Já se referiu aqui o perfil comemorativo da exposição "50 Anos de Arte portuguesa" e a importância da abertura dos arquivos do Serviço de Belas Artes à investigação, de que ela é testemunho e consequência - é apenas um começo, e talvez tenha sido positivo que se tenha evitado, no catálogo, a aparência de uma síntese, forçosamente precipitada: com esta mostra indicam-se pistas e distribuem-se exemplos para trabalho futuro sobre e com a história da Fundação. Esse trabalho deverá em seguida (e independentemente de projectos de exposição) tomar várias direcções paralelas:
1. a memória e o estudo sistemático da intervenção da FG nesta área, as suas orientações e regras ao longo dos tempos, em particular em matéria de bolsas e subsídios (há aqui zonas de certo melindre, no que diz respeito aos compromissos certamente necessários com o regime anterior, por exemplo quanto a artistas com situação militar irregular, e existiram também situações muito controversas de ordem administrativa e burocrática ou até pessoal, mesmo após a constituição de júris com representação minoritária de artistas exteriores aos serviços);
2. o estudo de carreiras individuais ou relativo a períodos cronológicos, a grupos, a destinos de formação, etc, através dos requerimentos e relatórios entregues pelos artistas, que contêm em muitos casos informações significativas sobre os seus intereresses, fases de aprendizagem e orientações de pesquisa e trabalho.
São esses documentos, escritos e ilustrados, por vezes com características de livro de artista, e muitas vezes acompanhados por desenhos, gravuras e fotografias que constituem o fulcro da montagem que se apresenta no piso superior.
Não é fácil expor documentação (e aqui recorreu-se também à sua apresentação filmada, em projecção ou monitor) e ela tinha aqui de ser mostrada em quantidade e diversidade, em articulação quase sempre com obras da colecção. O resultado é uma exposição de trabalho - um primeiro levantamento de um espólio e a indicação de linhas de investigação. E é também, tinha que ser, uma exposição que dá "trabalho" ao visitante, com obras e "estudos" ou projectos mostrados nas vitrinas, e muitos textos para ler, nos documentos e nas tabelas.
Entretanto, o catálogo funciona como repertório dos materiais presentes na exposição, sustentando a sua observação mais atenta e prolongando-a no tempo. A investigação e a interpretação das fontes virá seguramente depois, com outras condições de tempo.
No piso inferior adoptou-se um critério cronológico, patente na longa ordenação de datas e factos que percorre a parede lateral e na sequência de cinco núcleos expositivos, encerrando com o destaque dado às mostras bienais de apresentação de jovens artistas.
A I e a II Exposições levadas a cabo pela Gulbenkian, em 1957 e 1961, prolongadas pelas iniciativas que imediatamente se lhe sucederam (exp. itinerantes), mudaram as condições de afirmação da "arte moderna" no país, permitindo sustentar para a "3ª Geração", emergente na segunda metade dos anos 40 e primeiros 50, condições de circulação e profissionalização que não existiram para as anteriores, pelo que se justifica plenamente a sua abordagem como núcleos individuais - com alguma atenção perceber-se-á que poucas obras premiadas foram então adquiridas pela FG, até porque a coordenação de políticas foi sempre de muito demorada implantação.
No entanto importaria fazer entender que as duas exp. não surgiam no vazio: em 58 e 59 ocorrem o 1º salão de Arte Moderna e os "50 Independentes", na SNBA, abrindo este à mesma hora do 1º Salão dos Novíssimos; em 57 abria a Galeria Diário de Notícias, em 58 a Divulgação no Porto, etc.
Já o núcleo dedicado ao KWY aparece como uma reiteração do que se pôde conhecer na exposição que apresentou o grupo em 2001, no CCB, embora se reconheça quer a grande qualidade dos relatórios (não, em geral, das obras que se lhes associam...) quer o carácter exemplar que teve o patrocínio dado pela FG à exposição dos seus bolseiros. Estudar a dinâmica resultante da adopção de Londres como novo pólo das opções de muitos bolseiros, na 2ª metade dos anos 60, poderia ter sido mais útil e inovador, mesmo que a documentação daí enviada fosse menos extensa ou cativante.
Também o capítulo da III Exposição Gulbenkian, em 1986, é uma opção discutível já que se tratou de uma inicitiva mal acolhida e que passou sem especiais consequências (embora desse lugar a aquisições de obras de artistas então jovens como Croft, Calapez e Rocha da Silva).
A abertura da Sede da FG em 1969 é uma data chave, que se pode considerar assinalada pela integração no percurso da mostra de várias obras instaladas (Almada, Artur Rosa, o núcleo do Bar, etc). Já a inauguração do CAM, outro momento de primeira importância, mereceria ter sido sublinhada - as lacunas e inconsistências da colecção, que aí se tornariam dramaticamente visíveis, só puderam então ser superadas com a compra de parte substancial da Colecção Jorge de Brito , e este teria sido um momento certo (mesmo se infelizmente tardio) para o reconhecer e celebrar.
A Exposição Diálogo, em 1985, prolongou essa inauguração com uma operação de inédito e irrepetido formato que trouxe a Lisboa e associou ao prometido dinamismo do CAM a representação de oito museus europeus através das suas aquisições recentes (o que então se expôs na sede e no novo espaço será inimaginável por quem não o conheceu à data, face ao refluxo posterior, e mesmo com a colecção Berardo...) - essa é outra data que seria necessário evocar. Pareceu chegar-se então a um nível de integração internacional que depois se não confirmou, ao mesmo tempo que, através da selecção dos artistas portugueses, ganhava particular visibilidade a orientação imprimida por José Sommer Ribeiro à sua acção. A III Exp. Gulbenkian, no ano seguinte, já representa uma dinâmica de involução. Questões de concorrência entre artistas com carreiras feitas no exterior e artistas instalados no país, bem como dinâmicas de afirmação e alternância de gerações, em ambos os casos com consequência a níveis institucionais, poderão ter também minado a confirmação das expectativas antes geradas.
Tudo isto implicaria discutir a Gulbenkian. O que nunca foi fácil no seu seio. Será por isso que as mesas-redondas anunciadas se deslocam da instituição aniversariante para tópicos genéricos?
Muito rapidamente acrescenta-se que o nível de ruído no piso inferior (se não foi corrigido ontem) é pouco propício a uma visita atenta, devido à cacofonia das diversas projecções sonorizadas e à insuficiente insonorização dos espaços para vídeos. E ainda cabe lamentar o uso de adjectivações inúteis nos textos das tabelas: "o belíssimo caderno", "um fascinante percurso evolutivo", "aquele extraordinário modernista"... Deixem, por favor, a avaliação aos observadores.
Mas é necessário insistir na ideia de que a exposição é um projecto singular e de largo fôlego, que fornece elementos à reconsideração histórica ao mesmo tempo que propõe pistas de abordagem dos obras e dos percursos artísticos que vêm alargar as respectivas condições de relacionamento com os observadores interessados.
lamento informar mas o excesso ruído, no piso inferior, continua (dia 28 de junho). e misturam-se sons, sem conseguir perceber o que pertence a qual projecção. é portanto, uma confusão (sempre com o kraftwerk de joão onofre de fundo) que incomoda e dificulta um olhar mais demorado.
Posted by: neftos | 06/30/2007 at 13:27