Inaugurado o Museu Berardo em Sintra Francisco Capelo começa a falar no Museu do Design. O projecto é então o de ir para a Gare Marítima de Alcântara, para onde estivera prevista uma extensão do Museu do Chiado, entretanto posta de parte...
A estreia do Museu do Design foi no Expresso, e tratava-se então de "pressionar" uma solução rápida
EXPRESSO/Revista, de 20 Junho 1997, p. 84-92
"Um museu para o Design"
A colecção está reunida e o edifício já foi adaptado a um destino museológico que não se concretizou. Francisco Capelo propõe inaugurar antes da Expo
Depois de inaugurado o Museu Berardo — oficialmente, Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo — está já na calha outro museu. O acervo a expor existe e o espaço também, falta apenas a decisão política de anunciar a instalação do Lisboa Museu do Design na Gare Marítima de Alcântara. O assunto está em estudo.
Francisco Capelo, que escolheu e adquiriu as obras da Colecção Berardo, interessa-se há muito pela área do «design» e foi reunindo, mais aceleradamente nos últimos tempos, uma colecção pessoal que já ultrapassou as três centenas de peças, documentando toda a evolução internacional desde os anos 50 até à actualidade. (320 peças segundo um inventário recente, incluindo umas 30 que fazem parte da colecção doméstica.)
Chegou a pensar apresentá-lo como um departamento de «design» articulado com a colecção de arte, seguindo o modelo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e do Museu de Filadélfia, pioneiros nesta matéria, mas as condições físicas do antigo Casino de Sintra não o permitiriam. A hipótese geograficamente próxima da Quinta da Regaleira foi também equacionada, antes da respectiva Câmara ter exercido o seu direito de opção. Outras propostas de acolhimento do Museu de Design têm vindo de autarquias limítrofes, mas Francisco Capelo tem-nas recusado.
Considera que a Gare Marítima de Alcântara é o espaço ideal para instalar o Museu do Design, sublinhando o exemplo de um homónimo museu londrino, também instalado nas docas. Público já existe na zona do Porto de Lisboa, ocioso e certamente disponível, e haveria toda a vantagem, na opinião de Francisco Capelo, de alargar a oferta actual (bares, restaurantes e espaços de lazer) com a atracção de uma proposta cultural compatível. Segundo o seu projecto, o Museu deveria mesmo ficar de portas abertas até à meia noite, pelo menos durante os meses com bom tempo. Diz Francisco Capelo: «O público jovem acorre naturalmente a esta zona, está lá, não é preciso criar o público, trata-se de criar o Museu para este público potencial».
A GARE ESTÁ LIVRE
Tal como a colecção, o edifício da Gare Maritima encontra-se, de facto, disponível. Está, aliás, exactamente à espera de um projecto condigno que permita concretizar o acordo estabelecido em 1995, ainda na vigência do anterior Governo, entre a Administração do Porto de Lisboa (APDL) e o Instituto Português de Museus (IPM), no quadro do reoordenamento da zona ribeirinha (o POZOR). Pensava-se então em instalar em Alcântara uma extensão do Museu do Chiado, que passaria a constituir um seu segundo pólo especialmente vocacionado para a apresentação de exposições temporárias e para acolher obras que prolongassem o horizonte temporal limitado na «sede» por razões de espaço. A inauguração esteve prevista para o primeiro semestre de 1996.
A ala esquerda do edifício da Gare Marítima dispõe de 700 metros
quadrados de espaço útil no rés-do-chão, mais 500 no primeiro piso, uma
área de restaurante, outra de gabinetes, mais uma razoável zona para
reserva de obras e ainda uma extensa varanda exterior sobre o Tejo. O
corpo central, decorado pelos painéis de Almada Negreiros, continua sob
a alçada da APDL, mantendo a vocação portuária, mas prevê-se que fique
assegurado o duplo acesso e a possibilidade de utilização pelo museu de
um auditório aí existente. Na ala direita da Gare permanece um
bar-restaurante privado.
Logo em Fevereiro desse ano, mudado o Governo, o ministro da Cultura reafirmou a intenção anterior e chegou mesmo a assinar um outro protocolo que assegurava o acolhimento em depósito naquele local das obras da colecção de arte contemporânea da Fundação Luso-Americana. Por razões ou hesitações que não vêm ao caso, mas com as obras de adaptação do edifício praticamente concluídas, o projecto não mais avançaria.
