"Sangue quente em Madrid"
EXPRESSO/Actual de 26-06-1999
Fotos: Peter Beard, «Khadija com o meu jornal» (polaroid a cores de grande formato)
Weegee, «Billie Dausha e Mabel Sidney», Nova Iorque 1944
André Kertész, «Hotel des Terrasses», Paris 1926
LISBOA já teve o seu Mês da Fotografia, em 1993, mas a experiência, em
geral bem sucedida, ficou sem continuidade. Madrid começou em 1998 e já
vai na segunda edição. Por cá, a iniciativa pertenceu à Câmara. Em
Espanha, trata-se de um projecto particular, dinamizado por uma empresa
cultural, La Fabrica, que conseguiu associar aos patrocínios do
Ministério de Educação e Cultura e do Ayuntamento de Madrid a
colaboração de museus, fundações, centros de arte e de mais 46 galerias
e dez outros espaços. No total, «PHotoEspaña 99», com cem milhões de
pesetas de orçamento, apresenta 93 exposições que se distribuem pela
secção oficial, nas instituições estatais ou mecenáticas distribuídas
ao longo do Eixo da Castellana, do Centro Rainha Sofia à torre Caja
Madrid; por «salas convidadas», mais afastadas dessa via central; e
pelo «festival off», incluindo as galerias. É um longo itinerário a
atravessar a cidade e a diversidade da fotografia que se prolonga até
18 de Julho. Na Internet conta com um site muito eficaz:
www.photoes.com.
«Sangre Caliente» foi o título escolhido para o segundo festival, que aposta abertamente na pluralidade da fotografia, na abolição das fronteiras convencionais entre arte e fotografia bem como na conquista de um público alargado (terão sido cerca de 500 mil os visitantes das 71 exposições da primeira edição). A denominação não significa a adopção de um condicionamento temático, mas antes uma aposta na «emoção como um instrumento essencial da criação» – «pela paixão contra o aborrecimento», como diz um dos títulos do primeiro número do «PHotoPeriódico», o suplemento semanal de «El Periódico del Arte» que é dedicado ao festival.
Alejandro Castellote, o director artístico, dá um tom polémico ao programa quando afirma que «os canais de difusão da arte estão maioritariamente habitados por uma oferta endogâmica: arte para artistas e para os profissionais que circundam o mundo da cultura. Os resultados costumam ser propostas ilegíveis para os não iniciados». A alternativa procurada ao que se diz ser «o esgotamento estético da cultura gerada no Ocidente» ou a «frieza e hermetismo das novas correntes», não é o populismo e a banalização, mas «a reivindicação da emoção na arte», «o uso da fotografia como instrumento de compromisso social» e a atenção às propostas diferentes vindas de outros continentes.
Entre outros encontros programados, com Martin Parr e Andrés Serrano, por exemplo, o debate continua num seminário da Universidade Complutense, dirigido por Santiago B. Olmo, que tratará o tema «Quente e frio. Estratégias da emoção e da razão: Atitudes na fotografia actual». Apresentada no Museu Rainha Sofia, em últimos dias (só até 29), «Fotografia Pública / Photography in Print. 1919-1939», é uma notável exposição sem provas fotográficas originais. Organizada pelo historiador Horacio Fernández, debruça-se sobre a publicação e reprodução da fotografia por meios mecânicos, em foto-livros, revistas e jornais, cartazes, folhetos publicitários ou propagandísticos, explorando as transformações que conheceu a fotografia entre as duas guerras, quando nasce a «Nova Visão» e explodem os grandes meios da comunicação de massas que associaram a renovação da tipografia à imagem impressa. Atenção à posterior itinerância por Bilbao e La Rioja, Logroño, a partir de Setembro, e, em especial ao livro homónimo, com cerca de 650 reproduções de fotografias impressas e um dicionário de autores, tantas vezes simultaneamente fotógrafos, fotomontadores, designers e também artistas plásticos.
A rectaguarda histórica (ou vanguarda, se se quiser) continua no programa com um conjunto de excelentes mostras retrospectivas, dedicadas a André Kertész, com «Ma France», a exposição da Mission du Patrimoine Photographique que os Encontros de Braga mostraram em 1993 (até 30 Jul.), e também a Weegee, numa produção do International Center of Photography (ICP), de Nova Iorque (até 1 Agosto), para além de um panorama do neo-realismo fotográfico italiano (até 29 de Agosto) e outro dedicado à Photo League, a associação de fotógrafos de Nova Iorque de intenção social, activa desde 1936 até 1951, extinta pelas perseguições do maccartismo. Comissariada por Naomi Rosenblum, com provas em muitos casos «vintage» da Howard Greenberg Gallery, reúne 41 autores que alargam em muito o leque dos nomes mais conhecidos de Berenice Abbott, Lewis Hine, Eugene Smith ou Lou Stettner.
