1 - A propósito da exposição "50 anos de arte portuguesa" e dos 50 anos da Gulbenkiam, um texto publicado na morte de Jorge de Brito
"Colecção Jorge de Brito"
Expresso Actual de 18/08/2006
A colecção de Jorge de Brito deixa profundas marcas na arte portuguesa, e duas instituições lisboetas (o CAM e o Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva) devem-lhe parte do seu prestígio
Há pouca memória no mundo da cultura e, na sua morte (na madrugada do dia 2 de Agosto), Jorge de Brito foi mais recordado enquanto benfiquista do que como coleccionador. A sua intervenção foi essencial para que se começasse a profissionalizar nos anos 60 um mercado para a arte moderna, no mesmo processo em que se firmava o papel histórico de certos artistas. Apesar das convulsões de 1975 o terem impedido de levar por diante a fundação que projectava, a imensa colecção que reuniu marcou a arte portuguesa e deixou vincos profundos em duas instituições lisboetas que lhe devem parte do seu prestígio.
Uma delas é o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, que tem com justiça o nome de Azeredo Perdigão mas só contou com um acervo credível na inauguração, em 1983, porque adquirira à pressa grande parte da colecção de Jorge de Brito (talvez mais de 500 obras, incluindo desenhos [e as peças doadas]). Rodeado de grande discrição, o caso envolveu primeiras figuras do Estado e árduas negociações guiadas por Sommer Ribeiro e João Teixeira, com o coleccionador a refazer até ao fim a lista do que estava disposto a ceder.
Perseguido pela falta de liquidez (e fez-se pagar em notas, saindo da Fundação vergado por dois sacos - [tratava-se de exibir a sua desconfiança face a Azeredo Perdigão]), Brito foi também sensível ao argumento de que a colecção encontrava lugar num museu, e reforçou as vendas com valiosas doações. Em 2003, uma exposição com Almada, Vieira da Silva e Carlos Botelho (...no dia da morte deste, 18 Agosto de 1982, Brito comunicou à FG a oferta de 12 obras), prestou homenagem a quem foi «capaz de construir uma colecção coerente que permitiu uma leitura histórica da arte portuguesa do século XX, (e) de a saber negociar e colocar no lugar certo» - escreveu Helena de Freitas numa publicação do CAM.
Outro lugar que lhe está associado é a Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, onde deixou em depósito, desde a inauguração em 1994, obras essenciais para completar o limitado acervo disponível. Brito tornara-se o maior coleccionador mundial da pintora, trouxe para Portugal parte essencial da sua obra e interveio na consolidação da notoriedade internacional (teve enviados a leilões a licitar em concorrência, contrariando a descida de cotações da Escola de Paris). Terá conservado umas 50 obras da artista, algumas indispensáveis para assegurar a viabilidade do museu, e neste caso o Estado deve ser chamado a assumir responsabilidades. Foi sugerido há tempos o início de um processo de classificação de obras, que impediria a sua saída do país.
Ficou famosa, em 1970, a compra do retrato de Pessoa que Almada pintara para o restaurante Irmãos Unidos. A obra atingiu um preço nunca visto, 1.300 contos sem as taxas legais, e a seguir foi oferecida à Câmara de Lisboa. O gesto teatral de quem tinha começado a comprar quadros a prestações ainda como bancário, e que, em vez dos salões mundanos, preferia frequentar estúdios e mesas de artistas, trazia para as primeiras páginas a vontade de mudar hábitos de empresários acomodados, que desconheciam o mecenato cultural e recusavam a arte moderna (Manuel Vinhas era a outra grande excepção). Menos conhecidos são os episódios ligados à ideia de «nacionalizar» a colecção e a violência com que se levaram a cabo inventários e avaliações.
