“Sem palavras»
EXPRESSO/Cartaz de 29-04.95
Gal. Alda Cortez
As três grandes telas quadradas — de dois por dois metros! — dão a ver de imediato a grelha impressa de um jogo de palavras cruzadas, delimitando e fragmentando a negro, em primeiro plano, um espaço posterior de cores diversas, profundas e flutuantes. A quadrícula ocupa toda a superfície, com os seus traços entrecruzados e os quadrados negros da praxe, recortada de um jornal antes que as palavras se comecem a inscrever. Com um olhar mais atento, ver-se-á que o rigor da grelha não é exactamente uniforme: por vezes, a consistência dos bordos desvanece-se; aqui, um gesto não se limita sob a grade e trespassa a barreira geométrica, ali, a mancha ou atmosfera de cor devora o limite que a contém.
E afinal, vendo bem, o preto não está bem impresso a preto, é irregularmente traçado, entre o cinzento e preto, com marcas da mão onde se quereria admitir a presença uniforme da máquina. A grade negra é também exercício de pintura. Os títulos são uma muleta acessória, neste caso: os quadros chamam-se Palavras Cruzadas, seguidos dos seus números de série, e a exposição tem o nome «I. Preto esbranquiçado», obviamente referido à referida grelha. Seguir-se-ão, num segundo andamento, a partir de 6 de Maio, por razões de dimensão da galeria e de intensidade irradiante da pintura, mais três telas homónimas sob a designação «II. Cinzento baço», de uma série que chegou às oito versões de igual formato, mas todas muito diferentes nos valores cromáticos dominantes e também no modo de «preenchimento» da quadrícula. Talvez não se encontrasse uma mais divertida mão estendida àqueles que treslêem a velha fórmula de que a pintura é coisa mental ou que cultivam outros idênticos interditos... E também poucas vezes a presença da pintura foi tão afirmativa e livre na sua desrazão. Com a sua grelha, José Loureiro estabelece a exacta coincidência da superfície do quadro com o espaço da pintura, como auto-afirmação da materialidade do suporte bidimensional, referência ao fechamento da janela ilusionista e ocupação «all-over» do campo da tela. É uma via de abordagem formalista que se sugere e, na evidência do seu humor, assim se nega como solução. Por outro lado, ao convocar o jogo intelectualmente gratuito das palavras cruzadas, para o qual cada um dos intérpretes pode ensair a inútil lista de sinónimos, é também a questão por resolver do sentido da pintura que se oferece e se contraria: as palavras estão a mais, na situação do inicial corpo-a-corpo perceptivo, quando o desafio, como aqui, é por inteiro o jogo da pintura. A grelha é uma disciplina a transgredir, uma regra que o pintor subverte, transformando-a em liberdade acrescida — como poderiam ser a presença da figura, o assunto, a citação ou o género, outras regras passíveis de desvio. Na sua bidimensionalidade afirmada, ela acrescenta mais espaço ainda ao que é infindável espaço pictural, atrás e entre (e também sobre) a sua frágil malha geométrica: lugar da materialidade da pintura e espaço de todas as ilusões bem reais que a pintura tece. Em vez das palavras, existem as cores, sempre impuras, como irrupção da luz e das trevas e presença de uma matéria informe, organizada em manchas, campos, pinceladas, transparências e ocultações: um espaço de pintura que não precisa, no gozo da grade que não prende, de definir-se em significados. Neste demorado acontecer visível desta pintura está também, para quem segue o trabalho de J.L., a marca de um outro tempo ainda mais longo que é o da sequência das suas exposições, permitindo entender melhor, nesse ritmo das procuras sucessivas, a origem dos quadros actuais. Assim, como directa passagem, impõe-se imeditamente à memória, de entre um conjunto de telas mostradas na Madeira (na Porta 33), onde já se incluiam., aliás, as três primeiras versões das Palavras Cruzadas, um quadro de 1993 que era uma explícita visita a Mondrian através da sua transcrição materialista e vernácula por Lichtenstein: Não Objectivo I, a partir de R.L. Não se tratava então, apesar das aparências, de um exercício da citação, mas de um efectivo confronto com a possibilidade da pintura, reencontando a sua disciplina num duplo sentido necessário, de lição e domínio da facilidade. Mas a ponte mais exacta deve fazer-se entre esta e a primeira exposição de J.L., em 1988 na Ether («José se quiseres come as sardinhas todas»), em que surgira a público com a surpresa de uma pintura excepcionalmente desenvolta, que então convidava a referir Bonnard e Dacosta, no seu intenso prazer dos óleos em que se definia ou adivinhava a presença de objectos de interiores domésticos. Sucessivos exercícios de contenção, fragmentação e recuo provisório, permitiram agora renovar o acontecer inteiro da pintura.
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