EXPRESSO/Cartaz de 19/5/2001 - I
"O mundo está diferente" - Os fotógrafos da Magnum interrogam a última década do séc. XX
a Exposição
MAGNUM° — ENSAIOS SOBRE O MUNDO / «Magnum Our Turning World. Photographs
1989-1999»
Culturgest (Até 27 Agosto)
o Livro
Magnumº, Phaidon, 2000
A Magnum é de tal modo influente e admirada, ou contestada, que existe o risco de se ver como uma exposição sobre uma agência fotográfica o que é de facto um discurso sobre o estado do mundo no início do novo século. O público que enche as exposições anuais do World Press Photo, explorando as fotografias sem se guiar pelos nomes dos autores, não se deixará enganar, mas o jornalismo e a crítica que escrevem sobre o que não precisam de ver preferem a enésima referência sobre a mítica agência à realidade das imagens e desdobram-se em elucubrações vagas a respeito da oposição entre arte e reportagem ou do conflito de gerações, a guerra entre clássicos e renovadores, no seio da cooperativa criada em 1947 por Cartier-Bresson, George Rodger, Robert Capa e David «Chim» Seymour.
"Exposição e livro são duas peças distintas de um imenso projecto fotográfico" (destaque)
«Magnum° - Ensaios sobre o Mundo», a exposição que a Culturgest inaugurou esta semana («Magnum Our Turning World. Photographs 1989-1999» na versão americana), é parte de um projecto fotográfico de enorme ambição que se propôs interpretar as realidades humanas, políticas e sociais à escala do globo nos dias de hoje, recuando a observação aos dez últimos anos, mais exactamente a 1989, data da queda do Muro de Berlim e do fim dos blocos que partilharam o mundo desde a II Guerra Mundial. A celebração do 50º aniversário da agência esteve na origem da iniciativa, mas o processo posto em marcha acabou por transcender em muito, três anos depois, a intenção autocomemorativa. Desta vez não se tratou apenas de explorar o material depositado nos imensos arquivos, e os seus membros no activo receberam bolsas para novos trabalhos. Até o veterano Cartier-Bresson suspendeu a reforma dedicada ao desenho para juntar mais alguns retratos à galeria dos pintores que admira, como Balthus, Lucien Freud, San Szafran, Georg Eisler.
Ao incluir no título a palavra «ensaios», no plural, refere-se claramente que não se propõe uma interpretação única mas uma visão plural sobre o estado do mundo depois do fim último da Guerra Fria, que tenha em conta e torne apreensível pelo espectador a dimensão pessoal e subjectiva de cada uma das prestações dos fotógrafos envolvidos. Ao mesmo tempo, assim se designa explicitamente a opção «editorial» seguida na construção da exposição: é uma sequência de ensaios fotográficos que se percorre, mais ou menos extensos e diversamente paginados ao longo das paredes das galerias, apresentados por curtos textos da autoria dos fotógrafos. Esses ensaios são por vezes constituídos, de modo mais tradicional, pelas diversas imagens de uma só reportagem, realizada num mesmo lugar e tempo, por exemplo num só teatro de guerra, mas noutros casos eles abordam um tema mais abstracto através de sequências de fotografias independentes.
À diversidade das soluções de montagem, que torna evidente a individualidade das autorias e segue estratégias usadas nas exposições de arte, corresponde a noção de que o mundo é hoje uma colagem de fragmentos que não se deixam submeter a qualquer ordem global ou síntese ideológica. Com a queda do Muro explodiram conflitos mantidos em surdina no seio da própria Europa, e os caminhos da globalização tornam evidentes as diversidades regionais. Com a famosa exposição «The Family of Man», produzida por Edward Steichen e pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1955, pretendeu-se estabelecer a ficção optimista da unidade da sociedade humana para lá das diferenças de cor da pele e da divisão do mundo em blocos inimigos. Meio século depois, esta é uma exposição sobre a persistência das diferenças, as resistências das sociedades à mudança, os focos de violência que estilhaçam o mundo, as ameaças que se levantam face às esperanças em melhores dias.
A par da exposição, a outra componente do mesmo projecto é um imenso livro, que não é apenas um catálogo e que deve ser encarado como um objecto autónomo, parcialmente coincidente mas diferente no seu conteúdo e no seu alcance: intitula-se Magnum°, Magnum Degrees, e foi publicado pela Phaidon Press de Londres, com um arrojado «layout» de Julia Hasting.
