EXPRESSO/Cartaz de 19/5/2001 - II
"Mudar o olhar " - O fotojornalismo num momento de viragem
Quantas vezes já se escreveu que chegou ao fim a idade de ouro do fotojornalismo? Não importa. Invocar uma qualquer idade de ouro é sempre situar o debate no terreno dos mitos. O certo é que as grandes peregrinações da arte contemporânea, como a última edição da Documenta de Kassel e a próxima da Bienal de Veneza, se abrem à fotografia dita documental como nunca sucedeu no passado, esquecendo todas as condenações teóricas proferidas contra os fotógrafos do real.
"Abrem-se novos canais de circulação às imagens documentais e inventam-se diferentes olhares" (destaque)
Basta emoldurar uma transparência numa caixa de luz, ampliar uma fotografia à dimensão da parede ou instalar uma «instalação», mesmo que se trate só de colar as páginas de um livro ao longo da parede, para obter a desejada credencial de artista. São cálculos que duram uma temporada, mas não deixam de pôr em causa as convenções estabelecidas e de alargar o espaço disponível para a atenção à fotografia. O real não se evaporou com a aceleração da circulação das imagens, que não precisaram de esperar pela informática para serem virtuais. Desde os «jeux d'esprit» e «ready mades» de Marcel Duchamp que já não tinha sentido estabelecer fronteiras entre arte e documento como entidades essenciais, mas quem se reivindica do conceptualismo pós-duchampiano nunca entendeu Henri Cartier-Bresson ou Manuel Alvarez Bravo, nem, aliás, o humor e o «voyeurismo» do próprio Duchamp.
A disputa dos espólios das grandes agências fotográficas internacionais pelas bases de dados norte-americanas da Corbis de Bill Gates e da Getty Images de Mark Getty é apenas mais um episódio que vem confirmar a importância do registo da actualidade em imagens fixas, a par dos direitos de reprodução dos espólios dos museus, tomando-se umas e outros como núcleos significativos da reorganização do capital globalizado. Gates marca posições num negócio de futuro e Getty procura com ele reconstruir o empório familiar. A televisão mudou a fotografia, graças à proliferação dos directos, tal como a fotografia mudou a pintura, ocupando-se de algumas tarefas mais rotineiras, mas nenhuma das novas tecnologias ditou a morte das anteriores actividades criativas. Talvez venha a acontecer, porque tudo se transforma, mas os profetas da desgraça raramente adivinham o futuro.
Os últimos anos assistiram à aparição de um fotógrafo, Sebastião Salgado, que assumiu, sozinho (mas acumulando ele mesmo os papéis de autor, economista-ensaista e administrador da sua obra), a dimensão gigantesca de uma agência unipessoal. Passou fugazmente pela Magnum, que não tinha dimensão para o servir. As edições anuais do World Press Photo ampliam todos os anos as digressões e os seus públicos. As exposições e livros da Magnum multiplicam-se a um ritmo desconhecido em todo o seu brilhante passado.
Ao comentar a presente exposição, Michel Guerrin, crítico de fotografia de «Le Monde» (que, aliás, só recentemente se abriu ao jornalismo fotográfico), justificava mais uma versão do tal fim da idade do ouro com o argumento de que «uma agência, por mais prestigiada que seja, deixou de poder viver exclusivamente da venda aos jornais». Não é uma sentença de morte mas um momento de viragem: a exploração dos arquivos e a entrada nos espaços institucionais da arte têm uma importância crescente no «chiffre d'affaires» da agência, assegurando-lhe novas condições de funcionamento.
A Magnum tem actualmente cerca de 50 exposições em digressão pelo mundo e todos os anos mais umas cinco entram no mercado. Os livros, colectivos ou individuais, multiplicam-se e cresce a venda de provas de colecção, igualmente geridas pelo departamento cultural da agência, que já atinge 30 a 40% do volume de negócios global. O projecto Magnumº atraiu contribuições mecenáticas excepcionais (210 mil contos) para um orçamento total com raros precedentes na história da fotografia.
À histórica agência do pós-guerra associou-se a convicção optimista de quer possível mudar o mundo com o poder das imagens, mas essa esperança tinha tanto a ver com a fotografia a preto e branco como com o simplificação ideológica autorizada pela partilha do mundo em dois blocos. Não existe um estilo Magnum, para além da exigência de que cada um dos seus membros seja capaz de afirmar um ponto de vista pessoal sobre um mundo que também não é único nem estável. E se é hoje mais difícil ter a certeza de mudar o mundo, há sempre um enorme campo de intervenção aberto ao olhar dos fotógrafos.
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