“Pintores da vida moderna”
Expresso/Cartaz de 13-09-1997 , pp. 18-19
The Pop’60’s – Travessia Transatlântica
Centro Cultural de Belém
A escala da exposição é inédita entre nós, ou quase. E o gigantismo está, neste caso, associado à originalidade de um propósito que não se cumpriria numa versão sintética. Com mais de 240 obras e a representação de 87 artistas, ocupa toda a grande nave inferior do CCB e espaços anexos nunca utilizados, numa sequência de mais de 15 salas por onde se distribuem núcleos dedicados à produção dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da Europa continental.
Marco Livingstone, especialista da Pop britânica e terrenos afins, não se limitou a repetir o panorama que apresentou em 91 na Royal Academy e teve circulação por Bona e Madrid: propõe uma leitura da década de 60, os anos Pop, que amplia as antologias anteriores, atribuindo mais espaço à arte continental, e afina a revisão crítica global do movimento, deixando os atalhos mais trilhados para prestar também atenção a artistas menos favorecidos pelo estrelato (por exemplo, o californiano Wayne Thiebaud, o inglês Colin Self, o americano-europeu Peter Saul, os italianos Baj e Gnoli...).
Essas opções podem até assegurar à mostra do CCB uma projecção internacional. Mas há também que lamentar a pobreza do catálogo quanto a textos analíticos e dados históricos. A paridade entre texto e imagem, habitual em projectos deste tipo, não tem ainda cumprimento nacional — a aposta no «look» em prejuízo do conhecimento continua a imperar. Um segundo óbice deve ser referido, sem deixar de reconhecer-se a excelência do acontecimento e o esforço do CCB: as instituições portuguesas têm dificuldade em obter empréstimos de certas obras de primeira escolha que seriam essenciais para estabelecer prioridades: entre outros casos, o lugar fundador de Jasper Johns e Rauschenberg não fica bem marcado. Importa destacar, no entanto, que a exposição tem origem na Colecção Berardo (45 obras cedidas) e esta é um capital que pode vir a alterar os relacionamentos internacionais.
Em termos gerais, a exposição pretende e consegue mostrar que a Pop Arte não foi um estilo definido por qualquer programa canónico, nem uma corrente com origem e fronteiras precisas, escapando assim às versões simplistas que a subordinam ao restrito conjunto nova-iorquino formado por Warhol, Lichtenstein, Rosenquist, Wesselmann e Oldenburg. Pode admitir-se que eles, ou os dois primeiros em especial, tenham sido mais Pop que todos os outros, até porque arte Pop é uma classificação convencional que numerosos artistas não aceitaram nem aceitam e, num âmbito mais sociológico, porque a afirmação da Pop coincide com a extensão do modelo americano da sociedade da abundância (o consumo de massas, a Pop music e a cultura juvenil, etc), após a recontrução europeia que se seguiu à Segunda Guerra. Mas o processo de que eles podem ser a expressão «típica», a partir de 1962-63, tem origens mais recuadas (desde meados dos anos 50) e expressões distribuidas, praticamente em simultâneo e antes de se encontrar um título para o fenómeno, pela Inglaterra, a França e as duas costas dos Estados Unidos.
A Pop foi, de facto, um movimento aberto e contraditório nas suas direcções — mais um ambiente que um movimento, nunca um «estilo colectivo» — que veio reintroduzir na produção artística dita de vanguarda elementos e referências do quotidiano, as imagens e os objectos da vida corrente, opondo-se à predominância do expressionismo abstracto norte-americano e às abstracções lírica, informal ou geométrica, na Europa, e, em geral, a um entendimento formalista da modernidade como desenvolvimento linear do qual se excluia o que não é redutível a tal «progresso». Por exemplo, um Hooper que a retrospectiva de 64 no Whitney fazia redescobrir como o grande pintor da vida moderna americana, afinal com uma distância da sentimentalidade heróica do expressionismo abstracto comparável à que propunha a Pop de Lichtenstein e Rosenquist.
Esse processso de reaproximação ao real, que voltava a reequacionar as questões da representação mas que não era um realismo tradicional, parte da atenção à nova realidade da sociedade de consumo e a uma vida urbana onde imperam as imagens da publicidade e do «design», da televisão e do cinema popular, da banda desenhada e da comunicação de massas — ou seja, de uma realidade que era remetida para o domínio do «kitsch» e desqualificada como cultura popular. Por isso, a Pop seria recebida por grande parte da crítica da época como «uma arte de analfabetos» (Michel Ragon, em França), ou um «estilo estúpido e desprezível dos ruminadores de pastilha elástica...» (Max Kozloff, citado no catálogo), ao mesmo tempo que era popularizada pelos magazines, com uma projecção nunca antes conhecida por qualquer corrente artística.