O alargamento necessário do Museu do Chiado ficou assim comprometido, mas também, com futura vantagem, reorientado na direcção dos espaços vizinhos que servem a Polícia e o Governo Civil (falta desencadear uma grande campanha cívica para pôr termo a essa ocupação). Por outro lado, o recém-criado Instituto de Arte Contemporânea não tomou posse das galerias de Alcântara para levar a cabo uma eventual programação de exposições próprias (que seria certamente excedentária dada a proximidade do CCB). Feitas as obras de fundo para adaptar o emblemático edifício de Pardal Monteiro às suas novas funções museológicas, o acordo de cedência de longa duração firmado entre a APDL e o IPM estaria em risco de perder-se.
Também por isso, o projecto do Museu do Design parece surgir como uma certeira solução para aquele espaço, propondo o enfoque museológico de uma área estranhamente esquecida, o impreciso mas essencial domínio em que se encontram a indústria e a arte, a «alta cultura» e a produção de massa, no quadro da sociedade do consumo. Como se sabe, a estética industrial foi uma questão aberta pela revolução industrial, e o «design», como conceito genérico, ideologia e especialização profissional, impôs-se plenamente com o desenvolvimento económico que se seguiu à segunda Guerra Mundial — sobre o artesanato, as «Art and Crafts», as artes decorativas e artes aplicadas, fórmulas resistentes aos novos conteúdos do «desenho industrial».
A crise de 1929 e o génio de Raymond Loewy e Norman Bel Guedes, entre outros fioneiros, abriram caminho, na América, à estratégia de um novo optimismo-consumismo utópico, algo distanciada do vanguardismo reformista da Bauhaus, na Alemanha. «O design industrial torna os homens felizes, os produtores prósperos e dá trabalho aos designers» era a mensagem do «best-seller» de Loewy, A Fealdade Vende-se Mal. A seguir a 1945, a reconstrução das economias e das cidades vinha impor com uma nova determinação os méritos da produção em série e do racionalismo do estilo internacional, sobre as ruinas das tradições nacionais do comércio do luxo.
ANTES DA EXPO
Diz Francisco Capelo: «A colecção reunida pelo Lisboa Museu do Design ultrapassa já as 300 peças e continua em desenvolvimento, com aquisições de novas peças em todo o mundo, de molde a posibilitar uma visão cronológica da criação no âmbito do mobiliário e da decoração, visão só possível quando finalmente exposta num espaço de natureza museológica.
"As peças de "design" reunidas pela colecção do Lisboa Museu de Design permitem percorrer os últimos 50 anos, procurando neste caminhar pelo tempo revelar a permanente tensão entre a função e a forma, entre o respeito pelos materiais e a liberdade de criação, liberdade essa crescente, em resultado das grandes inovações tecnológicas ocorridas na esfera da produção e da criação e manipulação dos materiais».
Mais uma vez, é graças à iniciativa privada, e em condições que se afiguram extremamente vantajosas para os poderes públicos do ponto de vista orçamental, que surge a oportunidade de uma alteração decisiva do panorama museológico nacional. Agora numa área de importância estratégica, com consequências sobre o universo da produção económica, já que o design não se encerra no terreno restrito dos critérios formais, articulando-os pelo contrário com as questões da produção industrial, das práticas de consumo, da comercialização, das modas e do uso (funcional e simbólico) dos objectos. Aliás, entre os equívocos de Serralves, a justificar parcialmente o pouco empenhamento mecenático dos industriais do Norte (recolheram-se testemunhos directos sobre o tema), conta-se o desinteresse manifestado pelo futuro museu portuense em abrir uma linha de acção nestes terrenos que excedem as «belas-artes» e as artes decorativas, ligando a arte e a vida... — estavam à vista os exemplos dados pela modernização estratégica do tecido produtivo da Galiza, nos terrenos da moda, do mobiliário, da arquitectura, etc.
Num texto elaborado para divulgar o seu projecto através do EXPRESSO, Francisco Capelo afirma: «À semelhança da solução encontrada pela Colecção Berardo em conjunto com a Câmara Municipal de Sintra, propõe-se a constituição de um consórcio entre a entidade proprietária da Colecção de Design e a entidade proprietária ou titular do espaço na zona do Porto de Lisboa, sendo da responsabilidade do consórcio a gestão do novo espaço museológico.»
Adiante, Capelo considera que a experiência do Museu de Sintra «permite-nos estimar os custos de uma estrutura leve mas adequada em cerca de 75 mil contos por ano, incluindo segurança, electricidade, água, telefone e encargos com o pessoal». No cálculo de custos e benefícios, entram, naturalmente, valores de bilheteira, serviço de restaurante, oferta de serviços (nomeadamente visitas e jantares de empresas) e também «merchandising».
