A propósito de Fairfield Porter, por ocasião da exp. de Robert de Niro Senior. (Como é diferente o mundo em NY.
Propus uma vez a um museu a ideia de uma exp. diferente, de quatro norte-americanos desconhecidos ou pouco vistos. Claro que não interessavam. Eram Porter e Downes, mais Alice Neel e Wayne Thiebaud - ou Richard Diebenkorn?)
NOVA IORQUE "Contra a corrente"
EXPRESSO/Revista de 18-06-2000
Quatro artistas ingleses e norte-americanos em Nova Iorque, com exposições em galerias e obras em museus. Com Freud, Kossoff, Porter e Downes comprova-se que alguns pintores menos mediáticos, que foram trabalhando contra as tendências dominantes e observando o mundo, têm um lugar de grande importância na arte do final do século
Fairfield Porter, «The Mirror», 1966 (Nelson-Atkins Museum of Art, Kansas City)
Há vários mundos no mundo da arte de Nova Iorque, como em qualquer
outra grande cidade. Nenhum ponto de vista único pode aspirar a uma
síntese do que ao mesmo tempo acontece ou se mostra, e diferentes
observadores encontrarão diferentes pretextos para propor visões
divergentes e sempre parcelares de um mesmo panorama plural.
Lucian Freud, Leon Kossoff, Rackstraw Downes e Fairfield Porter não
são artistas jovens ou descobertas recentes que alimentem a actualidade
jornalística. São todos figuras isoladas com itinerários diversos e
geralmente discretos, e não podem ser associados a um mesmo grupo ou
tendência.
O primeiro tem 78 anos e é, depois da morte de Bacon, o mais
proeminente pintor inglês; o último morreu em 1975. São artistas pouco
conhecidos, raramente mostrados fora dos circuitos anglo-americanos, e
as suas obras nunca se prestaram a tornar-se populares. São pintores de
obras extremas e contra a corrente, alheios aos programas colectivos
das vanguardas e de uma radicalidade incompatível com a circulação
mediática. Mas é provável que a mediatização e a massificação da arte,
ou mesmo a chamada democratização, exijam sempre a simplificação das
obras e a mediocridade.
As suas exposições individuais são raras, e por isso a coincidência em Nova Iorque tinha um impacto acrescido. As mostras de Freud e Kossoff prolongam-se, em Junho, em galerias de Londres, e ambos têm presença destacada nas novas montagens das Tate's Britain e Modern, inspiradas pela oposição dita pós-moderna ao modernismo formalista. A de Kossoff estende-se ao Metropolitan Museum até 14 de Agosto, com uma série de gravuras realizadas sobre quadros de Poussin, que também se mostrou no Museu Getty e no Los Angeles County Museum (é um dos máximos circuitos possíveis para um artista vivo); os três outros estão incluídos na exposição «Making Choices», no largo sector intitulado «Arte Moderna apesar do ('despite') Modernismo».
Este núcleo da revisão do século feita pelo MoMA, focada nos anos 1920-60 mas vindo até ao presente, propõe um novo olhar sobre muitos artistas que, como refere o catálogo, foram remetidos para «o caixote do lixo da história» - as mudanças de século têm imprevisíveis consequências. O objectivo é mostrar que arte moderna e modernismos não são a mesma coisa e que o séc. XX viveu uma oposição constante entre programas de vanguarda ou de ruptura e práticas que retomavam aspectos da tradição, ditas antimodernistas e retrógradas, muitas vezes protagonizadas pelos mesmos artistas. No entanto, a mostra evitar aprofundar drasticamente essa tensão para, mediante uma acelerada fuga em frente, favorecer a ideia de que à modernidade teria já sucedido a era pós-moderna, construída, essa sim, sobre a recusa dos imperativos e interditos modernistas.
Lucian Freud e a chamada Escola de Londres (Bacon, Kossoff, Auerbach, Hockney, Kitaj - e também Paula Rego, que não é citada mas vem sendo apontada como o seu mais destacado prolongamento recente) seriam para Robert Storr o mais coerente e consistente pólo do que chama a «contra-revolução estética», associando uma classificação política a vários dos maiores artistas do presente. No ensaio do catálogo, situa o cerne dessa «antivanguarda» no primado do desenho (na companhia do Picasso neoclássico, Giacometti, Balthus, etc.) e, em especial, na prática do desenho do natural (de observação ou «from life», segundo a expressão inglesa), recuperando por essa via o fantasma do academismo.
As mostras individuais apresentavam quatro pintores figurativos que se poderão chamar realistas pelo seu interesse na representação do mundo, todos eles ligados pela necessidade de trabalhar a partir da observação directa do modelo humano, da paisagem urbana e natural. A conjunção será ocasional, mas seria fácil encontrar coincidências e prolongamentos em outras mostras de jovens artistas, em Nova Iorque ou em Lisboa, onde o interesse pela paisagem e a disciplina do desenho estão decididamente presentes.
