A minha relação com os trabalhos de JV foi-se tornando de um interesse ou entusiasmo crescente, em especial a partir da exposição de Paris, em 2005, mas já aumentava desde a série dos tricots em lã, começada em 2001, para além do gosto por algumas obras anteriores (e a rejeição de outras). Foi-se associando a algumas peças e intervenções uma mais clara intencionalidade e/ou referencialidade, também em termos da sua lógica sequencial, e igualmente uma mais notória ambivalência/ambiguidade entre a atitude de crítica distanciada (o humor) e o interesse pelos objectos e processos apropriados (a não indiferença, a escolha).
Já não se trata só de uma distanciação irónica com base num uso oportunista, ou de um exercício principalmente lúdico encerrado no fechado espaço da arte, e parece existir uma cumplicidade interrogada, ou mesmo reivindicada, com os temas, os ícones, os processos que surgem nestas obras.
A obra exposta no Arco - instalada com movimento e som (Amália) - ganhou uma visibilidade que incomodava muita gente . Gostei de a mostrar numa página inteira do Expresso e de associar o coração com o título encontrado (grandes valores da nacionalidade, a filigrana de ouro dos minhotos e o coração de Amália, afirmavam-se e parodiavam-se na capital peninsular. Que JV tenha utilizado talheres de plástico para construir o seu objecto é essencial, tal como o balanço visual entre a imagem global e o pormenor.
Coração Independente Preto / Black Independent Heart, 2006, com os seus 3,70 m de altura de ferro pintado e "filigrana" de talheres de plástico, instalado no Arco com som e em rotação - daí a imagem desfocada...
"União ibérica"
EXPRESSO/Actual de 24-02-2007
Em ano da Coreia e em tempo de revisão de fórmulas, a feira Arco de Madrid volta a ser um palco importante para a arte portuguesa
A Arco ainda é mais do que uma feira, mas já não é credível prolongar a fórmula equívoca que assegurou o seu êxito. Para Portugal é um bom palco, e é o degrau acima na dinâmica entre a periferia e os centros; convém, no entanto, ver para além dos projectores. O supermercado de arte promovido como espectáculo cultural e evento de massas está condenado - e é bom que assim seja, porque não é lugar de fruição ou informação que se recomende ao chamado grande público. Ao chegar aos 200 mil visitantes em 2002, a Arco tornou-se vítima da notoriedade. A mais importante feira do mundo, em Basileia, não passa dos 50 mil; a de Paris, que foi capital das artes, anda pelos 85 mil. Para limitar a afluência, as entradas subiram para 30 euros (20 para estudantes) e este ano reservou-se mais um dia para quem tinha convites ou credenciais. Também se reduziram as conferências, orientadas para temas de mercado, acabando com os créditos para universitários, mas não deixaram de se convidar centenas de coleccionadores de todo o mundo, mais comissários e assessores, porque o orçamento chega aos seis milhões de euros e a vertigem do actual coleccionismo (o último dos «ismos»?) inclui o convívio directo com um universo social privilegiado.
Vem aí, com a nova directora e a mudança para os pavilhões a inaugurar em 2008 - será o ano do Brasil -, uma feira mais vocacionada para profissionais e coleccionadores. Há cada vez mais ricos, e mais novos ricos a comprar arte (qualquer coisa e a qualquer preço), embora a Espanha só tenha uma quota de 0,7% do mercado mundial. Um quadro de Anglada Camarasa, grande pintor espanhol do princípio do século XX, professor de Amadeo em Paris, já chegou aos três milhões de euros num leilão da Christie’s em Madrid, mas de entre os vivos só Barceló está por perto. Apesar da cortina de fumos coloridos na imprensa, a Arco reconhece-se como certame de segunda divisão e repensa o lugar periférico - a feira de Miami Beach, criada pela empresa da Art Basel, cortou-lhe a fatia latino-americana, a Frieze de Londres ganhou a «arte jovem», os próximos passos apontam aos emiratos, à China e à Índia. «Mercado, mercado, mercado» é a palavra de ordem para responder à nova dinâmica do coleccionismo mundial.