Acrescenta Francisco Capelo: «Dado o nível de peças que já integram o Lisboa Museu do design, a Colecção poderia constituir-se em Museu de imediato. Contudo, a preparação do catálogo, da loja e a instalação das áreas de exposição exigem pelo menos um prazo de quatro meses. Caso se pudesse avançar num prazo relativamente curto, era possível dotar Lisboa e aquela área de um novo museu antes da Expo 98». É este o «timing» proposto («da parte da Colecção, tudo faremos para responder a este desafio»); falta conhecer o tempo de resposta dos poderes públicos. Mas o desafio de Francisco Capelo foi desde o início bem acolhido pelo ministro da Cultura e também a tutela do Porto já se manifestou interessada.
MOBILIÁRIO E DECORAÇÃO
Entender-se-á o «design» como uma área menor na hierarquia dar artes, imprópria de um projecto de museu? Seguramente, não. No entanto, é significativo observar a importância praticamente exclusiva que ainda têm no sistema museológico nacional as artes decorativas que precedem o «design» industrial, por exemplo nos Museus de Arte Antiga, do Azulejo e do Traje, enquanto o único museu vocacionado para a área do mobiliário, o da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, se restringe à produção dos séculos XVIII e XIX.
(Neste como em outros sectores, parece ter ocorrido em Portugal uma paragem no tempo, um fechamento perante as transformações do presente e, neste caso, uma incapacidade para pensar a evolução dos consumos e das tecnologias. A essa imobilidade, voltada para o património e a erudição «desinteressada», avessa ao tempo presente, estará associada, como se torna particularmente evidente no caso da produção industrial de que as diferentes dimensões do «design» se tornaram componente indispensável, a incapacidade da renovação não só das mentalidades como da competitividade das próprias estratégias de produção.) Tal como no caso da arte contemporânea internacional, é de preencher um vazio que se trata, e essa vontade, segundo Francisco Capelo, justifica a orientação pedagógica da colecção.
O campo do «design» não é, apesar dos equívocos possíveis, o campo da elegância e de luxo, da decoração acessória, do mobiliário excêntrico que parece esquecer-se da função a satisfazer, do gadget doméstico cuja inutilidade consumista se esconde sob a originalidade formal. A transformação dos modelos de fabrico artesanal sob as novas condições de produção e consumo de massa, a adaptação das tecnologias de fabrico industrial (a automatização, a miniaturização, a informática), a utilização de novos materiais e de novos meios mecânicos (os laminados, as novas ligas metálicas, os vidros, plásticos e fibras sintéticas, etc), a importância das teorias da forma e da semântica dos produtos, da aerodinâmica, da ergonomia e, mais recentemente, da ecologia (o actual «design» verde) são factores que estabelecem o campo de actuação do «designer», como autor de projectos, de programas de produção e de estratégias de venda, num campo que era antes o da criação artesanal do luxo ou da permanência das formas tradicionais. O que caracteriza a estética industrial é a integração do pensamento artístico na estrutura do objecto ou produto considerado. Uma intervenção que se alarga do conceito à fabricação e ao marketing — incluindo a programação da obsolescência dos produtos e, por vezes, a sua crítica.
É por isso muito vasto o universo do «design», que corresponde hoje a todo o campo infinito dos objectos do quotidiano. Da publicidade ao grafismo, passando pelo «lettring», da moda no campo do vestuário à proliferação dos electrodomésticos, dos veículos de transporte aos instrumentos da comunicação, o âmbito possível de uma colecção de todo o «design» ultrapassaria as fronteiras práticas da capacidade de um edifício e da disponiblidade do visitante.
A colecção centra-se no domínio do mobiliário, que foi para os arquitectos e «designers» do século XX (ainda antes da generalização do conceito de «design») a expressão mais emblemática das suas opções estéticas, sociais e ideológicas. Através da evolução do móvel e, mais especificamente ainda, da cadeira, pode traduzir-se por inteiro a proximidade que existe entre o «designer» industrial e as correntes estéticas preponderantes, bem como o surgimento de novos materiais e processos técnicos. Mas outras produções industriais ou objectos de consumo entram igualmente no acervo reunido por Francisco Capelo, como os candieiros e os vidros dos anos 50, e mais genericamente alguns produtos industriais que documentam a transformação dos objectos industriais em objectos de consumo de massas: os electrodomésticos desenhados para a Braun, a máquina de escrever portátil da Olivetti, a televisão Televia de caixa plástica, etc. o automóvel Fiat, a Vespa, o sofá-cama, o aspirador. o primeiro sofá-cama de Zanussi, com o tecido original, das primeiras peças, nos pequenos
Francisco Capelo diz que «após a abertura do Sintra Museu de Arte Moderna existe a necessidade e a possibilidade de demonstrar, tal como acontece nos grandes museus da América do Norte, a articulação que existe entre a arte do século XX e o "design", graças a uma colecção que reune objectos e peças representativas da criação no domínio do mobiliário e da decoração». Trata-se, acrescenta, de «mostrar como a a arte no sentido estrito (em particular a pintura e a escultura) e as chamadas artes decorativas são fruto de um mesmo impulso criador e ambas reflectem a época e as conjunturas em que foram sendo criadas.»