Brito foi por muito tempo o maior coleccionador português, reunindo um vastíssimo acervo em que se destacavam também Silva Porto, António Soares, Eduardo Viana, Mário Eloy, Júlio Pomar e outros. Teve uma importante colecção internacional, de que conservou pelo menos obras de Sonia e Robert Delaunay - e possuiu peças de Klee, Matisse, Braque, Max Ernst, Giacometti, Dufy, etc. (e partes de picassos...). Era há muitos anos um homem de imensa amargura, irascível e avesso a homenagens que esquecessem as circunstâncias em que a iniciativa empresarial e o gosto pelo risco o tornaram um alvo fácil. Desde meados dos anos 80, muitas outras obras da colecção foram sendo dispersas em leilões e vendas particulares, controladamente, de modo a valorizá-las, evitando os efeitos negativos de um eventual excesso de oferta, tanto mais que acumulara grandes núcleos de alguns artistas. Nos últimos tempos tentava reunir para publicação as imagens das obras que lhe tinham pertencido, mas o seu acervo continuava a ser necessário a muitas retrospectivas.
2 - Sobre uma exp. da doação de Jorge de Brito ao CAM:
Doações de Jorge de Brito
Centro de Arte Moderna
Expresso/ Actual (nota) 23 Agosto 2003
Há 20 anos inaugurava-se o CAM, em cujo acervo se tinha incluído pouco tempo antes um avultado número de obras adquiridas a Jorge de Brito, permitindo apresentar um panorama histórico coerente da arte portuguesa do século XX. Pela mesma ocasião, Jorge de Brito fez uma doação de um restrito conjunto de peças, o qual agora se apresenta na sua quase totalidade no átrio do museu.
Expõem-se dois cartões para tapeçarias de grande formato que Vieira da Silva realizou para a Universidade de Basileia, por volta de 1954-55, duas pinturas de Almada Negreiros para A Brasileira do Chiado, de 1925 (Auto-retrato de Grupo e Banhistas), e mais cinco de Carlos Botelho, de temas lisboetas, datadas de 1933 a 48.
A iniciativa é uma discreta referência à figura de um amador de arte e coleccionador que teve um papel mecenático relevante no meio português, num período de grande incipiência do mercado de arte, que contribuiu para animar. Tendo começado a adquirir obras ainda como empregado bancário, Jorge de Brito veio depois a constituir uma muito vasta colecção, com especial destaque para o grande núcleo de trabalhos de Vieira da Silva, que se expõem na fundação com o nome da artista.
A sua colecção, que se alargou também a artistas estrangeiros, teria tido certamente um destino público se, com o 25 de Abril, não se alterasse dramaticamente a situação financeira do grupo que criara, abrindo-se então um contencioso com o Estado que conduziu, com alguns lamentáveis episódios, ao arrolamento da colecção e, mais tarde, à venda de parte significativa do seu acervo à Fundação Gulbenkian. Agora oportunamente lembrado, o papel de Jorge de Brito e da sua colecção ficam a aguardar uma mais alargada abordagem.
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(2011)
Não sei se é exactamente assim, mas penso que Jorge de Brito foi o único grande "capitalista" vitimado pelo 25 de Abril, pela vulnerabilidade em que o exercício do risco financeiro e a crise de 1973 o colocara, mas mais especialmente por ser um intruso no restrito círculo das famílias poderosas do anterior regime. A passagem de empregado bancário a banqueiro e o dinamismo empresarial que pôs em prática tornavam-no um alvo preferencial e mais fácil. Os outros recuperaram os seus lugares na sociedade portuguesa que se recompunha depois da revolução.
Há muito por esclarecer na história de Jorge de Brito e muita informação disponível que não circula. Parte da história tem a ver com a colecção. Envolve Azeredo Perdigão e o seu peso junto dos centros de decisão financeira, o qual terá sido usado até Jorge de Brito aceitar vender (e doar) parte do seu acervo à Fundação Gulbenkian. Com ele pôde abrir o Centro de Arte Moderna com alguma dignidade...
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