Associar a vontade política (reforçar a centralidade de Madrid, modernizar a imagem exterior da Espanha ex-franquista) e a engenharia social (alargar o espaço da arte na sociedade e na economia), mais a promoção do turismo, tudo o que legitimou a fórmula Arco (paralela ao investimento nos três grandes museus centrais - mas o Rainha Sofia está em crise manifesta), tornou-se pouco conciliável com um mercado de arte em expansão onde, com a rarefacção de obras históricas e os recordes dos leilões, se procuram novas articulações entre o espaço de manobra dos recursos públicos, sempre escassos, e o universo do coleccionismo privado e corporativo, eufórico e muitas vezes especulativo.
A Arco não é uma feira que marque o curso dos acontecimentos. O que se exibe, para além da farta oferta peninsular, são os excedentes enviados para a periferia (valores confirmados ou vedetas mediáticas - veja-se a fancaria do inglês Damien Hirst numa galeria mexicana), enquanto falta tudo o que está em afirmação nos lugares centrais. É fácil comprová-lo pela presença cansativa dos pintores alemães que trabalham desde os anos 1970 sobre a sobrevivência dos suportes e materiais de uma «abstracção» esvaziada de outro sentido que não o da continuidade de objectos de pintura, como Imi Knoebel, Günther Forg, Peter Zimmermann e Katharina Grosse, ou Helmut Dorner e Herbert Brandl, que Serralves mostrou em 2004. É escusado procurar artistas em consolidação recente ou promoção mais lenta, com coleccionadores em lista de espera, como Marlene Dumas, Elisabeth Peyton, Luc Tuymans, Peter Doig, as figurações metafotográficas de Eberhard Havekost e Magnus von Plessen (Serralves 2006), outros jovens alemães como Neo Rausch, Daniel Richter, Thomas Scheibitz, etc., ou Vincent Corpet e Carole Benzaken, de França, por exemplo. A única presença forte da chamada escola de Dresden, Frank Nitsche, apareceu na Galeria Pedro Cera, numa montagem táctica menos virada para Madrid que para outros palcos (também com obras bem escolhidas de Pedro Barateiro, regressado de Miami, mais Gil Heitor Cortesão e Nuno Cera).
Há encontros gratificantes e descobertas nos corredores da Arco (por exemplo, a solitária galeria de Istambul, Galerist), mas as colecções ditas de ponta, que se fazem com obras ainda baratas de artistas em fase de afirmação, ou dos que serão as próximas apostas dos museus que marcam a agenda, não se podem abastecer em Madrid. Os coleccionadores internacionais que contam, com os seus assessores multiusos, não têm razões para comprar na Arco (excepto artistas portugueses e talvez espanhóis).
Para as 14 galerias nacionais admitidas (três delas com extensões nas secções comissariadas, de «projectos» e «novos média»), a Arco é um palco decisivo, que lhes amplia a credibilidade interna, mas os desafios mais significativos já têm de se colocar fora da Península. Entretanto, mais sete foram à Art Madrid, que ainda não conseguiu impor-se como feira-satélite (e as obras da M30 cortaram-lhe os acessos). A nota mais saliente na Arco, este ano ainda mais nítida, é a presença de numerosas obras portuguesas em galerias espanholas e de outros países, mostrando a crescente integração do espaço ibérico, a nível de espaços institucionais, prémios e colecções, a exemplo do que acontece noutros sectores da economia; em alguns casos até acontece que os artistas só têm representação galerística em Espanha, mas a oferta destina-se quase por inteiro ao público português. A passagem para o universo exterior à Península só em escassa medida se faz através de Madrid, até porque a Espanha tem exportado mais comissários do que artistas (à próxima Documenta só vai o cozinheiro Ferran Adriá e, diz o respectivo director, «não há ninguém em Espanha, da sua geração, que se possa comparar com o seu nível de inteligência formal».
