"Dois pólos"
Colecção Berardo - CCB e Sintra Museu de Arte Moderna (Até 30 de Abril)
EXPRESSO/Actual de 05-02-2000
O FACTO de a Colecção Berardo ser agora mostrada em dois locais diferentes não é só uma ocasião para avaliar melhor a sua extensão e importância - existindo ainda, aliás, numerosas obras que por limitações de espaço, por serem já conhecidas ou outras razões não se encontram expostas (perto de 200, a somar às cerca de 400 apresentadas). Não menos significativa é a oportunidade de apreciar e pôr em comparação as duas diferentes estratégias de montagem que foram aplicadas à mesma colecção. O CCB apresenta uma exposição mais vasta, mas a mostra do Museu de Sintra, onde se encontram peças de primeira qualidade e aquisições recentes exibidas em estreia, não é de modo algum um pólo secundário. Para o visitante, fazer a experiência, física e reflexiva, das duas montagens não será apenas adicionar obras a mais obras.
No CCB optou-se por seguir um alinhamento cronológico de períodos e movimentos a partir de 1917, apresentando as artes plásticas do séc. XX como uma narrativa em grande medida linear, embora aberta a situações de tensão, como a que opôs as correntes da abstracção geométrica ao surrealismo, a momentos de concorrência, no caso do segundo pós-guerra na América e na Europa, bem como a acidentes de percurso, oscilando a criação entre aparentes avanços e recuos, rupturas e continuidades. Esse critério corresponde à orientação estruturante da colecção, que teve a ambição de ilustrar «a história» do século (de facto, não existe uma história, há histórias).
Não seria possível nem justificável montar em Sintra uma segunda cronologia paralela, mas a solução encontrada por Maria Nobre Franco, directora do Museu, é muito mais do que um recurso ou um complemento. Ao fragmentar-se a exposição em três secções temáticas autónomas - «Objecto e Paisagem», «Forma e Espaço», «Figura e Narrativa» - contando basicamente com peças dos anos 60 até ao presente, mas sem as alinhar por datas e escolas, o espectador é convidado a confrontar-se com as obras, a observá-las, antes de lhes aplicar a grelha explicativa da sequenciação histórica. Descobrirá que idênticos temas e interesses (ou mesmo géneros, livremente entendidos após a diluição dos códigos académicos, como a natureza-morta, a paisagem, o retrato) atravessam diferentes linguagens, e que cada conjuntura, movimento ou autor se reencontra, para além da especulação formal, mais ou menos inventiva, com continuidades profundas que justificam a necessidade da arte e afastam dela a ideia do progresso.
O «puzzle» que é a montagem de cada sala não é uma dispersão aleatória, mas um calculado exercício de aproximações e contrastes, que propõe comparações e situações de diálogo, eventualmente contraditório.
Logo no primeiro espaço os objectos apropriados (e não ilusoriamente representados) por Spoerri e Arman - «novos realistas» - coexistem com a adopção de linguagens representativas tomadas à banda desenhada e ao desenho técnico por Patrick Caulfield e Craig-Martin, em obras que recusam a distinção convencional das «Belas-Artes» (Lisa Milroy faz o percurso inverso usando um catálogo de lâmpadas como exercício de pintura), enquanto Arakawa substitui objectos por conceitos. José Barrias evoca a natureza-morta como género tradicional através de uma montagem de objectos sobre uma mesa elevada, num monumento de câmara que se prolonga em teatro de sombras. Logo a seguir, com a mala do viajante, de César, entra-se na área da paisagem, que está presente como mapa em Joaquim Rodrigo e Kitaj (itinerário pessoal e comentário geopolítico), que é natureza neo-romântica em Christopher Le Brum, cidade urbanizada com Philippe Cognée e espacialidade abstracta com Richter.
Ao lado, o corredor retoma a natureza-morta com um Fautrier de 1924-25 (que é exemplo de um expressionismo ausente da colecção), com uma Composição de Herbin (39), num momento de regresso à figuração (a confrontar com a abstracção da mesma data no CCB), com o Morandi de 43 - seria possível continuar até ao presente, com Arikha, por exemplo.
De novo a paisagem, na sala seguinte. Urbana e fotográfica com Gursky (Happy Valley), memória de um itinerário e deslocação de elementos naturais com Long, a sua transformação e simbolização por Alberto Carneiro, a pintura depois da fotografia de Paul Winstanley. O inventário de monumentos industriais dos Becher, a paisagem estelar de Ruff.
No espaço simétrico a criação plástica segue uma outra tradição moderna, afirmando-se autónoma face à representação objectiva (e subjectiva também, quase sempre). Não é mais «avançada» por isso. A área organiza-se em torno do recentemente adquirido Relevo, Ritmos, de Robert Delaunay (1932). É uma peça preciosa, na qual a ambição decorativa e monumental dos grandes murais dos últimos anos do pintor se concentra num pequeno formato onde a forma óptica e mecânica do disco se constrói com cores ritmadas de intenso dinamismo.
No piso de cima, o retrato tem uma sala própria e volta a surgir em peças de outros núcleos. Como, com Balthus (35), na magnífica galeria onde se mostra a tela de Bacon, outra peça central da presente montagem. Édipo e a Esfinge «d'après» Ingres (83) é uma pintura rara na sua obra, que quase sempre se impediu as referências literárias ou o teor narrativo, por concessão aos interditos que pesavam sobre a «ilustração».
