1
EXPRESSO/Cartaz de 05-09-1998
"Retratos de África"
Um espólio colonial em exposição e livro. Uma obra que fez da paixão da fotografia uma experiência de vida e fraternidade
José Henriques e Silva: «Pescadores Macua, Baía de Nacala, Moçambique, 1957-1973»
Exposição no Arquivo Fotográfico de Lisboa, de 31 de Julho a 17 de Setembro 1998
HAVERÁ certamente outros espólios esquecidos em que se depositam as memórias de um país desatento. Mas o que neste caso foi preciso de paixão e espera paciente, finalmente levadas a bom termo, também mostra que o destino fatal será quase sempre a perda definitiva. José Henriques e Silva fotografou entre 1957 e 1973, em Moçambique, e faz parte, portanto, de uma vaga de autores que, nos finais da década de 50, à margem dos salões corporativos e geralmente com discretos percursos individuais, procuraram mudar a fotografia nacional e o entendimento visual da realidade portuguesa.
O encontro com Victor Palla, que agora se ocupou da realização gráfica do livro de J.H.S. e tinha feito em 1959, com Costa Martins, essa obra-prima que foi Lisboa, Cidade Triste e Alegre, confirma a rede de cumplicidades geracionais e identifica a vizinhança de um idêntico olhar humanista.
postal, Edições 19 de Abril (patrocínio CML e CNCDP - 07), 1998
O espólio foi enviado para Portugal no fim de 1974 e entregue em mãos amigas em 79, num total de cinco mil negativos por classificar. Recusados todos os apoios oficiais para o seu tratamento e divulgação, uma primeira selecção de 46 imagens dos «Pescadores Macua da Baía de Nacala» foi exposta no Ar.Co em Outubro de 1983, seis meses depois da morte do autor e por ocasião de uma visita de Samora Machel, embora por iniciativa particular e paga do próprio bolso. <Terá faltado aqui fazer referência a José Luís Madeira - "sem ele este livro nunca teria existido">
Só agora, graças ao apoio do Arquivo da Câmara de Lisboa e à Comissão dos Descobrimentos (em oportuna articulação com a exposição «Culturas do Índico», que explorou outros conceitos de património), Joana Pereira Leite, fiel depositora e animadora do projecto, com Michel Waldmann, o paciente impressor, conseguiram dar por cumprida a missão. A exposição e o livro aí estão, como um dos raríssimos testemunhos visuais da África do período colonial.
José Henriques e Silva (1919-1983), engenheiro civil de profissão, chegou a Moçambique em 1956 e fixou-se em Nacala, trabalhando primeiro na construção do Porto e depois na Base Aérea local. Com a independência, continuou na província de Nampula, ao serviço do novo país - não era por acaso que se lia à entrada da propriedade onde vivia uma placa anunciando o «Regulado Independente Palhota Pai Silva».
A fotografia, para ele, terá sido um «hobby» de amador, um projecto sempre adiado de levar a cabo recolhas antropológicas e, diariamente, um instrumento convivial e mágico da sua relação com o povo moçambicano (uma vitrina no Arquivo mostra retratos idênticos aos que oferecia aos seus modelos e, no livro, uma criança é fotografada mostrando um retrato de grupo). Numa carta de 1981, escreveu: «Há muitas fotos para tirar... temos de saber a origem dos batuques, os nomes do amuletos (...) Quero os nomes e as fotos de todos os instrumentos utilizados, quero o porquê dos penteados, o porquê das pinturas, o porquê dos gestos, o porquê de tudo... vou enfim recuperar o tempo que perdi durante os meus primeiros 23 anos de África.» Hoje, porém, as imagens vêem-se apenas sob o seu título genérico e com uma data imensa que vai de 1957 a 1973, sem legendas que as traduzam em «costumes indígenas» ou lugares e tradições culturais da população macua. É certamente melhor assim, conservando-se nas fotografias a presença vivíssima desse «tempo perdido», em que se sedimentou sem projecto erudito nem alibi artístico uma relação vital com a fotografia e uma comunicação fraternal com o povo dos pescadoes da baía de Nacala.
Para além do seu interesse etnográfico, estas imagens são o instrumento e o seu próprio registo reflexo de uma relação de descoberta e de convivência entre os retratados e o fotógrafo, e também entre culturas, numa simultânea experiência de aculturação. José Henrique e Silva praticava o retrato frontal e espontâneo, sem poses estudadas, feito em exteriores e usando o grande plano com a cumplicidade dos modelos, que olham a câmara que os fixa à altura dos olhos. Mas são também excelentes os retratos de grupo e as cenas colectivas inscritas na paisagem.