Na montra portuguesa, que é o que mais importa na Arco, há vários tópicos a destacar, por opção subjectiva e força dos factos. Primeiro, a instalação de choque de Joana Vasconcelos, com um imenso coração negro duma filigrana de talheres de plástico moldados ao calor, com quatro metros de altura, sonorizado com cinco fados de Amália bem escolhidos para sublinhar a identidade conceptual deste Coração Independente, de que há versão dourada (no restaurante Eleven) e vermelho sangue. É pela exponenciação do espectáculo, sem recuar na atracção do kitsch, que a obra «reflecte sobre» (como se costuma dizer) os emblemas culturais pátrios, com uma dimensão objectual construída com tanta invenção formal como rigor de sentidos. Comprada e exibida pela galeria Mario Mauroner, de Viena-Salzburgo, é uma obra que divide opiniões e continua a projectar com inteligência, impacto e ambição a obra de Joana Vasconcelos, que deixou as galerias 111 e Elba Benitez, e prepara a digressão de uma antologia pelo México.
Entretanto, foi lançado em Madrid pela ADIAC Portugal (Associação para a Difusão Internacional da Arte Contemporânea) uma monografia que reúne toda a produção da escultora, desde 1993, com um ensaio de Jacinto Lageira - em simultâneo, saiu um volume dedicado a Vasco Araújo, outro jovem artista de rápida circulação exterior (estiveram ambos na última Bienal de Veneza).
Também marcante a presença de Julião Sarmento em sete ou oito galerias (de Londres, Munique, Santa Mónica, etc) e com lugar de «pivot» na Cristina Guerra com um núcleo de «Silhuetas Negras», onde se lançou o catálogo da série (2002-05) prefaciado por Delfim Sardo. Duas esculturas de grande escala de Rui Chafes eram bem visíveis no coração da feira, uma na Graça Brandão (ao lado de um avião giratório de Miguel Palma), outra na Juana de Aizpuru. E ainda, entre outros, José Pedro Croft (saído da Quadrado Azul, presente com uma escultura de parede na Senda, de Barcelona), Fernanda Fragateiro, Carlos Bunga, Baltazar Torres (também na Mario Mauroner), Didier Faustino (com Vasco Araújo na parisiense Gabrielle Maubrie), ou Alberto Carneiro na representação institucional do Centro Arte e Natureza de Huesca, onde se anunciava o convite de Cabrita Reis para uma obra pública na Exposição Internacional Saragoça 2008.
Num conjunto sem desníveis gritantes, podem sublinhar-se ainda a galeria Lisboa 20 com um espaço interior construído por Sancho Silva (elevando-se para uma vista geral sobre a feira como um labirinto branco e vazio) mais uma escolha de peças convincente; a 24b com um numeroso grupo de muito jovens artistas (Domingos Loureiro, Ricardo Pistola, Ana Janeiro, etc.); a estreia auspiciosa da Agência Vera Cortez em Madrid; a selecção afirmativa e diversificada de Carlos Carvalho; a renovação da 111 com uma montagem acertada de grandes formatos e novos artistas (mas dispensava-se o chamativo Sicilia do acervo); ou as opções originais da Jorge Shirley.
A Arco continua no exterior da feira, e a Coreia, primeiro país asiático convidado, era muito mais atraente fora do comércio. As galerias apostavam no «efectismo» «impactante» ou infantilizado em «gadgets» de laboriosa execução: budas forrados a lentejoulas ou animais míticos feitos de pneu. Por outro lado, são excelentes a homenagem a Nam June Paik na Telefónica; o fotógrafo Joo Myung-Duck (n. 1940), com um trabalho de austero rigor zen sobre a arquitectura tradicional; quase toda a selecção de artistas apresentados pela Bienal de Gwangju na sala de Alcala 31, referindo raízes orientais em produções ocidentalizadas (desde os pintores veteranos Lee Ufan e Jong Sang Lee a artistas mais jovens), e ainda a geração «post new age» reunida por Geneviève Breerette (ex-«Le Monde»), que inclui trabalhos de vídeo, fotografia e instalação com apreciável humor e sentido crítico (Yong-Baek Lee, Park June-Bum, An Jung-Ju, etc., no Canal Isabel II). A feira volta para o ano, as outras exposições continuam, tal como «O Retrato no Século XX» no Museu Thyssen e Tintoretto no Prado, duas propostas que valem a viagem.
