(À Isabel com admiração e amizade,... mas noutra onda)
Abaixo, o artigo publicado em EXPRESSO/Cartaz de 05-07-97 "QUESTÕES ALTERNATIVAS", por ocasião da exp.: «Perspectiva: Alternativa Zero» na Fundação de Serralves
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Para dar algum gosto polémico ao 30º aniversário da Alternativa Zero que se comemora na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva (dias 28-30), trata-se de entender a «Alternativa Zero» como momento fundador da burocratização das chamadas (neo)vanguardas no contexto nacional. Das margens ao centro do poder.
O melhor Ernesto de Sousa é o de "Presépios, o Sol, Loas & Etc", ed. Bertrand, 1985
Oito anos depois de «Quando as atitudes se tornam forma» (Szeemann), a Alternativa Zero era retardatária e provinciana: outras coisas iam acontecer muito brevemente e mais outras, recalcadas, viriam à superfície, ou continuam a vir. No rescaldo das animações revolucionárias pós-1974, encerrando o ciclo "circa 1968", a AZ já era duplamente fúnebre.
Desaparecidos o mercado e o «povo», os objectos de arte e a
agitação político-cultural deixavam de ter destinatários.
Recentrar a prática artística sobre si própria (e sobre si próprios), sobre a «essência» e o
conceito de arte, a forma e a anti-forma, as suas convenções e anti-convenções, a atitude e a
intenção do artista (um círculo viciado), seria uma resposta ainda com uma aparência festiva para os agentes e "operadores" envolvidos. Uma
resposta autista e rapidamente esgotada, como veio comprovar a breve
prazo a vaga «pós-moderna» - e vários "discípulos" iam procurar tutelar "um novo paradigma".
Interessa-me o Ernesto de Sousa que tentou ser crítico de arte nos anos 40 e depois por várias vezes com intermitências, entre êxitos e falhanços como crítico de cinema, cineasta e cineclubista, encenador de teatro e animador cultural em geral. A trajectória mais do que a "obra", os livros apenas esboçados, os estudos sobre arte popular ou escultura, os projectos fotográficos. Quando se tornou artista, a arte conhecia um dos seus períodos de grande decrepitude, era anti-arte, na miragem convivial (já a estética relacional?") de um "zero" que era também o fim anunciado. Descartável mas por isso mesmo disponível para ser burocraticamente governada, isto é, negociada. Por uma nova academia (já não a do prof. França e discípulos) em que se associam os papéis e os poderes administrativos, escolares e "operativos".
São agora os gestores artístisticos (os candidatos e os iniciados - já um 3º grupo ou geração desde os tempos da SEC de Calhau, Sarmento e Cerveira Pinto, com João Vieira e Victor Belém), não os artistas, que orquestram as celebrações. Como em Serralves há dez anos.
Outros restos ou memórias estão disponíveis para celebrações, depois da exposição "Itinerários", de 1987; da "Perspectiva" de Serralves em 1997, e da retrospectiva parcial de ES em 1998 na Gulbenkian.
Nos anos 9 (2009 já) teríamos o Encontro no Guincho (com Noronha da Costa).
Em Vigo comemorem-se o Estúdio Quid de Carlos Gentil-Homem, as Jornadas Galaico-Portuguesas e o Centro Português de Vigo.
Em 2010 os 40 anos da sessão na galeria Ogiva, Óbidos, onde ES se manifestou com projecções de margarina e repetição do nome "Joseph Beuys" (sic. cat. "Itinerários).
É preciso recuperar as contribuições activistas de Jaime Isidoro, Espiga Pinto, José Aurélio, Dulce d'Agro, Túlia Saldanha, Egídio Álvaro, etc, para a construção das nossas vanguardas. Janas sim, mas também Valadares (a Casa da Carruagem) e Cerveira, a Ogiva/Nova Ogiva, Almada (os festivais de Arte Viva), etc. Há matéria para muitos mestrandos.
segue o artigo publicado em EXPRESSO/Cartaz de 05-07-97 (há 10 anos discutia-se um pouco mais)
"QUESTÕES ALTERNATIVAS"
"Contribuição abertamente polémica para a discussão de uma exposição histórico-mitográfica. A «Alternativa Zero» como momento fundador da burocratização das vanguardas"
«Perspectiva: Alternativa Zero» (1)
Fundação de Serralves
«Reapresentar hoje a experiência da "Alternativa Zero" implica a reconsideração de um contexto fundador das raízes da contemporaneidade artística portuguesa, através da reflexão sobre a actividade crítica e curatorial que o combate ideológico de Ernesto de Sousa representa, ao concretizar uma exposição que reunia toda uma geração de ruptura que, desde finais da década de 60, vinha afirmando as suas propostas e ampliando-a no contexto possível que o pós-25 de Abril poderá ter permitido» — João Fermandes (catálogo).
