GUSTON EM CONTEXTO - Até ao regresso da figura, de Manuel Botelho
edição Livros Vendaval, 2007
Prefere-se entre nós a escolástica. Pega-se num tópico teórico encontrado num qualquer autor em moda, cita-se uma bibliografia à volta e bordam-se umas elucubrações suficientemente ilegíveis para passar por inteligentes e inéditas. Usa-se em geral uma prosa penosamente emaranhada, que passa por ser qualificação académica.
Manuel Botelho fez tudo ao contrário. O seu livro, que é parte da tese de doutoramento defendida em 2005, é um livro para ler - e com muito interesse de uma ponta à outra. Está muito bem escrito e é capaz de tornar empolgante o relato, centrado na figura de um grande pintor norte-americano, de algumas das grandes aventuras e rupturas do século XX. É história e é romance e é ao mesmo tempo atravessado pela reflexão sobre grandes questões que se continuam a pôr aos artistas - a ambição de intervir criticamente, na sua própria obra, face à sociedade; a independência perante os estilos colectivos e a insatisfação quanto às fórmulas pessoais estabilizados (o que é ainda mais raro).
Guston (1913-1980) é um dos mais interessantes artistas do século XX, desde os anos 30 até aos anos 70, e é-o nos seus três grandes períodos criativos, radicamente diferentes mas atravessados por uma determinante coerência de vida e de produção artística: a figuração interventiva do seu período de juventude e formação, ao tempo da Depressão e do New Deal, associada à mobilização internacional contra os fascismos, e que a Guerra Fria viria depois a ocultar; a abstracção expressionista da chamada Escola de Nova Iorque e, por fim, o regresso pioneiro a uma figuração renovada, ao mesmo tempo crítica e irónica, narrativa, com algumas referências ao cartoon e de uma grande originalidade formal. Ninguém atravessou como ele esses três tempos, à revelia das fixações de fórmulas e rótulos.
Não vale a pena procurar Guston numa história obscuratista como a do bando dos quatro (Foster, Krauss, Bois e Buchloch), onde a aparência esquerdista cumpre o muito habitual serviço de domesticação. Ele só é citado por faltar numa foto dos "Irascíveis" em 1951 e a propósito de Baselitz, na certamente desprezível companhia de Bacon e Freud - outra vez "a problemática insistência na figuração, a reactivação do dilema do Picasso pós-1915 no contexto específico da arte europeia do pós-guerra" (!). Está-se mesmo a ver que interesses políticos serve esta hostilidade à acção-epresentação da figura humana, e esta hostilidade é meio caminho andado para saber que se trata de um artista de primeira importância.
Manuel Botelho estabelece o curso da obra e da carreira de Philip Guston em ligação estreita com a história do seu tempo, mesmo que ele não seja sempre um protagonista até ao anos 60 e à sua ruptura com o expressionismo abstracto.
É muito novo, na década de 30, com 17-18 anos (colega e amigo de Pollock, oriundo da costa Oeste), que se associa aos muralistas mexicanos (em especial Siqueiros e Rivera - então os exemplos máximos de uma possível grande arte americana) e que participa nos programas de "arte pública" das instituições oficiais do New Deal. Mais do que pela militância partidária, Guston distingue-se por uma pintura muito interessada pelo Renascimento, informada pelo Picasso neo-clássico e também por Guernica, que viu em 1939 ao mesmo tempo que descobria a obra de Max Beckmann.
MB, "O Grande Masturbador", 2004
É um período histórico mal conhecido por razões políticas posteriores (a difícil memória do contexto prévio à II Guerra, o estalinismo e a Guerra Fria) e também por razões estéticas: só recentemente se repôs Hopper à altura de Pollock e se colocou em causa a habitual ideia de progresso vanguardista vs. conservantismo em arte. Também foi costume usar o fantasma do regionalismo reaccionário de T. H. Benton e Grant Wood para fazer esquecer a importância do realismo social progressista de Ben Shahn.
Interessa pouco qualificar como recuada a pintura de Guston dos anos 40, como se os valores do formalismo de Greenberg fossem historicamente indispensáveis. E como se o último período de Guston não viesse comprovar a necessidade de reabrir caminhos e de recuperar a legitimidade de anteriores ambições entretanto condenadas.
O livro de Manuel Botelho é também um livro de artista, através do qual (e através da obra de Guston) se reconhecem os seus próprios interesses e dilemas. A intenção interventiva e política marcou directemante o início do seu trabalho e continuou sempre presente enquanto memória figurativa e comentário do presente, até aos seus trabalhos mais recentes. A relação com Guston, quer com o pintor abstracto quer com o regressado à figuração narrativa, reconhece-se também de diferentes formas na sua própria obra de pintor.
Os poderes políticos autoritários e os seus emblemas, ou até alguns dos seus rostos (Salazar e Hitler, ou a aliança operario-camponesa soviética), presentes na exposição "Rigor Mortis" continuam essa vontade de intervenção e comentário.
Guston é genial, sim, se os "quatro" não vêem problema deles, mas, por amor de Deus, Arikha ???
Posted by: C Vidal | 05/27/2007 at 13:58
Usando o find confirmei que não chamei genial ou génio ao Guston, nem ao meu muito estimado Avigdor Arikha, pintor e erudito (e amigo de Giacometti, Beckett e Cartier-Bresson, que me deu a conhecer um pintor ainda mais irreverente e menos conhecido: o Rackstraw Downes). Os pintores ignorados e os que incomodam (muitas vezes acumulam) são quase sempre os mais interessantes.
Genial é uma palavra que poderia ter usado de forma coloquial, ou polémica, mas não me parece de grande vantagem o seu emprego noutras condições.
E obrigado pela visita.
Posted by: ap | 05/27/2007 at 14:24
Sintetizando.
De facto, não disse que o meu caro amigo tinha falado em genialidade, ou usado a palavra "génio". De qualquer modo, creio que ela pode ser empregue além da coloquialidade e da polémica. Não devemos ter medo dessa grande proibição, dominante mas em decadência caricata, que é o labirinto do jargão "lacaniano-pós-estruturalista-desconstrutivista". Este labirinto proibiu, como sabe, a palavra génio, como a palavra "mestre". Mas este ridículo jargão está em decadência não só por si mesmo, mas também por si mesmo, e por acção de autores lúcidos que se aperceberam da inutilidade de discursos tão formatados. E um autor dotado despreza discursos formatados.
Por isso (sem pretensões), usei a palavra génio. Por outro lado, os ignorados e esquecidos são hoje um espaço de grande interesse para mim .... mas sobretudo na música. Por cegueira ou defeito de formação visual quiçá, tenho uma floresta que adoro de esquecidos na música e não tenho (tantos) na pintura: esquecidos são aqueles que ou estão esquecidos ou então são lembrados por "uma só coisa": Leoncavallo, Francesco Cilea, Umberto Giordano (o seu "Chénier" foi tão interpretado até 50s e agora desapareceu dos teatros), Ottorino Respighi, Smetana, Elgar, etc, etc. Dizer "eu adoro Berlioz" tem um efeito mais retumbante do que dizer "eu adoro Gounod", ninguém profere esta última , acho eu, podendo proferir a primeira. Entrar nesta "floresta" é tão entusiasmante quanto entrar em certas florestas de coroados pela história.
E na pintura, quem teríamos ??
Posted by: C Vidal | 05/28/2007 at 17:04