LisboaPhoto 2003 - II
"Retratos da América"
Dois fotógrafos dominam o programa do LisboaPhoto, o histórico Weegee e o contemporâneo Joel Sternfeld
in Expresso/Cartaz 07-06-2003
As paisagens americanas de Joel Sternfeld expunham-se em grandes provas de 40,7 por 50,8 centímetros e eram fascinantes no seu registo distanciado de infinitos pormenores, e na tranquila suavidade das cores em que se distinguiam as diferenças de luminosidade dos lugares e das estações. Agora surgem em enormes ampliações de 122 por 152,4 cm (em edições de dez exemplares) e ganharam ainda melhores condições de visibilidade no novo formato permitido pelas tecnologias digitais de impressão.
O olhar, e também o corpo, deambula por estas imagens de inexcedível clareza, percorrendo a paisagem, os seus objectos e habitantes, num lento exercício de descoberta onde o realismo mais banal se encontra com o humor e a estranheza. Não podia ser mais cruel o contraste com os quadros fotográficos da exposição no CCB, onde a grande dimensão (e a unicidade ou escassez das provas) é quase sempre e só uma imposição do mercado e uma cedência à cegueira dos espectadores e às convenções estéticas da pintura (académica).
Com a mostra de Sternfeld no espaço amplo da Cordoaria, desiquilibra-se a colectiva central da LisboaPhoto como uma monótona acumulação de retóricas estereotipadas ou vulgarmente pretenciosas. É ele quem leva mais longe a ambiguidade da fotografia como uma arte da percepção em que se conjugam e enfrentam o registo e a construção da imagem, o documento e a visão subjectiva, a informação e o indizível, explorando ao mesmo tempo o mundo real e as condições ou contradições da reflexão sobre a apreensão fotográfica. Os artistas reunidos no CCB, encenadores ou cultores do instantâneo em forma de quadro, parecem, nos melhores casos, executar exercícios escolares inspirados pela sua obra. É o que sucede com os episódios cinematográficos de Gregory Crewdson, cujo sentido se esgota na compreensão da estratégia de produção, ou os transeuntes fotografados por Philip-Lorca diCorcia, que nada acrescentam às suas séries anteriores. Com ressalva do trabalho de Frank Thiel sobre a renovação arquitectónica de Berlim, onde a interpretação documental e a construção plástica são também uma radical reflexão empírica sobre a monumentalidade objectual permitida pelos recentes meios técnicos da fotografia (a sua maior prova, de quase cinco metros de comprimento, não é uma proeza vã).
Joel Sternfeld é um artista contemporâneo e os 65 retratos da série
«Stranger Passing», de que se expõem 14 peças, foram pela primeira vez
reunidos em 2001 no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Realizados
ao longo dos últimos 15 anos, em grande parte muito recentes, respondem
a numerosas obras que desde os anos 70 pretenderam ilustrar a
desvalorização ou a impossibilidade do retrato realista através das
estatégias da encenação, da apropriação ou da hiper-objectividade de
rostos anonimamente vulgares, com que se justificaram projectos
neo-conceptuais, neo-picturialistas, simulacionistas, etc, que
abastecem o mercado institucional e ocupam a reflexão teórica académica
(o «adeus à fotografia» de Victor Burgin, «a batalha contra a
fotografia» de Jeff Wall, de que este se autocriticou depois de se
confessar derrotado).
São os retratos de Sternfeld que situam a mais extrema actualidade e
que estabelecem os padrões de avaliação crítica mais exigente da
produção fotográfica contemporânea, actualizando com personagens de
hoje e meios técnicos actuais uma tradição viva, que nunca se congelou
numa lógica modernista fechada à mudança. August Sander é uma
referência citada a propósito destes retratos integrados na paisagem
urbana ou rural, que de certo modo também se podem ver como um
inventário de tipos. No entanto, estes personagens desafiam, de facto,
a possibilidade da sua categorização como representantes de classes,
raças e profissões, mantendo sempre uma ambiguidade essencial àcerca da
sua identidade individual e da natureza da representação fotográfica.
