O MACE (Museu de Arte Contemporânea de Elvas) está para inaugurar dentro de dias, ou semanas (foi marcada a inauguração para dia 6 de Julho).
Vai apresentar a colecção de António Cachola, econ0mista e empresário da região que assegurou com a respectiva Câmara Municipal o seu depósito por 13 anos.
Anunciado para 2005, no antigo hospital da cidade, um edifício central do séc. XVII, adquirido pela CME e reabilitado para o efeito (arq. Pedro Reis e João Regal, designer Filipe Alarcão) com fundos comunitários, o Museu vai ter com director João Pinharanda, que foi também o comissário da primeira apresentação pública da colecção, em 1999, no Museu de Badajoz.
Sobre a exposição escreveu-se então o que vai adiante.
(Outras informações: "Museu - A arte na fronteira", por Miguel Judas, Visão, 16 Setembro 2004 / "João Pinharanda dirige Museu de Elvas, a inaugurar em Maio", por Vanessa Rato, Público, 15 Novembro 2006)
"Colecção de fronteira"
EXPRESSO/Cartaz de 04-12-1999, pág. 22
Apresentação de uma colecção de Campo Maior dedicada à arte jovem. Particular e pública, pessoal e comissariada
Colecção António Cachola – Arte Portuguesa anos 80-90 / Museu Estremenho e Ibero-Americano de Arte Contemporânea - MEIAC, Badajoz / 26 Novembro 1999 - 15 Janeiro 2000
NÃO é frequente que se dê a conhecer publicamente uma colecção particular. Ao contrário das de empresas e instituições, as colecções privadas são a expressão de um gosto ou de uma paixão, naturalmente pessoal, que quase sempre só vem a público após a morte do coleccionador, quando este acautelou o risco da dispersão ou, em alternativa, no catálogo do leiloeiro. Em geral, evoluem com o tempo, crescem pacientemente, reorientam ou apuram as escolhas, libertando-se de interesses passageiros e perseguindo algumas jóias talvez um dia enfim acessíveis, num processo intimista, preservado pela discrição ou mesmo o segredo. Em certos casos, mais frequentes no mundo anglo-saxónico, acabam a sustentar o património de grandes museus (e por isso eles são grandes) e a respectiva memória vai dando o nome às suas salas. Será essa uma imagem ultrapassada de colecção?
A que se mostra em Badajoz é uma colecção recente, reunida por um gestor de Campo Maior, António Cachola – duplamente atípica, portanto, por se ter constituído em muito poucos anos (mais de três quartos das obras datam de 97, 98 e 99) e por tão cedo se apresentar a público. É uma colecção dedicada à produção de jovens artistas portugueses (34 na exposição), acompanhando a actualidade imediata através desse segmento específico que é o terreno das afirmações de novíssimos nomes e das continuidades e eventuais consolidações de nomes algo menos novos, convivendo assim com o presente enquanto este se anuncia ou se faz. Não é exactamente o que se diz no subtítulo «Arte portuguesa anos 80-90», porque esta é feita também por artistas menos jovens ou mais velhos, como sempre o foi a arte de qualquer época; será a arte emergente, a arte jovem dos anos 80-90.
Ao dar-lhe visibilidade imediata e ao fazê-lo em Badajoz, assegurando-lhe dimensão internacionalizável, ou transfronteiriça, pelo menos, é verosímil que ao gosto ou paixão do coleccionador se tenha associado a estimável intenção de intervir civicamente numa zona deprimida do país, distanciada da circulação cultural portuguesa e confrontada com a modernização das cidades espanholas próximas. É provável igualmente que à colecção venha a ser dado, a breve prazo, um espaço de exibição pública permanente, prolongando essa intervenção cívica e cultural na região sob alguma fórmula institucional que assegure a condição particular da colecção e o seu projecto de crescimento.
Entretanto, nesse trânsito entre privado e público, será ainda observável a marca, o gosto, a paixão do coleccionador, identificável como um olhar pessoal e um interesse próprio, de certo modo também criação autoral e assinatura, presumivelmente diferente de outras colecções particulares e institucionais? Ou nesse movimento do coleccionismo particular ao Museu, sob a forma imprecisa de uma exposição comissariada, ter-se-á aberto um processo de intermediação que substitui a marca, o gosto, a paixão do coleccionador pelo desígnio profissional do especialista, eventualmente arrastando efeitos de despersonalização e igualização, para transformar um acervo pessoal num possível balanço da arte actual ou jovem?
Deixada a questão em aberto, porque a resposta não é totalmente do domínio público, refira-se que o coleccionador António Cachola se iniciou no coleccionismo da arte actual com um envolvimento pessoal e directo, procurando o relacionamento com os artistas, visitando-os nos ateliers, escolhendo ele próprio as obras que adquiria e aprendendo nesse exercício. A perspectiva da exposição, depois localizada no MEIAC e coadjuvada pela escolha de um comissário, João Lima Pinharanda, veio acrescentar uma outra dinâmica à colecção, mais recentemente, no sentido de serem colmatadas alegadas faltas e conferir-lhe um critério presumivelmente mais «panorâmico» e museológico.