Nenhum sinal resta dos inventários de tipos que são frequentes na fotografia colonial e o exotismo dilui-se numa impressão de convivência diária, marcada pelo gosto do humor e uma curiosidade oferecida. Perante os rostos e corpos das mulheres e crianças recobertos pela argila cosmética (o «m'sir» não é uma prática ritual), as infindáveis variações do vestuário feminino, adaptando-se à obrigatória ocultação dos seios, ou as cargas transportadas à cabeça que se vêem como insólitos chapéus, o olhar do fotógrafo é sempre franco e disponível. No silêncio da página sem legenda, as imagens crescem à medida que as olhamos, mudando a ideia do documento pela pura troca de uma relação humana, inscrita na beleza das imagens.
e também:
1983 - Expresso Revista (Cartaz - roteiro) breves notas a 15 (pág. 5) e 22 (pág. 5) Out. 1983.
1988
José Henriques e Silva
Arquivo Fotográfico
Cartaz (nota) de 22-08-1998
Entre 1957 e 1973, J.H.S., engenheiro a trabalhar em Nacala, foi fotografando os habitantes da região, pescadores Macua. Esse espólio, brevemente dado a conhecer em 1983, no Ar.Co, foi agora objecto de uma mais ampla pesquisa por parte dos fotógrafos Joana Pereira Leite e Michel Waldmann, acompanhada com a edição de um álbum, coeditado pelo Arquivo da CML e a Comissão dos Descobrimentos, com «design» de Victor Palla. Mais do que um projecto de observação etnográfica, que não é, sem por isso deixar de ter importância documental, a sua prática amadora da fotografia resulta de um modo de relacionamento aberto e interessado com a comunidade local, que na sua espontaneidade despretenciosa, atenta ao outro e à vida, se identifica calorosamente com o espírito humanista de «The Family of Man». (Até 17 Set.)
2002
José Henriques e Silva
Museu da Imagem, Braga
Cartaz (nota) de 03-08-2002
Engenheiro de profissão, nascido em Lisboa em 1919, chegou a Moçambique em 56 e fixou-se em Nacala. Em 1974 enviou os seus negativos para Portugal, continuando a trabalhar no novo país independente até morrer em 83. As fotografias são um notável documentário sobre a população negra da baía de Nacala realizado em 57-73, sem que resultem de um projecto predeterminado de observação etnográfica. Fotógrafo amador (como aqueles que em Portugal agitaram a fotografia nessa década seguindo as lições dos magazines internacionais), J.H.S. usou a fotografia como um meio de descoberta e de relacionamento com a comunidade local, oferecendo-nos uma observação cúmplice, numa vasta galeria de retratos em que se destaca a presença das mulheres, com as suas maquilhagens de argila (o «m’sir», que não é uma prática ritual) e o vestuário que então se adaptava à obrigatória ocultação dos seios. E também as crianças e as actividades da pesca.
Apresentada uma primeira selecção em 83, no Ar.Co, o espólio foi depois mais amplamente dado a conhecer em Agosto de 98 numa exposição do Arquivo Fotográfico de Lisboa, acompanhada pelo magnífico álbum Pescadores Macua, em co-edição da Câmara e da Comissão dos Descobrimentos, sob a coordenação de Joana Pereira Leite e Michel Waldmann (ver «Cartaz» de 5-9-98). Uma colecção das suas imagens foi, entretanto, oferecida a Moçambique. Depois de apresentar no Norte um grande fotógrafo pouco divulgado, talvez o museu pudesse aprofundar a pista africana, com Ricardo Rangel e os seus discípulos de Maputo. (Até 8 Set.)
2
Sobre José Henriques e Silva
(não encontro qq ref. na história do António Sena)!!!!
copiados lá abaixo...
Ana Soromenho, "O bom colono", Expresso/Revista de 13/10/2001. É um grande perfil biográfico de JHS e a história da divulgação das suas fotografias.
Luiz Carvalho, "Os espelhos mágicos", artigo Expresso/Revista de 8 Out. 1983, p.30-31.*
3
Exposições/edições:
1983 - Exposição José Henriques e Silva, Pescadores Macua / Moçambique, Baía de Nacala 1957 - 1973. Ar.Co, Rua de Santiago, 18, Lisboa. 6 a 28 de Outubro 1983.