Os ténis vermelhos do velho homeless negro de Nova Iorque, cujo olhar
nos interpela frontalmente, distinguem-no individualmente, tal como as
marcas de uma inacessível vida pessoal que esculpem a dureza do rosto
da mulher a vender os jornais de domingo numa estrada do Colorado. Uma
outra ambiguidade essencial reside nas expressões de surpresa ou súbita
rejeição face à câmara que são visíveis nos rostos do bancário que
almoça na esplanada ou do advogado surpreendido a comprar o jornal,
segurando a roupa para a lavandaria. Não se tratando de instantâneos
furtivos nem de actores encenados, e não existem informações sobre os
métodos de trabalho, têm de supor-se a disponibilidade do fotógrafo
para o acaso da fotografia de rua e excepcionais aptidões de empatia,
que se adivinha na frontalidade e reciprocidade dos olhares. Retratos
como os da mulher que brinca com a filha (Tres Orejas, Novo México) ou
o casal de finalistas vestidos para a festa no Hilton (San Antonio,
Texas) transbordam de uma energia exaltante, que se constitui como uma
visão do mundo, uma poética e uma crítica.
Sternfeld, nascido em 1944, fotógrafo «freelance» desde 1966, professor
desde 1971, reunira a série das suas paisagens em 1987, exercendo uma
grande influência no uso da cor documental por fotógrafos mais jovens.
Americans Prospects era o trabalho de nove anos de viagens de carro
através da América, com que retomava a ambição dos grandes itinerários
de Walker Evans e Robert Frank, renovando uma tradição que entretanto
se alargara com os fotógrafos da paisagem social (Diane Arbus, Bruce
Davidson, Lee Freedlader e Garry Wininogrand) e com a «New Color» de
Stephen Shore, Joel Meyrowitz e William Egglston. Tudo isso foi muito
pouco visto em Portugal.
Outro dos marcos da tradição documental é Weegee, de quem se apresenta
uma retrospectiva itinerante do International Center of Photography de
Nova Iorque. Usher Fellig, depois Arthur Fellig, nasceu em 1899 na
Áustria (hoje, Ucrânia), numa família judia, e chegou aos dez anos a
Nova Iorque; aos 14 arranjou o primeiro emprego na fotografia
comercial, tornando-se depois impressor e foto-repórter. A sua obra é
um dos exemplos de como a fotografia americana se construiu num diálogo
permanente entre o realismo vernacular e a intenção artística.
Entre 1935 e 1947, Weegee construiu como «freelance» um vasto panorama
da vida urbana e popular de Nova Iorque, especializando-se em imagens
de crimes violentos e desastres, da suas vítimas e espectadores,
notáveis pela expontaneidade e a crueza do seu voyeurismo. Trabalhando
quase sempre de noite, com a clássica Speed Graphic dotada de um
potente flash, tornou-se famoso também pela rapidez com que acorria aos
lugares dos acidentes e seguia com os seus «scoops» para as primeiras
edições dos jornais. Dormia ao lado de um rádio sintonizado na
frequência da polícia e circulava com outro no carro, levando no
porta-bagagens todo o equipamento de revelação e impressão, a máquina
de escrever e a caixa dos charutos.
Notável era igualmente o sentido de auto-promoção com que carimbava as
fotografias com o crédito «Weegee o Famoso». A partir de 1940 começou a
publicar foto-histórias no vespertino progressista «PM» e em 41 a Photo
League dedicou-lhe a exposição «Weegee: Murder is My Business», a que
se seguiu em 43 a compra de fotografias pelo MoMA (exposição «Action
Photography»). Depois do enorme êxito do livro Naked City, em 1945,
transferiu-se para Hollywood, onde trabalhou como actor e consultor de
filmes, fixando o estereótipo do fotógrafo-detective, mas decaiu como
autor. Usem-se com prudência os textos do catálogo, onde escasseiam as
informações e sobram especulações deste género: «Endereçar a democracia
da fotografia como um médium modernista é uma posição mais típica da
Europa que da América… »
Joel Sterfeld
O Mundo de Weegee
Cordoaria, até dia 29,
e Palácio da Ajuda, até 22 de Julho
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