Do que se pode observar no Museu de Badajoz depreende-se a positiva identidade de uma colecção de risco, feita de escolhas que, em muitos casos, mais e menos recentes, não poderiam acautelar-se sob a caução de eventuais consensos, incluindo apostas em emergências recentíssimas de artistas cujas obras escolares não puderam ainda confirmar-se em continuidades de trabalho. Observa-se igualmente a convivência, outra vez positiva, de um bem visível gosto pela pintura, que se continuou e se renova nos anos 90 com jovens artistas como Fátima Mendonça, Rui Serra, Marta Soares e Susana Campos, bem como com outros mais velhos, presentes ou ausentes, com o interesse, a acentuar aquela marca de risco, por outros «media» menos habitualmente coleccionados, como o desenho (Alexandre Conefrey, Pedro Gomes, Gil Amourous, e também larga atenção a desenhos de escultores), o vídeo (João Onofre) e diferentes processos de instalação (Rui Toscano, Hugo Guerreiro) – embora, como é muito comum, a fotografia seja limitada ao seu sector «plástico», excluindo os fotógrafos que usam a arte para apenas acolher os artistas, e putativos artistas, que usam a fotografia.
Entretanto, as condições de montagem, atribuíveis mais directamente ao Museu e ao comissário, ficaram penalizadas por evidente falta de espaço e criaram ou não acautelaram notórias situações de desigualdade entre artistas, que surgem muito irregularmente representados e alguns deles aquém do que permitiam as existências da colecção. Bastará, certamente, a pintores cujas obras possuem uma presença afirmativa e autoria forte que apenas uma peça os represente, enquanto as impropriamente chamadas «novas linguagens» e os autores que jogam na diluição da ideia de autoria poderão carecer de exemplificação multiplicada, mas o efeito global torna-se desequilibrado, talvez parcialmente orientado.
Por exemplo, Fátima Mendonça, Ana Vidigal, Ilda David, Pedro Portugal, Gil Amorous e Rui Serra têm duas obras (e três os dois últimos) reproduzidas no catálogo, mas só uma em exposição (no caso da primeira com uma inaceitável troca de título – trata-se de Casa do Desarranjo I); já Pedro Casqueiro, José Loureiro e Marta Soares têm, de facto, excelentes obras únicas na colecção. Com duas ou mais peças, por vezes a consumir espaços injustificadamente desmesurados, surgem Sofia Areal, João Onofre, Joana Vasconcelos, Patrícia Garrido, Fernanda Fragateiro, configurando certamente uma opção crítica do comissário, por hipótese mais consonante com outras mostras que organizou do que com o teor da colecção, pelo que o próprio catálogo dá a conhecer.
Simultaneamente, Rui Sanches, José Pedro Croft, Manuel Rosa, Rui Chafes, Pedro Proença, Xana e também João Queiroz têm alargadas representações individuais, também em geral de peças recentíssimas, com que se estabelece na exposição um muito significativo peso geracional «anos 80». De entre estes, o destaque pessoal vai para as presenças de Proença e, em especial, de Xana, pela qualidade dos trabalhos e a raridade da sua presença pública.
No catálogo (mas não na montagem) a colecção organizou-se em três tópicos universalmente válidos e geralmente intercambiáveis, o que lhes assegura eficácia escolar e alcance limitado: «Imagens do corpo», «As determinações do lugar», «Linguagem e decoração». Não sendo «temas» que orientem a colecção, tornam mais evidente a ausência da palavra do coleccionador, em directo ou através do inquérito às suas descobertas ou afinidades e do possível (breve) historial das aquisições, enquanto sobram as generalidades teorizantes. Por exemplo: «Historicamente, e de modo esquemático, deixou-se o vídeo, a fotografia e a instalação dos anos 70 pela pintura e a escultura dos anos 80; a pintura foi posta em causa nos anos 90, período onde fotografia, vídeo e instalação regressam como meios privilegiados de representação; mas, nestes anos finais de década, século e milénio, a pintura parece regressar às preocupações de alguns artistas mais novos». E se se olhassem menos as vagas e mais os artistas, as resistências às modas, as diferenças e os ritmos longos?
Por citar, por acaso ou por variadas razões, ficaram as presenças de Ana Pinto, Ângela Ferreira (uma Marquise de 1993 com a respectiva documentação fotográfica, que continua a ser das suas peças mais atraentes), Luís Campos, Miguel Ângelo Rocha, Miguel Palma, Noé Sendas, Patrícia Gouveia (um CDRom) e Pedro Calapez. Colecção particular e ensaio panorâmico de vocação institucional, compromisso entre um acervo concreto e uma atitude crítica atenta à sucessão das conjunturas, esta exposição deve ser valorizada também como mais um gesto de um museu espanhol e estremenho muito atento à arte portuguesa mais jovem, numa acção continuada que excede a da generalidade das instituições nacionais.
(Foto: Xana, pintura-escultura de parede, sem título, 1997)
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