«Segredo fotográfico»
EXPRESSO/ Actual, pág. 3, 26-10-96
O Ministério da Cultura recusou revelar ao EXPRESSO quais as conclusões ou recomendações formuladas no relatório entregue, no termo da sua actividade, pelo grupo de trabalho que em Março foi incumbido de analisar a situação da fotografia. Depois de repetidas solicitações, sempre sujeitas ao adiamento da resposta, o responsável pelo Gabinete de Imprensa do MC acabou por comunicar que «o relatório é confidencial». Não se pedira o acesso directo ao relatório, mas apenas uma indicação sintética das conclusões, mesmo sob a forma de uma indicação verbal das respectivas linhas gerais.
O grupo de trabalho «para estudo da fotografia em Portugal»,
constituído por Teresa Siza, Luis Pavão, Manuel Silveira Ramos e
Victória Mesquita, deu por terminadas as suas funções no início do
Verão. De acordo com o despacho que o nomeara, competia-lhe propor as
«atribuições e conteúdos funcionais de um organismo a ser criado
futuramente para tutelar as políticas a desenvolver neste domínio»,
embora a lei orgânica do MC, que é contemporânea da respectiva
nomeação, já fosse particularmente prolixa (e equívoca...) sobre as
atribuições de um futuro Centro Português de Fotografia (CPF).
Atribuindo-lhe, nomeadamente, a tarefa de «orientar a criação»,
conforme se alertou em artigo publicado no «Cartaz» de 30-3-96.
Entretanto, têm sido referidos na Imprensa um projecto de utilização da
Cadeia da Relação, no Porto, como sede do CPF, bem como a eventual
integração nessa entidade, sob a forma de Museu Nacional da Fotografia
(hipótese apontada numa notícia de Rita Siza, no «Público» de 14 de
Setembro), dos espólios que actualmente são conservados no Arquivo
Nacional de Fotografia (ANF). Sobre essas questões, o MC tem-se negado
a prestar esclarecimentos, usando as fórmulas «não há nada de
definitivo», «ainda não se sabe», «não há nada que o ministro queira
divulgar».
O mesmo porta-voz confirmou que «está-se a mexer no edifício», que o
ministro vai (ou já foi) ao Porto inteirar-se dos trabalhos, que Teresa
Siza é uma «hipótese forte» para vir a dirigir o CPF e que actualmente
é o Instituto de Arte Contemporânea (em instalação) quem se encarrega
do expediente relativo à fotografia. No entanto, sobre as linhas de
orientação de uma política para a fotografia — concentração numa
entidade única de todas as vertentes e áreas (artísticas, documentais,
técnicas e formativas, patrimoniais, etc) ou preservação das suas
diversificações funcionais — o silêncio é completo.
«Não há nada que o ministro queira divulgar» é uma resposta que
desconsidera os direitos e responsabilidades da Comunicação Social. É
uma posição arrogante e autista, que se furta a permitir o debate
público sobre as opções estratégicas para impor factos consumados.
Tanto mais quanto aquele silêncio, interrompido por vagas notícias
«sopradas» pelo Gabinete, tem dado azo à repetida formulação de
pertinentes inquietações.
A 1 de Outubro, no «Público», sob o título «Defender o património
fotográfico», Fernando Rosas expressou em artigo de opinião, na sua
qualidade de historiador, o alarme perante a hipótese de transferência
para o Porto e para o futuro CPF dos espólios conservados no ANF e na
Fototeca do Palácio Foz. Tal medida, escreveu, «significaria a pura e
simples paralização, inviabililização e destruição do excepcional
trabalho de defesa do património levado a cabo» por essas duas
entidades. Directamente interrogado sobre a matéria, o MC mostrou-se
desinteressado em fazer qualquer comentário.
A política de comunicação do MC tem por base uma persistente confusão
entre informação e propaganda. Pergunta-se se será reactivada e
confiada ao CPF a chamada Colecção Nacional de Fotografia, criada pela
antiga SEC e actualmente entregue em depósito (morto) à Fundação de
Serralves. O Ministério responde que «não se sabe», mas, em troca do
tema silenciado, adianta que em Novembro será lançada a primeira pedra
do futuro Museu de Serralves. O que importaria saber é se o MC prevê
retomar as aquisições interrompidas desde 1991 e se admite que uma
política de coleccionismo público na área da fotografia será uma das
atribuições do futuro Centro.
Pergunta-se se o mesmo organismo terá por missão tutelar tanto a
política de apoio à fotografia contemporânea (as bolsas aos criadores,
os subsídios aos festivais, a representação internacional, etc) como a
preservação e estudo do património fotográfico de carácter histórico e
sem imediato interesse artístico. O MC não responde, mas sugere que tem
pronto um projecto de bolsas de apoio à criação literária...
O mesmo silêncio impera noutras áreas. Aquele que foi certamente o
único documento de análise estratégica divulgado pelo responsável de um
departamento oficial («Arqueologia portuguesa: algumas reflexões para
um diagnóstico e uma estratégia», de Vitor Oliveira Jorge, «Publico» de
18-8-96) precedeu de poucos dias a respectiva demissão.
Um dos argumentos que têm sido referidos a propósito da localização no
CPF no Porto é a ambição (legítima) da cidade e da sua Câmara verem
regressar o arquivo Alvão, oportunamente transferido do Museu Soares
dos Reis para o ANF, por não ter aí as necessárias condições de
conservação. Mas iguais considerações de origem e de acesso aos
espólios de interesse lisboeta e nacional desaconselhariam, por mais
fortes razões, a sua transferência para o Norte.
Por outro lado, a própria atribuição à fotografia de um imóvel com as
dimensões e as características históricas da Cadeia da Relação faria
certamente pesar sobre qualquer nova instituição, que deveria ser leve
e desburocratizada, custos fixos e uma monumentalidade de todo
desproporcianada.
A unificação da fotografia sob uma tutela única, num instituto-museu
centralizador, só pode resultar da ignorância do carácter diverso,
indisciplinado e «intermedia» da fotografia. «A fotografia é múltipla,
tão múltipla como os seus usos, e a criação artística é apenas um uso
entre vários», escrevia há dez anos Jean-François Chevrier («La
photographie dans les musées», «ArtPress, nº 108, Nov. 1986).
Juntar a difusão da fotografia actual (desde logo atravessada por
intenções artísticas e documentais) à conservação patrimonial (que é,
em si mesmo, um campo totalmente diversificado, desde as produções de
autor até aos espólios de estabelecimentos comerciais, os arquivos
jornalísticos, históricos, topográficos, etc) seria criar um monstro
burocrático, auto-devorador de meios e competências.
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