"Visões da cidade"
Lisboa em três exposições e um pequeno salto a Paris (com Eli Lotar)
Expresso/Cartaz 14-06-2003
Um dos principais méritos da LisboaPhoto é a abertura da programação, onde a par da arte contemporânea que utiliza a fotografia e o vídeo, vulgarizando novas aquisições técnicas, se incluem práticas funcionais da fotografia como o fotojornalismo e a actividade documental e topográfica.
Com o museu e a galeria, em que se estabelece o reconhecimento histórico (Weegee e Eli Lotar) e se propõe o contemporâneo como género específico ou nova categorização essencialista, concorre o espaço incerto do arquivo, no qual se suspende a atribuição prévia de uma natureza artística dos objectos. Essa contiguidade é positiva para se entender a ambiguidade do medium fotográfico. Quando qualquer coisa pode ser arte, as distinções que importam dizem respeito à atenção que as imagens despertam e aos sentidos e prazeres que asseguram.
Aliás, o próprio projecto da bienal veio afirmar com nitidez a importância do arquivo – e concretamento, do Arquivo Fotográfico Municipal – como parceiro e instituição âncora do programa, potenciando uma das raras situações de continuidade de uma missão que tem sido sacrificada noutros casos.
Com o curto tempo de preparação que teve a LisboaPhoto, o Arquivo optou por apresentar trabalhos que tinha em curso sobre dois espólios entrados nos seus depósitos. Por sinal, o de Eduardo Portugal foi o primeiro que recebeu, em 1991, por ocasião da passagem para as instalações na Rua da Palma, inauguradas em 94, e o espólio de Ferreira da Cunha é o mais recente, doado em Junho de 2000 pela Sojornal, depois de ter sido adquirida pela empresa de «A Capital».
Fotógrafo do «Diario de Notícias» até à sua morte em 1970, depois de ter trabalhado desde meados dos anos 20 em «O Século» e outras publicações, Ferreira da Cunha foi também um coleccionador. O seu acervo de 2270 negativos em chapas de vidro de formato 9x12 cm (de que são expostas 84 provas muito bem impressas no AFM, havendo mais cem incluídas no catálogo e um total de 800 consultáveis na base de dados) é consagrado ao fotojornalismo da primeira metade do séc. XX, contando nomeadamente com trabalhos de Joshua Benoliel, para a «Ilustração Portuguesa» no período de 1906 a 1918. Neles se vinca o papel pioneiro da sua prática do instantâneo de rua e o interesse pela efervescência do quotidiano e os rostos anónimos, que influenciou os foto-repórteres seus contemporâneos e posteriores.
Da agitação dos anos da República à ordem pesada do Estado Novo, a mostra reúne uma importante galeria de retratos informais, de Afonso Costa a Carmona, e a Salazar – vejam-se o encontro de ambos em 1934, a sessão fotográfica de Carmona com Judha Benoliel e Leitão de Barros, e Salazar recebendo informações da revolta militar de 1931. A sequência é cronologicamente disposta com agilidade, em vários formatos, acompanhando as convulsões da política com os «fait-divers» da vida urbana e social, num panorama em que a memória histórica se preenche de acontecimentos e figuras humanas.
No renovado Convento das Bernardas, um lugar a descobrir, apresenta-se Eduardo Portugal, cujo nome se manteve quase ignorado apesar da vastíssima produção entre as décadas de 30 e 50. É um caso raro dum espólio integralmente conservado, oferecido pela família, com cerca de 30 mil negativos, contactos, provas ampliadas (também de outros autores), postais, 170 álbuns e registos pessoais, que se encontram ainda em grande parte por estudar.
Em vez de uma síntese apressada da respectiva carreira, optou-se por dedicar a exposição às fotografias em que documentou as transformações urbanísticas de Lisboa (entre 1928 e 1954), acompanhando em especial os anos decisivos de Duarte Pacheco (1932-43). Organizada, com as suas provas de contacto (9 x 15 cm), em três itinerários topográficos que no catálogo a publicar são objecto da leitura histórica de Ana Tostões, a mostra apresenta-nos uma prática rigorosa da cartografia fotográfica, que se destinou à edição de postais, roteiros turísticos, publicações de olisipógrafos e outras, para além das encomendas que realizou para a Câmara.
Evitando selecções que poderiam inventar um autor-artista através da concentração em alguns temas ou tipos de imagens (lugares pitorescos dos bairros populares, espaços de amplas perspectivas quase desérticas, séries «conceptuais» de candeeiros de rua, etc), a mostra segue a competente neutralidade com que Eduardo Portugal faz o inventário dos lugares, antecipando-se às alterações da paisagem urbana, regista as demolições de núcleos antigos ou o rasgar das quintas periféricas, e acompanha com minúcia a construção da nova cidade.