70 fotografias PB (de um espólio de cerca de 5 000 negativos)
Joana Tereira Leite, apresentação da exposição, sem titulo, 6/10/83. (Ar.Co)* (folha de sala e/ou de imprensa policopiada)
Convite-postal com fotografia ("Joana Pereira Leite convida para a exposição de fotografia de...")
1998 - Exposição Pescadores Macua / Fotografias de José Henrique e Silva / Baía de Nacala, Moçambique 1957-1973. Arquivo Fotográfico, Rua da Palma nº 246 Lisboa. De 31 de Julho a 17 de Setembro 1998.
Desdobrável com design de Victor Palla:
desdobrável 1998, Arquivo Fotográfico
10 fotografias / postais: Edições 19 de Abril (patrocínio CML e CNCDP)
livro:
JOSÉ HENRIQUES E SILVA, PESCADORES MACUA, Baía de Nacala, Moçambique, 1957-1973.
Coordenação de Joana Pereira Leite, impressão das fotografias de Michel Waldmann, realização gráfica de Victor Palla, impresso na Litografia Tejo, Lisboa. Ed. Câmara Municipal de Lisboa e Comissão dos Descobrimentos. 2000 ex. + 200 (ed.- especial 1-100)
1999, AFRIQUE(S), Musée de la Photographie à Charleroi, tx. Gerges Vercheval, Marc Vausort (Photographie en Afrique, quelques jalons…), com José Henriques e Silva, R. Rangel, S. Santimano. (112 pág.)
2001, 16 de Setembro, no âmbito dos festejos do 30º aniversário do Município de Nacala, "Regresso das fotografias de José Henriques e Silva à baía de Nacala em Moçambique": exposição no Clube de Naharenque, Nacala + exp. em Maputo, na Fortaleza, até Novembro (colecção da Comissão dos Descobrimentos)
2002, José Henriques e Silva, Museu da Imagem, Braga (Jul.-Ago.)
2007, "Pescadores Macua", fotografias de José Henriques e Silva, no Centro de Artes de Sines (Maio-Jun.)
filme
REGRESSO A NACALA, BRIGITTE MARTINEZ, PORTUGAL, DOCUMENTÁRIO, 2001, 52', BETACAM
O objectivo deste filme é utilizar, como fio condutor, as fotografias de José Henriques e Silva feitas durante o período colonial à comunidade macua, que vivia em Nacala, no Norte de Moçambique, traçando em paralelo um retrato actual dessa comunidade.
(ACTUALIZAÇÃO em 24 Out. 2007, em 20 Nov. 2007) / em 22 de abril de 2011
#
Ana Soromenho, "O bom colono", Expresso/Revista de 13/10/2001: copiado de (http://group.xiconhoca.com/2009/01/15/jose-henriques-e-silva-o-bom-colono/ ), agora em: http://tudosobreangola.blogspot.com/2009/01/jos-henriques-e-silva-o-bom-colono.html
"José Henriques e Silva: O bom colono"
José Henriques e Silva chegou a Nacala em 57 para dirigir as obras do porto. Entre o clube de ténis, as festas de batuques e o chá com as senhoras, usava a Leica para fotografar os seus amigos pescadores macua.
Texto de Ana Soromenho
Ali Uacate já pode morrer. Ele tinha dito que estava muito cansado, que não queria viver mais. Pediram-lhe para esperar um ano. Que esperasse só mais um ano, para ver a exposição de fotografias do senhor engenheiro. Então ele prometeu e esperou um ano inteiro. Ali é um homem antigo, tão antigo como o tempo colonial. Ele ainda não entendeu porque é que o engenheiro foi morrer tão longe de Nacala e não foi enterrado debaixo do cajueiro, que é o lugar onde os macuas cuidam dos seus mortos. O engenheiro Silva partiu em 1983, mas o velho cozinheiro continua a não querer acreditar que ele nunca mais volta à praia de Fernão Veloso.
José Henriques e Silva foi para Nacala com 38 anos. Apaixonou-se por esta terra, onde viveu durante 23 anos, e pela sua gente, com quem estabeleceu uma relação pouco usual para um colono branco. Era um homem culto e inquieto, um curioso que gostava muito de fotografar, que andava sempre com uma Leica pendurada no ombro e que, quase acidentalmente, acabou por construir um considerável espólio fotográfico: mais de cinco mil registos a preto e branco sobre os pescadores macuas, os habitantes deste segmento de costa suaíli do norte de Moçambique.
