboa de 2004, integrado na representação do Muvart, Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique (http://muvart.tvcabo.co.mz), e comparece em Lagos com uma mostra alargada de obras recentes, em diferentes direcções de trabalho de uma original coerência formal, material e conceptual.
Com formação média em cerâmica, o artista cursou escultura no Rio de Janeiro entre 1997 e 2002 e é um dos animadores da vida artística de Maputo (onde nasceu em 1972), actuando também como professor e autor de ensaios teóricos.
Os «Casulos», que tem instalado em diferentes contextos (a rua, o jardim), são estranhos objectos suspensos feitos de jornal, capim e objectos, atados por cordas de sisal, que lembram restos deixados por enxurradas ou raízes desenterradas - vem à memória o grande escultor polaco-brasileiro Franz Krajberg, mas a referência explícita deste à natureza é agora lixo urbano.
O mesmo princípio evolui para um Neo Casulo feito de «tee-shirts» de propaganda partidária, com pequenos répteis de arame de produção artesanal, e o uso de tecidos coloridos, com objectos e animais, continua numa Linha Contínua, serpenteando sobre a parede. Caixas é uma acumulação aleatória de cubos ou paralelepípedos de cartão revestidos de grãos de cerâmica, tecido ou jornal, com objectos desconhecidos no interior, que podem ser reagrupados em diferentes configurações. A dimensão polissémica dos objectos continua em Coisa Suspensa, uma bola de cerâmica, e Três Bolas, revestidas de fragmentos de azulejo branco e suspensas numa rede de pesca.Outra peça maior é a instalação sem título, de parede e de chão, com um tapete e bolas de peças de cerâmica e peneiras recobertas de bonecos de madeira e animais de arame, objectos de produção artesanal vendidos aos turistas, com as suas implícitas referências à pobreza e o cruzamento de diferentes formas de criatividade, rural, urbana e erudita. Importa, no final, sublinhar a originalidade da programação do Centro de Lagos, dirigida por Alexandre Barata (Xana), onde as exposições não se limitam a prolongar os circuitos da capital, e a implantação no lugar assegura uma continuidade de acção independente (da falta) de apoios do poder central.
Por outro lado, mas os factos relacionam-se, lembre-se que o mesmo sentido estratégico do relacionamento com África e Brasil aqui explorado tinha sido adoptado na programação da Culturgest e da colecção da CGD e depois na Arte Lisboa. A sua interrupção à nascença mostra como a falta de continuidade das opções de fundo marca a inconsistência dos decisores e um gosto muito nacional pelo desperdício.«Zoologia dos Trópicos»
Nelson Leirner e Jorge Dias
Centro Cultural de Lagos, até 31 de Dezembro
Fotos: Nelson Leirner, «Grande Prémio de Lagos», e, ao fundo, «Yes Nós Temos Bananas» / Jorge Dias, instalação sem título / Sala dos «Casulos» / Esculturas da parede (peneiras, animais de arame, sinais de trânsito)
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