Palavras ou objectos / ler ou ver
Os trabalhos de João Pedro Vale correm o risco (não exactamente eles, mas a relação do espectador com as obras) de serem ocultados sob as informações e explicações que a seu respeito se fornecem. Tudo é traduzido em sentidos prévios e exteriores (os símbolos da portugalidade), descrito nas suas referências a imagens ou objectos pré-existentes, "contextualizado", ou substituido pelo seu "contexto". A exposição é referida como "um discurso sobre discursos", como se não se tratasse de objectos construídos - não apenas ideias e palavras. Poderia talvez usar-se a respeito desta metamorfose de objectos em "sentidos" a palavra "explicadismo", que Pedro Portugal utiliza na sua última exposição.
Ora os trabalhos de JPV têm de existir com a sua objectualidade específica para serem eficazes, para serem visualmente e significativamente poderosos, e o seu poder real não se substitui pela respectiva descrição, ou "explicação". Não são ilustrações de um discurso e, por outro lado, não são as chaves explicativas que lhes conferem importância. Têm de ter uma execução laboriosa e perfeita (minuciosa, sustentada em sucessivas descobertas visuais ao passar-se da visão distanciada à observação próxima) para suscitarem uma admiração que é tanto maior quanto a utilização dos materiais escolhidos é por si mesma motivo de surpresa - o sal que reveste o torreão, as notas de 20 escudos que forram o avião, a plasticina usada nas réplicas das pinturas, o papel higiénico e guardanapos dos "quadros".
O press release fornecido pela galeria (é um ensaio assinado por Nuno Alexandre Ferreira) constitui um laborioso exercício de "explicação" do significado de cada peça e das referências que ela envolve, indicando as "fontes" utilizadas pelo artista, as "alusões" contidas ou incluídas nas obras, etc. De certo modo, parece tratar-se de situar todo o trabalho como uma prática da apropriação em sentido estrito, destituindo o artista de toda a capacidade de invenção ou "originalidade" (o tal mito modernista que incomoda a drª Krauss). Também todo o potencial de humor e todo o efeito de surpresa se dilui ao explicitar-se o que se afigura quase a receita para a fabricação dos objectos - se o encontro com os objectos não for prévio à leitura dos textos ou se os objectos não resistirem à informação que se lhes soma (e mesmo à informação fotográfica, note-se).
É óbvio que é o autor a tornar públicas as informações de que as suas obras se servem, mas nem sempre os artistas são os melhores defensores ou gestores do seu trabalho.
Existe desde o título "Nascido a 5 de Outubro" ao programa genérico que as obras explicitam (na sua diversidade objectual, deve observar-se) a construção de uma linha de sentidos que são muito bem articulados entre si : os símbolos da pátria, os seus feitos e mitos. Tratando-se de temas políticos, não é a racionalidade política que se emprega para os "desconstruir" (ou combater), mas o humor, o desvio paródico, a irrisão (passou a dizer-se derrisão!) exercida sobre o que são os tópicos grandiloquentes do nacionalismo.
Por exemplo, não bastaria fotografar o quadro da Paula Rego, reproduzi-lo de qualquer forma mecânica, mesmo imitá-lo de forma tosca, ou, por exemplo, substituí-lo pela sua tabela (à L. Weiner...). A obra de JPV só existe porque é paciente, meticulosa, virtuosísticamente executada - o absurdo da réplica, a surpresa face ao objecto são factores essenciais do humor e do sentido crítico que a fazem eficaz.
Tal como na exposição anterior com as peças de ourivesaria e cerâmica, são a extrema qualidade da execução e a invenção material dos objectos que sustentam a estratégia crítica dos objectos constuídos por JPV. Esta não existiria sem elas.
Entretanto, seria curioso reflectir sobre a proximidade que existe entre a apropriação e a admiração ou crítica dos símbolos nacionais (com a ambiguidade inerente a uma recupração irónica e distanciada), bem como sobre a extrema qualificação dos processos técnicos de criação dos objectos, nas obras do João Pedro Vale, Joana Vasconcelos e Pedro Valdez Cardoso - tendo todos eles as suas próprias marcas distintivas de trabalho.
Na Galeria Filomena Soares, Rua da Manutenção 80
até 15 de Junho
Galeria Filomena Soares
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