No ano em que chegou, 1957, Nacala não era mais do que uma pequena vila da província de Nampula com meia dúzia de casas em redor da estação de comboio, o único meio de ligação entre a costa e o interior. Nampula fica a cerca de 300 quilómetros. Contam os velhos que viveram naquele tempo que os leões ainda apareciam às portas da vila. Tudo o resto era mato e uma imensa e deslumbrante baía aberta sobre o Índico.
José Henriques e Silva era engenheiro civil e tinha vindo da metrópole para iniciar as obras do porto. Instala-se em Nacala para dar seguimento ao projecto de desenvolvimento da futura cidade. A construção de um porto naquela costa era uma aposta da política colonial, uma obra imprescindível na ligação ao interior, que passaria a garantir o escoamento da produção do norte do país assente nas grandes culturas do caju e do algodão. É num ambiente de pequeníssima sociedade, provinciana e longínqua - Lourenço Marques, a capital, ficava a mais de dois mil quilómetros de distância para sul -, que José Henriques da Silva vai dirigir as obras do porto. Ele pertence à élite dos engenheiros, frequenta o clube de ténis, os chás das senhoras, participa nas tricas dos pequenos acontecimentos mundanos de uma sociedade bem instalada nas colónias e que a seu modo também reproduz o estilo de vida que os portugueses praticavam em África.
O grande crescimento da cidade, que teve início com as obras do porto e com a instalação da fábrica de cimentos de Champallimaud, faz-se sentir na década de 60. Quando a guerra em Moçambique rebenta mais a norte, na província de Cabo Delgado, constrói-se em Nacala a base aérea que passa a funcionar como retaguarda militar de apoio à guerra colonial. José Henriques da Silva também participa nas obras do novo aeródromo militar. A vinda dos militares e das respectivas famílias dá um novo fôlego à vida da colónia. Na encosta que desce sobre a grande baía de Fernão Veloso começa a edificar-se a nova cidade com os típicos complexos de habitação de traçado modernista, os arruamentos largos e as novas avenidas que rasgam a paisagem africana e dominam sobre as praias de coral.
O «Silva», como lhe chamavam os amigos, era casado com uma portuguesa de quem teve dois filhos. A família divide o tempo entre Nacala e Portugal e ele passa longas temporadas sozinho. Longe da actividade das obras de engenharia e da vida social constrói uma casa na praia, uma palhota em madeira e «makuti», como as casas dos africanos, típicas daquela região. Este lugar, junto ao mar, foi o seu refúgio de fim-de-semana e de longas temporadas isoladas da vida citadina. Era aqui que tinha os seus livros, as revistas que assinava e o mantinham em contacto com a cultura europeia, era onde lia o «Le Monde» e escutava a Radio France. Mas, mais do que lugar de eremita, a casa da praia - cuja placa com a irónica indicação «Regulado Independente Palhota Pai Silva» ainda hoje se mantém - era o lugar de transição entre dois mundos que não se tocam e por onde o engenheiro Silva circula com o olhar curioso de fotógrafo branco, fascinado pelos gestos e pelos rituais daquele povo litoral, tão particular, da África islamizada que são os macuas.
A fotografia acabará também por funcionar como um motivo de aproximação ao universo dos pescadores e da sociedade macua. Fotografando, ele atravessa essa fronteira. Para além de um olhar meramente documental ou etnográfico, o espólio de José Henriques e Silva revela uma intimidade nos registos quotidianos pouco usual na fotografia feita sobre o mundo africano na época colonial. Sempre que pode, de madrugada e ao fim do dia, o fotógrafo está na praia, recolhe imagens, observa, entra quanto pode naquela vida.