O Museu terá início em 1945, como sucede actualmente com a colecção de Sintra, e essa data corresponde, como se viu, a decisivas alterações do universo considerado. Seguindo os modelos do Vitra Museum alemão e do Museu do Design Londres, será «um bom pequeno museu» centrado na evolução do mobiliário, mas com marcações complementares oriundas de outras áreas
Na colecção, a raridade não é procurada por si mesmo, e alguns protótipos e peças únicas juntam-se a peças comercializadas em pequenas edições e a outras cuja produção industrial continua. Como critérico de decisão, F. Capelo aponta a escolha de autores seminais, os criadores de tendências e peças que souberam acrescentar algo a partir da utilização de um novo material.
candieiro de castiglioni, lâmpada mole como uma serpente domesticadaStossas e Pesce
peças mais caras ascendem a dez-15 mil contos e outras à ordem das centenas de contos
QUATRO ÉPOCAS
Para apresentar o projecto do museu, F. Capelo sistematiza a sua colecção em quatro grandes grupos de peças, correspondentes a sucessivas mutações sociais, tecnológicas, económicas e estilísticas.
No pós-guerra, poderá observar-se um primeiro momento dominado pelo espírito funcionalista manifestamente hostil ao supérfluo e à ornamentação que é exemplificado por obras de Jean Prouvé e Charlotte Perriand, herdeiros do espírito da Bahaus, e ainda com Charles Elmes. Ao mesmo tempo, manifestam-se outras tendências que procuram maior liberdade da expressão, com forte preesença em Itália, no culto das formas orgânicas por Carlo Molino, usando a madeira curvada para dar formas eróticas não figurativas ao mobiliário, ou na obra singular de Piero Fornaseti.
«A flexibilidade anunciada já nos anos 50 vai ser fortemente acentuada com a utilização do plástico e a influência no imaginário ocidental da aventura espacial», prossegue Francisco Capelo. O segundo grande grupo de peças.
É um panorama que vai desembocar no final dos anos 50 em dois processos decisivos: a vulgarização da tecnologia do plástico e o desenvolvimento da sociedade de consumo nos países da europa ocidental. Os anos 60 ligados ao optimismo, que o plástico permite em termos de liberdade de trabalho, e vai ter na aventura espacial uma espécie de ideologia futurista. O momento sintese é bem apresentado com a linha Olivier Mourgue, os vestidos metálicos de Paco Rabanne
A crise aberta pelo aumento do preço do petróleo vai determinar uma segunda metade dos anos 70 dominada por um regresso à economia e à racionalidade dos meios, longe dos excessos permitidos pelo optimismo pop dos anos 60. Esta tendência conservadora é contrariada por peças de autores como Gaetano Pesce, Mendini, Frank Gehry, Shiro Kuramata, Andrea Branzi e os grupos Archizoom e Studio Alchimia.
Já nos anos 80, as novas condições económicas e os movimentos no campo das artes plásticas propiciaram o desenvolvimento de um activo mercado para pequenas edições de peças de mobiliário e decoração, surgindo um conjunto de criadores que actua independentemente das grandes empresas de produção. Este «boom» da criação, individualista e anticonvencional, identificou-se inicialmente com a vulgarização do pós-modernismo. A colecção integra um vasto conjunto de peças do grupo Memphis, fundado em Milão à volta de Ettore Sottsass e também de outras tendências classificadas como «barrocas» que redescobrem o ornamento, a cor e as relações simbólicas, revisitando todos os estilos do passado e do mundo. (Peças de André Dubreuil, Tom Dixon, Martin Szekely, Patrick Nagar, Dan Friedman, Garouste e Bonetti, Mireille River e ainda de Philippe Stark, entre outros.)
Entretanto, já há também designers portugueses presentes na colecção: Pedro Silva Dias, Francisco Rocha, Souto Moura, Leonaldo Almeida, Filipe Alarcão, Fernando Salvador, com peças de mobiliário "anos 80" em edições limitadas da Loja da Atalaia. Sem esquecer a cómoda e o candieiro de Siza Vieira.
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