Outras mostras virão depois a avaliar a obra realizada com ambição artística, nos primeiros anos de actividade (de 1918 até 1928-30), de que se divulgam no catálogo e em vitrinas alguns exemplos com marcas picturialistas, e também os seus retratos e temas etnográficos. Entretanto são as imagens de Lisboa que ficam disponíveis, ampliando a paisagem urbana e oferecendo-se a várias direcções de investigação.
É sensivelmente na mesma data em que Eduardo Portugal troca a «fotografia de arte» pela objectividade documental que tem início a actividade parisiense de Eli Lotar (1905-1969), sintonizada com o crescimento da grande imprensa ilustrada. Trata-se aqui de uma muito diferente prática do documento, fortemente autoral, distanciada da ilustração e com um novo tipo de intenção artística identificada com a consciência da modernidade tecnológica e social.
Antologia de uma obra breve (1927-37), que foi partilhada com o cinema e não chegou a ganhar uma especial individualidade entre os renovadores da mesma época (em França, Man Ray, Germaine Krull, Maurice Tabard, Kertesz, Brassai, etc), esta é também uma exposição de arquivo, até por contar só com impressões recentes, vindas do Centro Pompidou - teria sido mais produtivo fazê-las acompanhar ou mesmo substituir pelas suas publicações nas edições do tempo, em que também se renovavam a paginação e o lugar da fotografia. (Que o Museu continue esvaziado da sua colecção histórica é apenas a continuação de um conhecido escândalo, talvez mais chocante neste caso.)
Nascido em Paris, de origem romena, Eli Lotar trabalhou a partir de 1927 com Germaine Krull, a influente autora do álbum Métal, desse mesmo ano e verdadeiro manifesto da modernidade associada à era da máquina. Foi um dos primeiros colaboradores do semanário «Vu», criado em 1928, e teve uma breve colaboração de estúdio com o surrealista J.-A. Boiffard. O seu trabalho mais famoso, sobre o Matadouro de La Vilette, que realizou na companhia de André Masson, foi encomendado por Bataille para acompanhar a entrada «Abattoir» no «Diccionário Crítico» que publicava na revista «Documents», e surgiu depois mais extensamente em «Variétés» e «Vu». Abandonou a fotografia em 1937, passando ao cinema com Jean Painlevé, Joris Ivens, Renoir e Buñuel (foi câmara em Las Hurdes, 1933), realizando um importante documentário de cunho social, Aubervilliers, em 1946.
Parte substancial da sua produção segue o modelo da «Nova Visão», que se afasta dos modelos picturais para explorar a objectividade da imagem fotográfica pura, através do pormenor significante e dos pontos de vista inesperados e insólitos, a par de uma procura poética da estranheza do banal quotidiano que interessava ao surrealismo. Uma fotografia de Lisboa (1927-30) substitui-se à modernidade que então não tivemos.
De Paris regressa-se a Lisboa e chega-se à actualidade com Luís Pavão, de quem se expõe no Oceanário uma selecção de 25 fotografias, em provas de grande formato quadrado (um metro de lado), seleccionadas do livro editado em 2002 pela Assírio & Alvim, "Lisboa, em Vésperas do Terceiro Milénio". Poderiam desejar-se, porém, melhores condições de produção para esta mostra que apenas apresenta cerca de dez por cento do projecto editado e a que haveria que atribuir um lugar central num programa dedicado à cidade e às questões urbanas.
Durante dois anos (Janeiro 2000-Dezembro 2001), Pavão calcorreou Lisboa com a disciplina de quem desenha o mapa da cidade em mudança, fixando os seus alvos, procurando os melhores lugares (e horas) de observação – muitas vezes elevados, às vezes com recurso a gruas – e assegurando o acesso a lugares reservados. O retrato resultou, em livro, num imenso «puzzle» organizado com um sentido do ritmo e da surpresa que continuam a ser surpreendentes. Documento, testemunho, inventário cartográfico, percurso sentimental, esta obra é um monumento erguido a uma cidade concreta, conhecida e revelada, com a sua arquitectura, trânsitos e habitantes. E é também um manifesto por uma urbanidade mais digna.
Colecção Ferreira da Cunha,
Eduardo Portugal,
Eli Lotar
e Luís Pavão
Arquivo Municipal, Convento das Bernardas, Museu do Chiado e Oceanário
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.