São 350 - algumas menos na Culturgest, por razões de espaço - as imagens da exposição, que iniciou a sua itinerância mundial em Fevereiro de 2000, na Biblioteca Nacional de França (Rue Richelieu), e são 617 as fotografias publicadas nas 536 páginas do livro simultaneamente lançado. As opções de «design» seguidas na montagem da exposição e na paginação do volume são substancialmente diferentes, tal como são independentes as opções temáticas e a sequenciação das imagens, concorrendo no livro os ensaios e as imagens isoladas, com um ritmo vertiginoso, que rompe decididamente com o conservadorismo atribuído à agência. Chris Steele-Perkins, fotógrafo da Magnum de Londres, assumiu a direcção editorial, apoiado por um comité com representantes de todas as gerações e tendências (Eve Arnold, Martine Frank, Carl de Keyzer, James Nachtwey, Martin Parr e Larry Towell), e o resultado não podia ser mais diferente do clássico In Our Time, que assinalou os 40 anos da agência (a Culturgest apresentou em 1993 a exposição correspondente). «Desde então o mundo mudou dramaticamente. A Magnum também», escreve Steele-Perkins. Ao álbum tradicional sucedeu um «puzzle» de imagens que, mais do que a exposição, é também um balanço do estado da fotografia, desafiando qualquer possibilidade de um olhar tranquilo sobre os desacertos do mundo. A ausência de maiúsculas nos textos é só uma incomodidade menor.
O mundo fragmentado que os fotógrafos dão a ver imprime-se num discurso fotográfico também estilhaçado, formalmente inquieto, que interroga a tradição do fotojornalismo humanista e se reinventa para além das supostas barreiras entre arte e documentário. À sequência disciplinada dos ensaios da exposição, arrumados por secções temáticas, sucede no livro um gigantesco itinerário à volta do mundo onde é determinante a autonomia de cada dupla página e uma montagem ritmada por diferenças de escala e por contrastes ou associações visuais, com um cruzamento constante de diferentes maneiras de olhar.
A exposição inicia-se por um prólogo, constituído por imagens emblemáticas sobre o ano decisivo de 1989, indicando desde logo que ficaram postas em causa todas as clivagens que dominaram o século XX - aí estão a queda do Muro de Berlim vista por Raymond Depardon e James Nachtway e o massacre da Praça de Tianamen nas fotografias de Stuart Franklin e Patrick Zachmann, continuando-se com outros testemunhos da derrocada dos regimes comunistas, na Roménia, também em 89 (Leonard Freed), e em Moscovo, já por ocasião do «putch» de 91 (Georgui Pinkhassov). Passando do documento à ficção, Josef Koudelka oferece-nos uma panorâmica muito larga que pode servir de alegoria sobre o ruir de esperanças e ilusões: a estátua de Lenine desce o delta do Danúbio, na Roménia, durante a rodagem do filme O Olhar de Ulisses, de Teo Angelopoulos (1994).
Por trás do Muro descobre-se que o mundo de hoje é uma manta de retalhos em que o moderno, o pós-moderno e o antigo continuam a coexistir. A primeira secção é dedicada à «Persistência dos Rituais», focando a continuidade e a resistência das diferenças, a estabilidade das estruturas e dos modos de vida para lá da uniformidade da circulação mediática e aparentemente à margem das realidades e temores da globalização. Descobre-se a perenidade das religiões no grande inquérito de Abbas à volta do mundo, na teatralidade das seitas norte-americanas da reportagem de Carl de Keyzer e na clausura dos mosteiros budistas percorridos por Martine Frank, mas também as sociedades e as tecnologias tradicionais, em imagens onde a aparência de um tempo parado coexiste com a impregnação por marcas da sociedade de consumo, como sublinha o texto de parede. Bruno Barbey regressa à imutável herança cultural de Marrocos que viveu na infância, Stuart Franklin procura identificar «o tempo das árvores».
Entra-se depois na «Crónica do Caos», um inventário cru dos disfuncionamentos da sociedade actual: a guerra, a poluição, as epidemias, a violência política, o racismo, a fome, a prostituição, etc. O que era a estabilidade esperada com o fim da Guerra Fria explode, afinal, na violência de novos e velhos conflitos armados: Guerra do Golfo, Afeganistão, Argélia, Ruanda, ex-Jugoslávia, Chechénia, Bósnia, Kosovo. E de novo a fotografia assegura uma condição de testemunho que nos fixa diante do indizível, propondo a certeza inquestionável de que alguém viu, como prova, denúncia e pergunta atiradas à compreensão do espectador.
Por fim, o capítulo «Estéticas do Quotidiano» é ocupado pela atenção aos «tempos fracos» da vida de todos os dias ou ao vazio das rotinas civilizadas. Aí, refere o texto de parede, «a abordagem documental em si mesmo não é a única motivação destes ensaios, que têm muitas vezes por pretexto uma reflexão sobre a forma fotográfica, pesquisa fundamental num mundo saturado de imagens. É muitas vezes uma fotografia de proximidade, urbana, pouco espectacular, que suscita uma reacção mais complexa». O inglês Martin Parr abre a secção, e não é por acaso que o Japão domina todo o final do percurso.
Ao contrário do que sucede com a marcação política que abre a exposição, o prólogo do livro, sem se intitular como tal, é uma sucessão fílmica de 45 fotografias de diferentes autores que se folheia como um bombardeamento de imagens isoladas, desligadas de um qualquer contexto explícito e destituídas de informação, excepto a que é eventualmente referenciada nas legendas. É a entrada de chofre numa outra viagem por um mundo sem ordem reconhecível e sem sentidos estáveis.
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