Artigos sobre a criação do CPF em 1996
(e referências a artigos de outros, no tempo em que havia controvérsias)
1 - “Fotografias desfocadas”
EXPRESSO/ Actual - 30-03-96
ENTRE as originalidades da nova lei orgânica do Ministério da Cultura conta-se a criação do Centro Português de Fotografia (CPF), a par dos institutos dedicados às áreas do património, arqueologia, museus, arte contemporânea, cinema e audiovisual, etc. No entanto, só poucos dias antes da aprovação do organograma do MC fora nomeado o «grupo de trabalho para estudo da fotografia em Portugal» a quem compete propôr a definição das «atribuições e conteúdos funcionais de um organismo a ser criado futuramente para tutelar as políticas a desenvolver neste domínio». Parece precipitado incluir na lei orgânica uma entidade para a qual se procuram ainda atribuições e conteúdos, mas esse está longe de ser o aspecto mais controverso das deliberações do MC.
Do grupo de trabalho fazem parte Teresa Siza (comissária de exposições e sub-directora dos Encontros de Coimbra), Luis Pavão (especialista em conservação do Arquivo Fotográfico da CML), Manuel Silveira Ramos (professor do Ar.Co) e Victória Mesquita (responsável pelo Arquivo Nacional de Fotografia, em representação do MC). O grupo, cuja qualificação se reconhece, escolherá o respectivo coordenador entre os seus membros — é uma abstenção cínica da tutela, até porque não é inocente a ordenação dos nomeados. Cabe-lhe «proceder a um estudo global da situação da fotografia no país» e deve apresentar conclusões «no mais curto espaço de tempo possível».
Entretanto, uma fonte do Ministério já referiu a intenção de transferir para o CPF o Arquivo Nacional de Fotografia (ANF), actualmente integrado no Instituto Português de Museus (IPM), e o próprio ministro anunciou que o novo organismo será instalado no Porto.
O despacho que criou o grupo de trabalho refere no seu preâmbulo que «se impõe divulgar o significativo capital fotográfico já existente, por forma a valorizar o seu conhecimento e permitir o seu usufruto através, nomeadamente, de uma instituição central e coordenadora de estudos, investigação e avaliação de grandes projectos fotográficos». Acrescenta-se que «não existe um projecto de investigação em fotografia e que a actividade editorial a nível nacional é, neste domínio, praticamente irrelevante». Parece ser, portanto, a área patrimonial, a mesma que tem vindo a ser coberta pelo ANF, embora com carências e incertezas de vária ordem, que é particularmente visada pelos «grandes projectos» do MC e não o apoio à criação fotográfica contemporânea, a promoção e divulgação da fotografia entendida como documento e meio de expressão artística.
O articulado da lei orgânica, porém, deixa antever que esta vertente será também da competência do CPF. Aí se referem «apoios a conceder à fotografia» (ver caixa), à «produção de projectos de formação e investigação», à «actividade editorial articulada com a investigação» e à «produção de eventos fotográficos», para além do lançamento das «bases para a organização de um sistema de informação e comunicação actualizado e eficiente, como sede indispensável para os criadores, investigadores e público e geral» (um banco de dados e uma «site» na Internet?).
Existe na actuação do MC a evidência de um gosto por «baralhar e dar de novo» que já marcara a gestão anterior da SEC, desrespeitando a história própria das intituições e serviços existentes ao sabor de novas «arquitectónicas» delineadas no arrogante segredo dos gabinetes. Opta-se mais uma vez pelo voluntarismo das revisões orgânicas e dos «projectos especiais» inventados no papel, em lugar de se dar prioridade à satisfação de graves carências de meios e de quadros que aguardam solução nas estruturas centrais já em funcionamento. O «tratamento» a aplicar ao ANF seria mais um exemplo dessa política (os Institutos de Arqueologia e de Arte Contemporânea configuram idênticos casos), mas mais obscura ainda é a sugestão de vir a condensar num mesmo Centro actividades de diferente natureza que ganhariam em manter a sua independendência.
A criação do CPF parece pretender seguir o modelo francês do Centre National de la Photographie, dependente da Délégation aux Arts Plastiques, mas ignorando o que o diferencia da actividade paralela da Mission du Patrimoine Photographique, integrada na Direction du Patrimoine. Amalgamando, assim, a promoção do interesse público pela fotografia e o estímulo à produção artística, graças a acções concretas como exposições, edições, bolsas de criação e investigação, com a salvaguarda dos fundos fotográficos e a reunião de espólios e independentemente da sua valia estética.