A exposição de Lucian Freud na galeria Acquavella, com obras realizadas desde 1997, foi a última antes da retrospectiva que a Tate prepara para 2002, por ocasião dos seus 80 anos. Não é um artista ignorado: o Centro Pompidou apresentou-o em 1988, o Rainha Sofia em 94 e a Tate Gallery mostrou algumas obras recentes em 98. Uma tela destacada da individual de Nova Iorque está até 1 de Julho na galeria White Cube, em Londres - a exposição de um só quadro sublinha a raridade da obra.
Nascido em Berlim, neto de Sigmund Freud, chegou a Londres quando o terror nazi, em 1933, deixava de ser apenas uma ameaça. As primeiras obras foram associadas ao rigor gráfico da Nova Objectividade alemã dos anos 20 e ao clima de angústia psicológica da II Guerra, interpretado pelo existencialismo. Essa inquietação, construída com a subtil deformação de pormenores físicos desenhados com a precisão de Ingres, foi depois deixando de ser lida como um comentário histórico datado, ao mesmo tempo que a mestria do desenho linear (e de uma pintura lisa e de cores inexpressivas) dava lugar a uma tensão pictural inscrita como que na dificuldade de representar.
Depois, não variou substancialmente a sua obra, nem alargou os respectivos temas para além do universo privado do «atelier», entre retratos de parentes e amigos, modelos nus repetidamente pintados, e uma ou outra vista sobre o jardim ou as casas próximas. O enfrentamento com o real observado, cada vez mais o corpo de um modelo tão despido como o cenário fechado do estúdio, tornava-se uma interrogação renovada em cada tela. A pintura ganhava espessura material, deixava visíveis as pinceladas e as acumulações empastadas, adensando-se por vezes em camadas quase esculpidas, construindo um corpo em carne viva que não é cópia ou ilustração. Em anos mais recentes, surgiram figuras fisicamente disformes e desmesuradas, montanhas de carne excessiva, em ângulos de observação abruptos, perversos, que devassam o corpo nas suas pregas, rugas e veias, com uma presença perturbante dos sexos expostos, fazendo da máxima crueza com que é vista a nudez dos corpos e dos rostos um desafio à banalização corrente das imagens.
A par desse excesso, que se prolonga, surgem agora pinturas mais apaziguadas, por vezes de execução rápida (lembrando Avigdor Arikha, outro nome maior), em grandes e pequeníssimos formatos, com nus menos cruéis, retratos menos severos, vistas de jardim em perspectivas de pássaro, cenas insólitas com vários personagens (um corpo oculto sob a cama, um homem que parece amamentar um bebé - lembrando Paula Rego, que o tem por mestre maior), um velho cadeirão solitário e inesperadas variações a partir de Chardin, que estão agora expostas na National Gallery de Londres. Fotografado no catálogo por Cartier-Bresson, Freud é uma medida de exigência no final do século.
Kossoff é uma figura mais discreta da Escola de Londres, sem a fama boémia e escandalosa de Bacon e Freud. A sua circulação foi por muito tempo quase confidencial, mas em 95 representou a Grã-Bretanha na Bienal de Veneza e no ano seguinte a Tate dedicou-lhe uma retrospectiva. Os trabalhos seguintes - magníficos retratos desenhados, grandes nus duplos e vistas da Kings Cross Station, mais luminosas do que nunca - mostraram-se na galeria Michell Innes & Nash (foi a sua segunda exposição em N.I.) e estão agora na Annely Juda, de Londres, até 22 de Julho
Se o retrato e o nu são também centrais na obra de Kossoff, ele é igualmente um pintor de paisagens urbanas, sempre de Londres e só um pequeno núcleo de lugares que lhe são familiares - praças, piscinas públicas, estações de metro ou comboio, com os seus formigueiros humanos. Os quadros são inconfundíveis: o óleo acumula-se em pastas densas sobre cartões, que ganham a espessura de quase relevos e bordos irregulares de tinta seca, mas as formas desenham-se nesse magma mineralizado com um traçado súbito, quase grosseiro e ingénuo. Kossoff pinta sucessivamente o mesmo quadro, camada a camada.
A uma sessão de trabalho, em que o mesmo assunto pode dar origem ao começo de vários quadros, sucede-se, com o posterior exame crítico, a raspagem do cartão ou a limpeza da tinta com papel de jornal, e a operação repete-se vezes sem conta até que a pintura resista à exigência do pintor. Não é uma espontaneidade aplicada, uma retórica da sensação fugidia e do irrepresentável, e a pincelada rápida não é expressionista ou heróica. Trata-se sempre, nas pinturas a partir de desenhos feitos diante dos motivos, de recrear a percepção de uma determinada realidade, num certo lugar, numa estação do ano e numa hora precisas; de alcançar pela pintura, com a realidade material da pintura, a tensão imediata, a energia, a verdade, a emoção viva do que ele chama a «excitação de um encontro visual». O mesmo sucede com os retratos e nus feitos na presença dos modelos, sempre um pequeno círculo íntimo ou os mesmos profissionais pagos, nomeados nos títulos. Nunca há sugestões narrativas ou declarações genéricas sobre a condição humana; apenas a observação emocionada e a vontade de registar o que lhe é próximo.