É raro que um discurso que pretende ser história se revele com tal evidência um exercício de mitificação-mistificação. O próprio autor e comissário da exposição o terá sentido, já que inicia assim a frase seguinte: «Não se trata de mitologizar esta experiência...».
Palavras como fundação e raízes sempre serviram para construir ou legitimar mitos, e é uma certa ideia de «arte contemporânea», nascida de uma suposta ruptura com a «arte moderna» que teria ocorrido por volta de 1968, que se propõe como horizonte de actuação da nova direcção de Vicente Todoli e João Fernandes em Serralves.
É de 1969 que data a paradigmática exposição «Quando as atitudes se tornam forma», organizada por Harald Szeemann, em Berna, seguida em 1972 pela Documenta de Cassel que o mesmo comissariou e Ernesto de Sousa visitou; então convertido à «vanguarda», aí teve um encontro decisivo com Joseph Beuys, vindo a organizar a «Alternativa Zero» em 1977.
Tinha sido antes crítico de arte ligado ao neo-realismo, crítico de cinema e cine-clubista, realizou o filme Dom Roberto em 1960-62, foi encenador teatral e animador-agitador em geral, depois artista multimédia e «operador estético», como preferia dizer.
Que significa «mitologizar» no museu os restos (em muitos casos reconstruídos para a ocasião) de uma exposição-acontecimento tão decididamente marcada pelas ideologias do tempo — o «espírito de 68» e a «desmaterialização da arte» —, quando nela se propunham não objectos e obras, mas atitudes, intenções, processos, acções no quotidiano e no «contexto», por definição efémeras?
Que sentido tem, hoje (ainda, ou de novo?), falar da «geração de ruptura» de finais dos anos 60, quando outra se lhe terá seguido nos inícios de 80 (à volta do «Depois do Modernismo») e mais uma se manifestaria nos começos de 90? Sem esquecer que outra já se afirmara no final dos 50, como tentou provar uma recente antologia da década de 60, sob o título «Anos de Ruptura».
Esta sucessão das «rupturas», ao constituir-se numa ziguezagueante continuidade (aceleração última da «tradição do novo», conforme a fórmula de Harold Rosenberg, já de 1960), não exigirá, pelo contrário, a desmistificação do conceito de ruptura e da visão da história como sucessão de gerações?
Repescando como raíz mítica o neovanguardismo de finais de 60, uma actual «vanguarda» plenamente oficializada enquanto poder (no Instituto de Arte Contemporânea, em Serralves e no CCB, nomeadamente através de Isabel Carlos, João Fernandes e Pedro Lapa) sustenta a sua política «geracional» — institucional por definição, burocrática por vocação crítica — gerindo uma alternância de vagas (de rupturas e de modas). Agora, através da fetichização museológica dos vestígios de uma prática artística que pretendia precisamente opor-se a tal destino, em nome do projecto de mudar o mundo.
Transformou-se a natureza do poder, ou completou-se a domesticação de atitudes que tiveram uma dimensão original de contestação globalizante, com sentido político, ético e estético? Ou terá sido o discurso vanguardista, sempre, embora sobre diferentes faces, a afirmação de uma ambição de poder?
Como comissário de exposições, Harald Szeemann defendeu «a transferência do interesse para o processo, deixando de considerar essencial o resultado» (o objecto). Valorizou as «atitudes artísticas» e o «gesto» como «assinatura e estilo» — viriam a seguir as «mitologias individuais», depois de desfeitas as utopias colectivas. Desconsiderou o objecto, as disciplinas e os géneros artísticos, tanto de tradição académica como de anti-tradição moderna. Contrapondo os artistas que descobria aos «fazedores de objectos», Szeemann exprimiu «o desejo de fazer explodir o "triângulo" tradicional da arte: atelier-galeria-museu» e associou a rejeição da realização formal (tradicional ou moderna), o anti-formalismo, a uma ideia de «antiforma social» que reconhecia em alguns comportamentos juvenis emergentes na década de 60.
Foi, em paralelo com a contestação política do tempo (a mobilização contra a guerra do Vietname, o terceiro mundismo, os esquerdismos, as revoltas estudantis), o período dos vários movimentos designados como pós-minimalismo e arte conceptual, processual ou «povera», «land», «body», etc...
Mas, de facto, ao contrário do que sucedera com as vanguardas do início do século, surgidas em oposição à Academia, a nova dinâmica vanguardista já podia contar com o apoio activo das instituições culturais: a tradição da ruptura ía-se tornando a vocação de um sistema burocrático nascido com a inclusão da cultura entre as competências do «Welfare State», sobre a dissolução do sistema académico e a demolição gradual de anteriores concepções de democratização da cultura.
À distância, observa-se que o museu, agora encomendador e promotor directo, e já não só depositário de objectos reconhecidos como património colectivo, passou a deter a primeira posição no mesmo «triângulo» criticado por Szeemann, enquanto a «antiforma social» serviu de legitimação autoritária à oficialização de um poder artístico voltado para a satisfação exclusiva de alguns produtores e do seu «público especializado».