O ANF nunca teve a sua existência legalmente definida, nem quando se encontrava integrado, como Divisão de Fotografia, no antigo Instituto Português do Património Cultural, nem quando, em 1991, passou para a dependência do IPM, ficando a aguardar regulamentação específica. No entanto, há perto de vinte anos, e em especial desde 1987, que o ANF se dedica à conservação, tratamento e estudo de espólios fotográficos, alguns adquiridos e outros doados ou depositados, depois de ter ganho a confiança de autores e herdeiros. Conta hoje com muito mais de três milhões de imagens, muitas dezenas de aparelhos e várias bibliotecas, que justificariam a criação de uma unidade museológica (ver «Conservar e produzir», EXPRESSO/Revista de 9/7/94).
Além de outras iniciativas menores, ficou a dever-se-lhe a exposição de Frederick William Flower integrada no programa de Lisboa 94, a que se seguiu, em 1995, a exposição do retratista San Payo, também no Museu do Chiado — o autor do despacho parece desconhecer estes «projectos de investigação», os primeiros seriamente concretizados desde a actividade pioneira da galeria Ether. Para este ano está anunciada a apresentação do fotógrafo amador Jorge Almeida Lima e suceder-lhe-á a primeira retrospectiva de Carlos Relvas.
Noutra frente de acção, o ANF encarrega-se do levantamento fotográfico do património museológico, fornecendo aos serviços oficiais e ao público as respectivas reproduções (atingiu em 94 uma capacidade de produção de 50 mil imagens/ano, passando assim a auto-financiar-se). Por outro lado, além da colaboração no inventário do património móvel, é ainda significativa a intervenção do ANF na área do restauro e investigação, de que foi exemplo o programa dedicado aos painéis atribuidos a Nuno Gonçalves.
Estava prevista, pelo anterior Governo, a criação de espaços condignos para o Arquivo nas antigas instalações militares das Oficinas de Material de Engenharia, em Belém, que acolheriam igualmente a transferência do Museu dos Coches e a sede do IPM.
No domínio da fotografia, a restante intervenção do Estado reduziu-se, em 1989-90, ao início de uma colecção de fotografia (346 imagens) que não teve continuidade e foi depositada na Fundação de Serralves já depois do roubo de algumas peças, bem como à atribuição de subsídios aos Encontros de Coimbra e Braga, para além de outros apoios pontuais e dispersos. É esta vertente que deveria ser repensada pelo Ministério e que justificaria a criação de um CPF, sediado no Porto, mas sem a ambição de tutelar todas as «políticas» para a fotografia. A reactivação da colecção da ex-SEC seria, obviamente, a primeira das suas prioridades.
As direcções de trabalho asseguradas pelo ANF, a preservação dos espólios e a documentação fotográfica, não devem ser fundidas, nem confundidas, com as acções relativas à divulgação da fotografia e à sua promoção como uma das formas da arte contemporânea.
2 - “Orientar a criação”
EXPRESSO/ Actual - 30-03-96
A DEFINIÇÃO de «uma política global e articulada para a fotografia em Portugal», confiada ao grupo de trabalho recém-nomeado, não deverá entender-se, certamente, como um excesso de ambição dirigista, porque se supõe que «global e articulada» será apenas a acção do Ministério nesta área. A fotografia em Portugal poderá, espera-se, continuar a ser livre, fragmentária e desarticulada, ao sabor das iniciativas dos diferentes interessados — os fotógrafos, os média, as associações, os coleccionadores, os investigadores e os críticos, as instituições particulares que a ela se dedicam, etc.
Há, no entanto, uma passagem da nova lei orgânica do MC (artigo 20º) que inspira as mais graves apreensões, quando, a propósito do futuro Centro Português de Fotografia, se faz acompanhar a referência aos «apoios a conceder à fotografia em Portugal» pela descuidada frase seguinte: «orientando a criação e promovendo a inserção da fotografia portuguesa nos canais privilegiados para a sua divulgação em Portugal e fora do País».
Só como um deslize de linguagem se pode entender esse «orientar a criação», mas a referência aos «canais privilegiados» não é menos reveladora de uma mal escondida tentação elitista e autoritária do actual MC. Quais são, de facto, esses «canais privilegiados» para a divulgação da fotografia e quem, a cada momento, os define? Aqueles que, no auge do «boom» do mercado, procuraram impôr à fotografia os circuitos da «arte contemporânea internacional», promovendo as provas únicas, os grandes formatos, as molduras cenográficas, os neo-picturialismos ditos conceptuais? Os que tentaram decretar, em ocasiões sucessivas, o esgotamento das tradições da fotografia documental, da fotografia de intervenção e do fotojornalismo, reeditando «secessões» fictícias que ignoram o carácter polimorfo das práticas fotográficas? Os que apostam na burocratização das instâncias de legitimação crítica, no controle dos canais da produção e circulação artística, renovando com outros alibis a dependência dos criadores perante as tutelas e os privilégios estatais?
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