A propósito de uma sucursal do Ermitage ou Hermitage anunciada para Lisboa...
artigo publicado no EXPRESSO/Actual de 20-01-2007, não pag.
"Mercado dos museus"
O projecto de uma filial do Louvre no Abu Dhabi abriu uma larga polémica sobre a nova economia da arte, em que o Guggenheim e o Hermitage são parceiros
A pirâmide de I. M. Pei era premonitória. Agora é o «Louvre do deserto» que agita os meios culturais desde que três figuras da museologia publicaram no «Le Monde» (13 de Dezembro) a proclamação «Os museus não estão à venda», logo assumida como abaixo-assinado. A economia do sector tinha como vertentes mais mediáticas a saga das sucursais do Guggenheim e a angariação de fundos do Hermitage, por sinal associados desde 2001 em Las Vegas, no Venetian Resort-Hotel-Casino. A vertigem das deslocalizações atingiu o Louvre e o Centro Pompidou, que tinham começado por anunciar a construção de «antenas» em Lens (Pas de Calais) e Metz, respectivamente. Tratava-se de abrir a caixa de Pandora antes de partirem para o Oriente.
Se se inaugurou em Novembro a pequena Sorbonne do Abu Dhabi, porque não um «franchising» do Louvre na capital dos Emiratos Árabes Unidos, que têm 9% das reservas de petróleo e reservaram 43 Airbus A380? Porque, além de vender a marca Louvre e assessoria técnica, se tratará de alugar obras de arte, e muitas delas devem estar em exibição permanente em Paris (com 35 mil peças expostas de um total de 380 mil, já não há obras-primas ou de grande interesse público nas reservas do Novo Louvre). Porque com o projecto de abrir quatro museus em Saadiyat, a ilha da Felicidade, este principado de 700 mil habitantes quer projectar-se como destino turístico de superluxo, em competição com o Dubai. Porque o Guggenheim («o desastroso pioneiro da exportação paga das suas colecções», diz o manifesto de Françoise Cachin, Jean Clair e Roland Recht) é um desses museus, com mais um projecto de Frank Gehry. Porque se adivinham choques censórios com os temas religiosos e a nudez dos corpos (aliás, inúmeras vezes associados). Porque este é um exemplo gritante da deriva que prende os museus à lógica do entretenimento e aos interesses estratégicos da chamada «cooperação cultural de Estado a Estado», à maneira de Chirac.
O Governo fez sair a terreiro o topo da hierarquia dos museus e foi apoiado por Jack Lang, entre outras vozes optimistas. Soube-se que o acordo, a negociar até ao fim do mês, vende o nome (a «griffe») Louvre por 20 anos, mas envolve também a cedência de obras de outros museus durante os primeiros dez. A factura será de €700 milhões, livres de impostos e a distribuir no sector. Entretanto, a polémica iluminou o mercado confidencial do aluguer de exposições temporárias. Os três signatários criticaram uma parceria de três anos entre o Louvre e o High Museum of Art de Atlanta, Georgia, que renderá $13 milhões (€5,5M são para renovar as salas de artes decorativas). O mais famoso quadro de Poussin, Et in Arcadia Ego, saiu em viagem.
A regra antes seguida pelos museus cumpria a lógica das co-produções e dos empréstimos graciosos, no quadro duma rede de trocas entre iguais (o que exige algum património como patamar de credibilidade), partindo do princípio que as deslocações de obras obedecem a interesse cultural ou científico. Em anos recentes organizaram-se operações com retorno financeiro por ocasião do encerramento de museus para renovação. A vinda da Colecção Barnes ao Museu d’Orsay, em 1993, custou 12 milhões de francos a uma empresa mecenas; a colecção da Orangerie fez uma circulação mundial de três anos que rendeu €7 milhões. Entretanto, foram chegando da Ásia convites tidos por irrecusáveis, e os museus ocidentais adoptaram uma nova ética, ao mesmo tempo que os novos magnatas tornavam inacessíveis os preços pagos nos leilões. O director do Metropolitan, Philippe de Montebello, ainda fez em 2003 um aviso solene contra a comercialização desenfreada do património público e o sistema dos empréstimos pagos («loan fees»), mas já era tarde.
O presidente do Centro Pompidou veio apoiar o negócio do Louvre, confirmando uma sucursal em Xangai para 2010, e abriu uma porta para a Índia, além de trazer a público números relevantes: a venda de exposições chave na mão rende-lhe €3 milhões no triénio 2005-07, em especial graças a operações em Hong Kong e Tóquio; em troca, o museu gasta apenas €100 mil por ano. No balanço de 2005 do British Museum lê-se que a circulação internacional de exposições rendeu £1,5 milhões; os «loan fees» e rendimentos gerados pelas exposições itinerantes são uma alavanca substancial das receitas, diz o actual orçamento.
Com preços definidos pela concorrência das novas potências, as grandes exposições têm de ser mediáticas para serem lucrativas ou atraírem os mecenas. A excelente mostra da Colecção Rau que veio ao Museu de Arte Antiga foi paga, no âmbito do mecenato do Millennium bcp, a uma empresa que administra o depósito desse acervo privado e dirige - é mais um sinal dos tempos - o Museu do Luxemburgo do Senado francês, em Paris.
Quanto ao Guggenheim, não se duvida do êxito urbanístico do museu de Bilbau, que faz dez anos em Outubro, mas ele foi apenas uma parte do investimento de $1,5 mil milhões com que uma cidade desesperada apostou na renovação. O resto é uma lista de falhanços, em Salzburgo, Viena, Taiwan, Rio e decerto Guadalajara, também no Lower Manhattan e em Las Vegas, onde só resta a parceria com o Hermitage, sem esquecer o edifício do Soho que durou uma década (1992-2002).
O actual Hermitage tem o patrocínio da UNESCO, e um conselho internacional apoia as iniciativas de «fundraising» para o complexo de museus de São Petersburgo. Além dum pólo em Kazan (Rep. Tatarstan), há salas abertas em 2000 no Courtauld Institut of Art em Londres, em Las Vegas e em Amesterdão desde 2004. Com Lisboa há um acordo transcrito no site oficial (oferecido pela IBM, custou $2M), que prevê exposições recíprocas de obras do Hermitage e de museus portugueses, pagas pelo nosso Ministério, bem como o estudo do projecto dum centro permanente. A primeira exposição está a ser organizada para Outubro, por ocasião da cimeira europeia com Putin, certamente com o tema da arte imperial russa, mas ainda se procura local condigno em Lisboa, já que a galeria da Ajuda exigiria grandes obras.
O protocolo de intenções vigora até Dezembro de 2010, renovável por períodos de quatro anos, mas nada se sabe sobre qualquer extensão mecenática nacional da rede dos «Friends of Hermitage». O Governo dos Países Baixos começou em 1994 por doar $1,2 milhões, depois reuniu fundos para restaurar as gravuras e a sala da pinturas de Rembrandt, etc., antes de ter direito a uma delegação. Por cá, alguém se terá equivocado, e a aventura é chocante para museus mais pobres do que os da Rússia.
Art. associados: Bilbau
O Hermitage em Lisboa (Outubro
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