Chehane Omar, 45 anos, conta, por exemplo, o encontro que teve com «senhor engenheiro» quando ainda era um rapaz e trabalhava nas obras do porto. Vivia ao pé da praia, a mesma para onde hoje aponta com o dedo, ali foi o lugar da história: «Ele andou uns dias a observar-me e depois chamou-me para me perguntar se eu sabia pescar. Eu fui trabalhar para a casa e pescava para ele. Quando ia fotografar, levava-me sempre. Eu carregava as máquinas e falava com os pescadores para lhes dizer o que é que tinham de fazer.» Chehane mima os gestos de José Henriques e Silva com a câmara à frente dos olhos. Mostra as dunas de areia dura e o modo como o engenheiro tinha andado dias inteiros a observar e fotografar aquelas rochas até descobrir um ribeiro que levava a água doce à praia. Depois lembra-se das festas com os tocadores de batuque que «Pai Silva» organizava, aos sábados, e dos almoços de cabrito para os quais convidava os pescadores a aparecerem depois das sessões de fotografias. Também conta o fascínio do fotógrafo pelas mulheres macuas, as que cobriam a cara e o corpo com o pó branco que lhes deixava a pele mais sedosa. Silva foi apanhado por esse ambiente de sensualidade africana e, rapidamente, criou uma cumplicidade pouco usual para um branco na comunidade dos negros muçulmanos.
Ainda hoje, Ali Uacate, o cozinheiro que o serviu durante todo o tempo em que Silva permaneceu em África, mora na casa que o engenheiro lhe construiu na antiga estrada de Fernão Veloso. Ele está sentado à sombra de um cajueiro centenário, levanta-se e vem ao nosso encontro rodeado de mulheres. Não sabe a idade que tem. Mas lembra-se, como se fosse hoje, do dia em que o engenheiro o convenceu a tirar a carta de condução porque o tempo colonial tinha acabado. Foi ele, inseparável do «senhor engenheiro», quem lhe ensinou os costumes de África, e só foi aprender a guiar porque o patrão se ia embora e ele nunca mais iria querer servir alguém. Durante os anos da guerra civil, na década de 80, todos os dias Ali Uacate percorreu a estrada entre Nacala e Nampula na coluna militar, para fornecer de gasolina a empresa onde trabalhava, e todos os dias viu gente a ser atacada pelos homens da Renamo. Nunca lhe aconteceu nada. E é por isso que acredita que alguém o protegeu no céu. Estava cansado e não queria viver mais. Mas, mesmo assim, esperou. Esperou porque a Joana lhe tinha prometido que as fotografias dos «Pescadores Macua» iriam voltar à praia de Fernão Veloso.
Joana Pereira Leite, hoje economista e fotógrafa, foi para o Norte de Moçambique quando fez seis anos. Toda a sua infância se cruzou com o engenheiro Henriques da Silva com quem estabeleceu uma amizade muito particular. Mais tarde, já adulta, irá herdar todo o espólio fotográfico dos «Pescadores Macua». Lembra-se de Silva aparecer na casa de Nacala, à hora do chá, sempre cheio de histórias e novidades sobre a vida dos colonos: «Tinha um sentido de humor muito particular e toda aquela mundanidade colonial o divertia. Andava sempre de máquina fotográfica, registava tudo, depois brincava com os negativos e construía histórias muito engraçadas sobre aquele universo dos brancos de Nacala.» Eram os tempos em que o Silva a levava no Volkswagen a entrar pelo mato dentro, naquele mundo indefinido a que os brancos não acediam. «Ele enchia o banco de trás com fotografias, ia pela estrada fora, e então entrava por aquelas estradas de terra vermelha impossíveis de penetrar. Entrava a buzinar, os amigos aproximavam-se e ele ia distribuindo fotografias. Levava-me sempre. De manhã ia-me buscar e eu passava o dia na praia dele quando estava a fotografar. Foi um grande privilégio porque eu comecei a aperceber-me desse mundo, que era muito diferente. Nós éramos extremamente urbanos e ele deu-me a conhecer uma outra dimensão africana.»
Só muito mais tarde, já depois da independência de Moçambique e um ano antes de regressar a Portugal, em 1978, é que Henriques e Silva toma consciência do seu trabalho fotográfico junto dos macuas da costa suaíli, os pescadores da baía de Fernão Veloso. Tinha já começado enviar todos os negativos a Joana Pereira Leite que, entretanto, já estava em Lisboa. Juntos elaboram um esboço de um projecto documental sobre os macuas. Num testamento informal faz um apelo emocionado: «Estive 23 anos em Moçambique e verifico que o que fiz não foi realizado completamente. Agora, que não tenho possibilidade de voltar, é que constato o muito que ficou por fazer (…) Nacala sempre foi a minha base. Se alguém tiver a possibilidade de alguma vez lá voltar, que se dirija a Fernão Velozo e procure os nomes que vou citar. Esses sim, darão bons elementos se falarem no meu nome.»