Outras conjunções de peças criam, por exemplo, situações de curioso confronto entre as ex-novas figurações dos anos 60 e os «regressos» à figura dos 80, ou já dos últimos 90, pondo em questão os ciclos curtos da atenção mediática e a dependência das produções face às conjunturas. Noutros casos (com Helena Almeida e Gormley), a encenação favorece a interrogação das obras.
Poderia desejar-se que o átrio de entrada propiciasse desde logo o cruzamento entre as três direcções temáticas. Pode discordar-se da localização reverencial atribuída à «assemblage» de detritos de Louise Nevelson, como se se tomasse à letra o revestimento dourado, ou questionar-se um ou dois momentos de percurso, ou a importância de uma ou outra obra. Mas a montagem global é francamente bem conseguida e tem a qualidade adicional de incluir um razoável número de artistas portugueses (a que Maria Nobre Franco esteve ligada como galerista), quase sempre em situações de inteira igualdade.
Já a montagem do CCB, onde se exigiria ao critério cronológico uma aplicação inteligente e sem falhas, dá lugar a numerosos equívocos e à indiferenciação de obras e artistas menos classificáveis, em situações balizadas por títulos de salas e de textos didácticos de variável adequação («Vanguardas Russas», «Vanguardas no Centro da Europa», «Dada e Surrealismo», «Abstracção-Criação», «Nova Pintura Americana», «Depois da Guerra», etc.).
É certo que esteve prevista a direcção de Francisco Capelo, que entretanto se afastou da colecção, levando ao adiamento da mostra, mas teria sido conveniente recorrer a um especialista, provavelmente estrangeiro, em vez se fazer uma tal ilustração prática do Princípio de Peter. Margarida Veiga, arquitecta e directora do Centro de Exposições, não está à altura de uma tarefa com esta complexidade.
Há dificuldades inerentes à colecção. O construtivismo de Popova e Lissitzky, em 17, é um começo arbitrário (provisório?), que hipervaloriza a descendência da «esculto-pintura» de Archipenko e do suprematismo de Malevitch, isolando-a tanto de um contexto «revolucionário» mais amplo com múltiplos pólos anteriores (cubismo, abstracção de Kandinsky, contrastes de formas de Léger e contrastes de cores de Delaunay, Mondrian, Kupka, etc) como do panorama dito «reaccionário» dos regressos à ordem (Picasso, Matisse, Léger, Chirico...) e dos realismos de intervenção política (Nova Objectividade, «Arte Progressista», etc.) que sucedem à 1ª Guerra. Em larga medida, o discurso vanguardista com que a colecção se apresenta nas primeiras salas do CCB, incluindo a larga representação surrealista, corresponde à exploração de nichos de mercado mais acessíveis, pelos quais o activismo de algumas margens se substitui ao caudal mais fundo.
O que o espectador corre o risco de ver como um alinhamento escolar de tendências será melhor entendido se for explorado como um «puzzle» ou um labirinto, descobrindo-se que em cada aparente série se incluem obras únicas onde se manifestam diferentes linhagens ou pesquisas.
Os primeiros Moholy-Nagy na sala Dada só estabelecem confusão, mas o respectivo núcleo poderia incluir o desenho Contre: Nature-morte de Robert Michel (1921), a colagem «merz» de Schwitters, mesmo que seja de 33, as colagens de fotografias de Vordemberg-Gildewart, Arp e a pintura Sem Título de 1926. Depois, é errado mostrar aquele Chirico (de 1928!) entre surrealismos, tal como acontece com Picasso e González, que estabelecem cruzamentos entre diferentes orientações.
O vasto espaço dedicado à vulgarização internacional do surrealismo continua até integrar o exílio nos Estados Unidos, em 39-40, dos artistas europeus (e sul-americanos de formação europeia, como Matta e Lam), para marcar a respectiva influência no que iria ser chamada a Escola de Nova Iorque. Estão lá Pollock e Basiotes, mas Tobey e Gottlieb só aparecerão muito depois.
Exigir-se-ia uma outra disposição, através de paredes paralelas e não de compartimentações por salas, para entender como o movimento Abstraction-Création segue um processo de síntese crescente entre dogmas geometristas e o biomorfismo que explora ritmos orgânicos, sugestões figurativas e referências surrealistas (Arp, Domela, Hélion, Moore). Aí devia estar a peça de 33 de Torres Garcia, uruguaio de formação espanhola e «construtivista universal». Meteram-no mais adiante entre a «Nova Pintura Americana», com Tobey e Gottlieb, mas já ao lado de Guston e Twombly, de Joan Mitchell e Sam Francis, pelos anos 50 fora, e aí está também o inglês Anthony Caro, com uma peça de 71. No catálogo (um mono!), o conjunto chama-se «Influências Noutros Países», o que não tem qualquer sentido.
O espaço segue com a segunda geração da Escola de Nova Iorque, mas incluindo mais escultores ingleses, Turnbull e Tucker, já contemporâneos da Pop. A estação seguinte, porém, volta muito atrás e chama-se «Depois da Guerra», agregando europeus de diferentes caminhos. Teria sido possível e útil confrontar Hartung, Soulages, Vedova, Bram van Velde, Riopelle, Dubuffet e os artistas Cobra com os norte-americanos do mesmo período...
A colecção e o espectador resistirão. Vale a pena chegar à zona final e encontrar uma produção recentíssima que tem sido pouco mostrada em Portugal, onde a rarefacção e a desmaterialização ainda ocupam demasiado discurso. A representação é mediática, em vários casos de promoção Saatchi («Sensation», «New Neurotic Realism»), mas tem uma intensidade vibrante e convulsiva que é salutar na viragem do milénio.
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