Outras projectos em que o compromisso social e a tradição documental se prolongam na actualidade encontram-se na colectiva «Imagens para a Dignidade», na estação da Renfe Nuevos Ministerios (e também nos comboios), com imagens de Sebastião Salgado, Cristina Garcia Rodero, Zwelethu Mitheta (África do Sul), Christine Spengler (Kabul) e outros, e também na edição de 99 do World Photo Press, mostrada na Fundação La Caixa (até dia 29). Entretanto, outros projectos temáticos, como «Elogio de la Pasion» ou «Afinidades Dispersas», apresentam jovens autores, estabelecendo cruzamentos com as estratégias da arte mais recente ou com os novos media, enquanto propõem pontes entre o social e a intimidade.
Outros nomes em destaque no programa são os de Peter Beard (NI, 1938), com as suas imagens de África mostradas no Museu Nacional de Ciências Naturais – é um inclassificável autor de fotografias de animais e de empenhamento ecológico, bem como de moda e de charme, indissociáveis como exercício de vida dos seus impressionantes «diários» feitos de colagens, desenhos e objectos –; de Seydou Keïta (c. 1921) e Malick Sidibé (1936), fotógrafos do Mali que se dedicaram ao retrato e, o segundo, também ao testemunho da modernização da vida urbana africana, fotografando o quotidiano e as festas nocturnas (Real Jardim Botânico até 31 Jul.); ou da brasileira Claudia Andujar, com a antologia do seu trabalho com os Yanomami recentemente mostrada em Braga.
Quanto à produção espanhola, o destaque histórico irá para José Ortiz Echagüe (1886-1980), estranha figura de um pioneiro da aviação e da modernização industrial espanhola que praticou toda a vida uma fotografia arcaizante, usando processos dos picturialistas (Carbono-Fresson) para registar os «tipos y trajes», «pueblos y paysajes» de uma «España Mística». Será mostrado no Rainha Sofia de 13 de Julho a 13 de Setembro. Outro histórico, mais recente, é Ramón Masats, fotógrafo catalão nascido em 1931, renovador da reportagem nos anos 50-60. Mas a actualidade da fotografia espanhola está presente por toda a parte, desde a colectiva oficial «Propuesta 99» às inúmeras mostras individuais: Javier Vallhonrat e Miguel Trillo (em La Fabrica), Isabel Muñoz (em três mostras), Tony Catany, Xurxo Lobato, Manuel Sonseca, José Ramón Bas (presente em Braga, em 99), Antoni Abad, Chema Alvargonzález e Alicia Martín (na galeria Oliva Aruna), etc, etc. A vitalidade do panorama (que parece, no entanto, mais prolixo que exaltante), prolonga-se em termos editoriais com a «Colecção PHotoBolsillo», a publicar um livro por mês e já com Humberto Rivas, Koldo Chamorro, Francesc Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Vallhonrat, Trillo e outros.
Diversificando ainda mais a oferta, assinale-se a presença dos arquitectos-artistas Diller+Scofidio, de Nova Iorque; de Francis Giacobetti, retratando Francis Bacon seis semanas antes de morrer em Madrid; do guatemalteco Luis González Palma, que trabalha um repertório mitológico local com os meios da colagem e da montagem. Dez fotógrafos peruanos e os argentinos Marcelo Brodsky e Matías Costa alargam o trânsito ibero-americano.
Nas galerias, a diversidade é absoluta, quanto a géneros, temas e também fronteiras nacionais (embora a ausência de quaisquer nomes portugueses no programa não deva deixar de ser notada, tanto mais que a «invasão» contrária se tornou uma constante). Citem-se entre os mais conhecidos, Robert Mapplethorpe (as flores), os pintores Davis Salle e Juan Uslé (na Solelad Lorenzo e, o segundo, também em Estiarte), ou Allen Jones, artista inglês associado à Pop; a jovem francesa Rebecca Bournigaul; as colectivas com Gursky, Ruff, Ruscha e Serrano ou Thomas Joshua Cooper, Gunther Förg, Axel Hütte e Olafur Eliasson.
Entretanto, é fora do programa PHotoEspaña que se encontra uma das mais importantes exposições madrilenas: os «Cantos do Deserto» de Richard Misrach no Canal Isabel II (até 29 de Agosto). Aí se expõe uma síntese de vinte anos de trabalho e de muitos milhares de imagens dedicadas às paisagens desérticas norte-americanas.
Herdeiro da grande tradição paisagística americana e também da sua renovação pelos «novos topógrafos» de 1975 (Robert Adams, Lewis Baltz, Frank Gohlke, Stephen Shore, etc), Misrach utiliza a cor e o grande formato num trabalho que é uma aventura pessoal, uma celebração dos grandes espaços e também uma denúncia da degradação da natureza.
A mostra de Mishari veio já de Granada e segue com destino à sala Rekalde de Bilbao: é mais uma oportunidade para reflectir sobre a estranha distância que nos separa das circulações peninsulares. (Em tempo: a pintura de Morandi passa o Verão no Museu Thyssen.)
(Nota: Notícia prévia ? / Catálogo* / Fotografía Pública* / Photo League*)
2ª edição, 16 Junho - 18 Julho.
dir. artístico: Alejandro Castellote; exp. internacionais: Enrica Viganó (com. exp. neo-r.)
ed. em 12-07-2007
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.