Voltando-se para a cultura popular e urbana, utilizando as imagens e os objectos de consumo como expressão e referente de uma nova realidade colectiva (e usando-as directamente como material de criação, mudança determinante), a Pop é um novo realismo e constitui um momento vertiginoso de questionamento de fronteiras e hierarquias entre a arte e a vida. Circulando entre a arte erudita (de elite e de vanguarda) e uma arte popular consumida pelas massas, recusada como não-arte. Que nesse confronto ou rebaralhar de dados muitas das obras Pop se identificassem como anti-arte e possam surgir hoje como episódios circunstanciais, esse é um dado corrente em tais situações de ruptura, tal como ocorrera sempre que a vida moderna (de que falava Baudelaire) abalou o espaço sacralizador da alta cultura e a idealidade das artes academizadas — com Manet e os impressionistas, com a incorporação de modelos de culturas não europeias (Van Gogh e Gauguin), com a descoberta da «arte negra» por Picasso e outros primitivismos sucessivos, e também com as escolas realistas de certo modo mais próximas da Pop, a Ashcan School (caixote do lixo), na América do início do século, ou a Kitchen Sink Scool (pia de cozinha), que já nos inícios de 50 se associou à geração dos «Angry Young Men».
Novo realismo foi precisamente a designação adoptada pelas primeiras exposições que reuniram, em Paris e em Nova Iorque, artistas dos dois continentes, antes de se vulgarizar a expressão Pop, mediática abreviatura de popular. Mas a expressão «pop art» tinha sido inventada em Londres para designar expressamente a arte popular da rua e da cultura de massas (a publicidade, os «comics», etc) e não designava, à partida, as obras que nelas se inspiravam (vejam-se as reedições dos primeiros trabalhos de Hamilton e Paolozzi, afinal inspirados na colagem surrealista).
Observar-se-á nas obras expostas que a Pop é um movimento que oscila permanentemente entre pólos opostos e de importância equivalente: o estilo da pintura comercial, que é fotográfico, mecânico, impessoal, frio e distanciaciado (não emocional nem gestual, como é a pintura expressionista e informal) e, em oposição, a continuidade do tratamento pictural da imagem, conservando as marcas de um fazer manual, que prolonga a gestualidade expressiva da abstração não-geométrica e de práticas realistas (Bacon e Diebenkorn, por exemplo). Mas convém também sublinhar que essa recusa da emocionalidade e da pincelada visível, o gesto pictural, não é uma característica exclusiva da Pop: encontra-se nos retratos de um Alex Katz (não incluido) e logo a seguir no fotorrealismo, na abstracção cromática e «hard-edge» de um Kelly (de que está muito próximo Robert Indiana, exposto no CCB), e também na produção Op e minimalista que lhe é praticamente contemporânea.
Em questão neste ponto está a oposição entre as leituras críticas que patrocinam o fim da pintura, ou o estreitamento «progressivo» dos seus recursos, e a opção contrária que defende a permanência sempre renovada da sua tradição. A primeira leitura, volta a ser uma abordagem formalista, redutora e puritana, que transforma a Pop numa breve etape a caminho do minimal e do conceptual, até à chamada desmaterialização da arte. A exposição, ao tornar evidentes o pluralismo das atitudes (e ao valorizar Larry Rivers e Jim Dine, Hockney e Kitaj), põe em causa essa concepção finalista.
Uma segunda importante oposição no campo da Pop diz respeito ao conflito entre uma possível sujeição admirativa perante os ícones da cultura da abundância (as «stars», o automóvel, a coca-cola, etc) e, por outro lado, a afirmação de atitudes críticas perante a «american way of life» como expressão da dominação capitalista. A fronteira atravessa o campo nova-iorquino, embora a posição crítica tenha mais intensidade produção continental, em especial nos «nouveaux réalistes» e de novo na «figuração narrativa» mais tardia que se associa ao clima contestatário e anti-capitalista da década.
Na pretensa neutralidade de Warhol lê-se a obsessão com a morte, Oldenburg constrói uma visão irónica da banalidade quotidiana, Rosenquist usou a sua pintura como denúncia da tecnologia militar, com o admirável F-111 que é mostrado no CCB em versão de gravura e teve digressão mundial no contexto da escalada do Vietnam
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