Poucos anos depois de escrever este testemunho, José Henriques e Silva volta a Moçambique. Samora Machel convida-o a ir trabalhar para Nacala como responsável pela construção das novas estradas. Silva regressa em Janeiro de 1982. «Ele volta para preencher as lacunas do trabalho fotográfico sobre os pescadores porque toma consciência do material que tem em mãos e quer terminar esses trabalho», diz Joana Pereira Leite. Durante algum tempo mantém uma correspondência com a amiga na qual descreve, emocionado, o seu encontro com as gentes de Fernão Veloso. Um ano depois de ter regressado a Nacala, José Henriques e Silva volta subitamente para Lisboa. Está gravemente doente e vem morrer a Portugal.
Durante os anos que se seguem à morte do amigo, Joana Pereira Leite fica depositária dos negativos e tenta organizar o material fotográfico que tem em mãos, de modo a poder mostrá-lo em Nacala. Ainda em 1983, organiza uma primeira exposição no Arco, em Lisboa, quando Samora Machel visita Portugal. Em 1992, quando a guerra civil termina, volta a Nacala para saber se os amigos de Silva ainda estão vivos e, nessa altura, entrega uma colecção ao Arquivo Histórico de Moçambique. Em 1998, quando a Câmara Municipal de Lisboa se interessa pelo espólio, em parceria com a Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), no âmbito do projecto Culturas do Índico, realiza-se uma exposição composta por 150 fotografias e um livro, cujo trabalho gráfico foi criado pelo fotógrafo Vítor Palla. É a partir dessa altura que começa a desenhar-se a possibilidade de uma exposição «Pescadores Macua» para ser mostrada nas praias onde José Henriques e Silva as fotografara.
Em Setembro deste ano, na antiga praia de Fernão Veloso, que agora se chama Neherengue, os pescadores macuas puderam ver as fotografias tiradas por José Henriques e Silva há mais de vinte anos. Junto ao mar construiu-se um espaço ao ar livre em madeira e «makuti». Este encontro, planeado por Joana Pereira Leite, comissária da exposição, e financiado pela Comissão dos Descobrimentos, foi um momento de festa simples e comovente, onde os amigos do fotógrafo reviveram a passagem de um tempo delicado e povoado de memórias.
Só duas décadas depois da morte do fotógrafo, quando regressa a Nacala para realizar um documentário, é que Joana Pereira Leite toma conhecimento das circunstâncias da morte do amigo: «Em 1982, quando regressa a última vez a Nacala, Silva acredita que vai voltar a viver em Moçambique. Só que já não é possível. Ele apercebe-se disso num dia em que está a acompanhar as obras da barragem, a 30 quilómetros de Nacala, e chama a atenção para o trabalho que está mal feito. Os trabalhadores não aceitam a ordem de um branco. Mandam-no embora, dizendo-lhe que o tempo colonial acabou. O Silva fica extremamente chocado. Tem consciência de que não se pode alterar a história. E, no fundo, era isto que ele seria sempre: um bom colono». É a partir desse momento, que o engenheiro Silva fica profundamente deprimido. Abandona o carro na barragem e volta para Nacala a pé. Anda 30 quilómetros, vai para a sua casa da praia e depois isola-se. Não quer ver ninguém. Ali Uacate, encontra-o sozinho e doente e percebe que o patrão quer morrer naquele sítio, junto do seu cajueiro ao pé dos pescadores. in: Expresso
#
Luiz Carvalho, "Os espelhos mágicos", artigo Expresso/Revista de 8 Out. 1983, p.30-31:
Começava por dar os parabéns por este espaço que aqui tem. Gostei tanto que o tenho nos meus preferidos.
Aproveitava para tentar saber qual a editora desta obra Pescadores Macua, Baía de Nacala, Moçambique, 1957-1973» e se sabe se ela se encontra á venda ou se é material esgotado.
Obrigada desde já
cs
Posted by: cs | 05/20/2007 at 14:56
A edição (2000 exemplares + 200 para o autor/a autora - aliás - do projecto), datada de 1998, foi da Câmara Municipal de Lisboa e da Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Existirá ainda nas livrarias da CML?
Posted by: ap | 05/25/2007 at 13:59
O livro encontra-se ainda à venda no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, por 17,46 €.
Posted by: ap | 05/31/2007 at 18:57