Sean Scully, escultura-maqueta em pedra, 2006
e
Tom Wesselmann, «Great American Nude #10», 1961, com fotografia do Porto
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Expresso Actual de 27-01-07
"A Arco e o resto"
A Coreia em destaque na feira e os caminhos do retrato no século XX no Museu Thyssen
Juan Miró, «Retrato de Heriberto Casany», 1918, no Museu Thyssen
Serão 14 as galerias portuguesas na feira Arco de Madrid, que decorre de 15 a 19 de Fevereiro, tendo a Coreia do Sul como país convidado. Com a Agência Vera Cortês (em estreia), a 111, Carlos Carvalho, Cristina Guerra, Filomena Soares, Pedro Cera, Presença, Graça Brandão, Jorge Shirley, Lisboa 20, Pedro Oliveira, Quadrado Azul, 24b e Mário Sequeira, num total de 254 galerias, a «quota» nacional desce uma unidade, enquanto só a Gal. Filomena Soares entra no sector «Projectos», com uma instalação do suíço Costa Vece. Ultrapassado pela Alemanha, com 32 galerias, e os Estados Unidos, com 22, Portugal está «à frente» da Itália (13), França (12), Áustria (10), Reino Unido e Suíça (7), notando-se a forte representação do Brasil, com 13 (11 na área da «arte emergente»), a anteceder o lugar de país convidado em 2008. Entretanto, anunciam a presença na Art-Madrid, a feira paralela que tem lugar pela segunda vez no Pavilhão de Cristal da Casa de Campo, António Prates, São Mamede, Perve, Almadarte e Quattro, entre 19 estrangeiras, num total de 77.
A presença oficial da Coreia, que tem vindo a multiplicar o número de museus e colocou no mapa as bienais de Gwangju e Busan, estende-se por um largo programa paralelo. O pioneiro da vídeo-arte é recordado em «Visão da Coreia de Nam June Paik - Fantástico e Hiperreal», na Fundação Telefónica, e o programa continua com «The First Chapter. Trace Roots. Unfolding Korean Stories», na sala Alcalá 31, focando as raízes do processo de modernização e globalização da arte coreana, enquanto a geração «post new age» se apresenta no Canal Isabel II. Haverá também design, fotografia, novas tecnologias e projectos de arte pública («Forty-nine Rooms», na Casa Encendida).
Além de Tintoretto no Prado, o destaque da agenda de Madrid vai para o Museu Thyssen e «O Espelho e a Máscara - O Retrato no Século de Picasso» (até 20 de Maio). Com um total de 150 obras, em co-produção com o Kimbell Art Museum de Forth Worth, analisa-se um género clássico que conheceu até à actualidade direcções alternativas em função da afirmação do olhar pessoal do pintor, da experimentação de novas linguagens plásticas e da variação dos compromissos com o modelo. Além dos pioneiros do retrato moderno, como Cézanne, Gauguin e Van Gogh, e dos nomes centrais de Matisse e Picasso, a mostra continua até ao final do século com capítulos dedicados a Dubuffet, Giacometti e Saura; Bacon, Auerbach e Kossoff; Freud e Stanley Spencer, Arikha e Antonio López, e, por fim, Hockney, Kitaj e Warhol. Também no Thyssen, o mesmo Avigdor Arikha, pintor e erudito, apresenta uma selecção da colecção sobre o tema da pintura de observação, a abrir um programa anual intitulado «Studiolo».
No Museu Rainha Sofia poderão ver-se os retratos pintados desde 1968 pelo norte-americano Chuck Close, a par de um panorama histórico da arte vídeo (1963-86). A Fundação Juan March dedica uma exposição ao pintor pop Roy Lichtenstein e aos seus processos de trabalho, enquanto a Fundação Mapfre recorda o cubismo com «André Lhote e a Linguagem da Modernidade».
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