Fairfield Porter (1907-1975), contemporâneo da segunda geração da Escola de Nova Iorque, que em meados dos anos 50 enfrentou o esgotamento do expressionismo abstracto, foi objecto de uma mostra antológica por ocasião da publicação da sua biografia. Retratos, cenas de interior doméstico, naturezas mortas e paisagens preenchem a sua obra, que associou heranças dos realismos americanos a um intimismo iluminado por Vuillard e Bonnard, usando em superfícies lisas uma cor de grande frescura, mesmo quando o desenho das figuras é algo rígido. «Fairfield Porter, A Life in Art», de Justin Spring, ed. Yale University Press, é um testemunho muito rico de uma carreira que passou pelo compromisso político (viagem a Moscovo em 1927), teve uma influente actividade como crítico, próximo de Kooning e amigo dos poetas John Ashbery e Frank O'Hara (a recolha dos seus textos, «Art in Its Own Terms», foi editada por R. Downes), e interveio num período de grande dinamismo da arte americana.
Rackstraw Downes expôs na Robert Miller Gallery, em Chelsea, para onde se transferiram nos últimos anos as galerias ditas de ponta. Nascido em Inglaterra em 1937, com inicial formação literária, também crítico de arte, começou a expor no início dos anos 70, sendo particularmente conhecido pelas suas paisagens panorâmicas de formato muito alongado, minuciosamente descritivas. É uma dessas obras, de 1993, que o MoMA expõe em «Despite Modernism» e também inclui no catálogo «Walker Evans & Company», associando-o a uma linha de interesse pelo real e pela acuidade perceptiva que o grande fotógrafo teria inspirado.
O olhar fotográfico é só uma primeira aparência; a pintura de Downes é demoradamente realizada diante do motivo, aplicada na minuciosa representação de paisagens onde, em muitos casos, se juntam campos cultivados, habitações, viadutos e estruturas industriais, em quadros que impõem uma observação igualmente atenta. O espectador é forçado a percorrer a tela, explorando-a sucessivamente em todas as direcções, reconhecendo pormenores, associando-os e integrando-os numa visão de conjunto, com a mobilidade ocular que exige a observação de um espaço tridimensional. Downes aborda uma paisagem concreta sem um plano prévio ou um esquema sintético, e fazer a pintura é manter um estado de escrupulosa observação desprevenida e gradual de todas as coisas que ocupam o campo de visão, numa resposta perante o visível que é um exercício de decifração e associação das coisas vistas num espaço integrado e único.
Começou por ser um pintor abstracto e considera que a abstracção permitiu abandonar velhos métodos de pintar, sistemas de treino e tradições, tornando possível começar a representar outra vez, como que a partir do zero. Sabe que há outros meios mais eficazes para dar a conhecer um espaço ou edifício, «por isso não se trata de usar a arte para registar um edifício, mas de usar o registo de um edifício para fazer arte». Segundo Downes, o realismo não é uma técnica, uma perícia aprendida: trata-se de inquirir o que se vê, de procurar «saber como resultam as formas e as cores quando se pede à pintura para descrever um espaço».
Rackstrow Downes, «Chinati, West Concrete Building, Interior», 1998 (Robert Miller Gallery, N.Y.)
Na exposição apresentou novas pinturas constituídas por quatro ou mais telas separadas, nas quais se prolonga o ângulo de visão sobre um mesmo lugar ou em que um mesmo local (a passagem sob um viaduto de Brooklyn) é pintado quatro vezes em meses consecutivos. Outra série ocupa-se de imensos espaços interiores desocupados do World Trade Center, mas o conjunto mais extenso resulta do trabalho realizado no museu fundado por Donald Judd em Marfa (Chinati Foundation, Texas), observando os antigos pavilhões industriais restaurados e os edifícios projectados pelo próprio escultor minimalista, um deles ainda por concluir. Ao descrever a paisagem natural e construída de Marfa, e em especial os pavilhões do museu sujeitos aos acasos e efeitos contingentes do tempo, a aposta de Downes na disciplina da descrição literal e fria, numa pintura destituída de emoção, cruza-se por inesperados caminhos com a austeridade e a obsessão pela ordem de Donald Judd.
«Cada vez que me aproximo de um pintor que trabalha do natural ('d'après nature'), ao olhar para a sua tela vejo sempre má pintura», terá dito Picasso, citado por Françoise Gilot. Não há receitas seguras e o êxito é sempre raro. No final do século, sabe-se que Picasso não deixou continuadores directos e também que os interditos modernistas se congelaram em novos academismos. O desenho e a pintura de observação são pistas que continuam abertas.
(Fotos: Lucian Freud «The Pearce Family», 1998 (Acquavella Contemporary Art, N.Y) - pág. 89 Fairfield Porter, «The Mirror», 1966 (Nelson-Atkins Museum of Art, Kansas City) - pág. 90Leon Kossoff, «Christchurch Spitalfields, Summer», 1990 - pág 91 Rackstrow Downes, «Chinati, West Concrete Building, Interior», 1998 (Robert Miller Gallery, N.Y.) - pág. 92)
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