"Começar do princípio"
Consolida-se o segundo mercado da fotografia
Expresso/Actual de 10-06-2006
Foto: O II Salão Internacional de Arte Fotográfica de Lisboa na SNBA, 1939 (Anónimo)
Teve uma inesperada projecção na imprensa, com chamadas de primeira página nos diários, o primeiro leilão exclusivamente consagrado à fotografia que se realizou entre nós, no passado dia 1. Mesmo sem contar com recordes mediáticos, foi, de facto, um assinalável êxito, graças à participação de 55 compradores em cerca de cem licitantes inscritos, além do público curioso, a uma percentagem baixa de lotes retirados de praça (71 em 300, ou seja, 24 por cento) e ao valor global das peças adjudicadas (39 mil euros), que se pode dizer elevado, apesar desta verba confirmar a pequena escala, quase íntima, do acontecimento.
Vários tipos de interessados animaram o leilão e fizeram prova pública de que existe um mercado para a fotografia antiga e moderna (a contemporânea circula em geral pelo mercado de arte). Aficionados por curiosidades de outros tempos, investigadores de diversas áreas da sociologia, da história ou da museologia, profissionais de vários ramos do antiquariato, por vezes com relações internacionais, coleccionadores de fotografia de diferentes perfis, privilegiando uns as vertentes documentais, outros as qualidades estéticas das imagens e a notoriedade dos autores (mas as duas orientações podem associar-se com êxito), conviveram activamente na mesma plateia e festejaram com palmas a ocasião. Espera-se que não cheguem demasiado depressa os «investidores» que têm afectado outros circuitos, para que os valores de mercado possam definir-se sem demasiadas pressões especulativas.
Não se tratou de criar ex nihilo um novo comércio, mas de trazer à luz uma realidade oculta que tardava em consolidar-se com a aparição de um segundo mercado informado e competente que, como na área das artes plásticas, é essencial para um funcionamento mais seguro do campo da criação e da circulação de novas obras. Muitos bloqueamentos têm travado o conhecimento da história da fotografia, nomeadamente, os que favorecem a produção de impressões recentes para colecções e exposições, em vez da procura de provas de época (enquanto estas se deixavam destruir ou iam saindo para o estrangeiro). Por outro lado, concentrou-se toda a atenção pública na promoção das novidades do presente (do que, sem retaguarda credível, resulta depressa uma generalizada desatenção) e circunscreveu-se a memória histórica ao breve passado modernizador dos anos 1950/60, decerto brilhante mas de escassa influência, enquanto ficava por conhecer, por exemplo, o modernismo fotográfico que desde cedo o Estado Novo soube utilizar com eficácia.
A partir de agora, mais caixas de fotografias velhas (e álbuns, revistas, postais, etc.) virão à superfície em casos de partilhas, em vez de serem destruídas como trastes inúteis. Com a publicação de um primeiro catálogo, e o conhecimento dos valores propostos e atingidos (que por vezes começavam muito justamente pelos 10-15 euros e noutras chegaram aos 500/600 para provas de especial interesse), surgiram as referências que servirão de orientação para as trocas seguintes. Com a continuidade das vendas públicas (certamente já em Outubro/Novembro, com aperfeiçoamentos vários) mais provas irão sendo atribuídas, datadas e localizadas, e a alguns autores passarão a corresponder corpus de obras conhecidas, sem esquecer que os anónimos (ou ignorados) deram um contributo muito significativo à fotografia, como o MoMA sempre foi provando.
Já existiam coleccionadores, curiosos ou «connaisseurs», que actuavam num mercado insipiente com as vantagens próprias de serem poucos e discretos. Agora é provável que se fortifique a outra componente essencial deste universo, que são, além dos livreiros antiquários, as leiloeiras e os galeristas especializados, conhecedores da especificidade do sector. A seguir, as instituições públicas ver-se-ão forçadas a corrigir a sua já longa história de inconsequência e desperdício - lembremos o polvo administrativo que foi o Centro Português de Fotografia e a confusão em que mergulhou a Colecção Nacional de Fotografia.
Luís Trindade (da empresa Potássio Quatro, iniciada na área da conservação) e Bernardo Trindade (da Livraria Campos Trindade), com a colaboração de Luís Pavão e o apoio de António Barreto e António Valdemar, bem como de uma alargada equipa movida pelo entusiasmo, deram o pontapé de saída. O interesse pela fotografia, que transcende em muito a perspectiva do lucro imediato e fácil, surgiu associado a uma maneira competente de fazer as coisas. Parece haver condições para este começo reunir condições de continuidade.
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