A «Alternativa Zero» deverá ver-se como repercussão nacional dessa dinâmica, com inevitável atraso — embora fosse já mais a síntese de um processo do que um manifesto inaugural. Muito mais alternativo, no entanto, também por volta de 1977, seria o discreto retomar da pintura por António Dacosta...
Em Portugal, o mesmo movimento de institucionalização das neovanguardas decorre acelaradamente após o 25 de Abril, mas, em 1977, as esperanças revolucionárias já tinham ficado para trás. A crise petrolífera de 73 abalara o sistema galerístico antes de se repercutirem no mercado e na prática artística os efeitos de 74: é a um primeiro desinvestimento da produção «tradicional» (pintura e escultura), devido à crise económica, que se seguem as acções de animação revolucionária. (Algo de semelhante, com outra argumentação ideológica, ocorreu nesta década, por efeito da nova crise económica...)
De facto, a «Alternativa Zero» terá associado a algum experimentalismo cuja importância convirá reconhecer (permiti-lo-á a presente exposição?) as desilusões resultantes tanto da paralização do mercado de arte como da diluição de expectativas associadas à revolução. Desaparecidos os «consumidores» e o «povo», os objectos de arte e a agitação político-cultural pareciam deixar de ter destinatários. Recentrar a prática artística sobre si própria, sobre a «essência» e o conceito de arte, as suas convenções e anti-convenções, a atitude e a intenção do artista, seria a resposta «natural» nesse contexto. Uma resposta autista e rapidamente esgotada, como veio comprovar a breve prazo a vaga «pós-moderna».
Entretanto, importa ver que a «Alternativa Zero» já é o resultado de uma confluência da «vanguarda» com o activismo das instituições oficiais — é essencial que a exposição tenha decorrido na Galeria de Arte Moderna de Belém e com o directo empenhamento da Direcção-Geral de Acção Cultural, onde trabalharam artistas como João Vieira, Julião Sarmento, Fernando Calhau, Vitor Belém (também expositores).
Reapresentar hoje a «Alternativa Zero» em Serralves é, acima de tudo, celebrar o «contexto fundador» que tornou o nome do comissário das exposições mais importante que o dos artistas participantes, ou seja, o momento em que o «projecto» se impõe sobre as obras, a intenção sobre o resultado, a atitude sobre o objecto. É assinalar um passo decisivo, para que em Portugal, se viesse a impor, à margem do mercado particular e do sistema museológico, mas também com autonomia relativa face à instrumentalização política por parte dos governos, um aparelho cultural de Estado (sobre o modelo francês) identificado com o «mundo da arte», tido como seu representante e dominador da circulação artística. Um poder de tutela, crítico-administrativo, que, ao sabor das fases de crise ou expansão da conjuntura económica, e sob a aparência das «rupturas geracionais», faz alternar tacticamente não só os padrões críticos como as suas relações com o grande mercado privado, ora associando-se-lhe sem qualquer pudor (nos anos 80) ora condenando-o com vaga argumentação «políticamente correcta» (anos 90).
É um outro sistema académico que assim se reconstrói e, tal como sucedeu antes, é possível adivinhar que a criação artística mais significativa do presente lhe é em grande medida exterior.
Vinte anos é o tempo suficiente para que uma «geração» que não assistiu à «Alternativa Zero» possa transformar a sua memória em restos museológicos, reinjectáveis nesse outro mercado que é hoje a cultura oficial e a indústria estatal do espectáculo artístico.
NOTA: Devido à data de fecho desta edição, mas cumprindo o primado das intenções sobre os resultados defendido pela «Alternativa Zero», este texto foi escrito antes da visita a exposição onde se recolhem as respectivas relíquias. Outros comentários se lhe seguirão. (2)
(1) Notícia de 05-04-1997 (Actual, pág 3)
Novo programa para Serralves
A programação de Vicente Todolí como director artístico da Fundação de Serralves arranca já no início de Julho com uma exposição que tem o título ainda provisório «Perspectiva 'Alternativa Zero'», depois de antes ter sido designada como «Uma década de ruptura - Os anos 70 em Portugal».
Mais do que de uma abordagem retrospectiva de toda a década, tratar-se-á, de facto, de um projecto em torno da mostra colectiva que Ernesto de Sousa promoveu em 1977 na antiga Galeria de Belém e que teve como subtítulo «Tendências polémicas na arte portuguesa contemporânea». Aí se reuniram praticamente todos os artistas («operadores estéticos», dizia-se então) que trabalhavam em áreas ditas experimentais e conceptuais, num contexto que terá sido, contra as expectativas da época, mais uma oportunidade de balanço terminal do que um momento de ruptura inaugural, mas que tem vindo a ser reconsiderado na presente conjuntura, graças às oscilações cíclicas das «sensibilidades» artísticas e às suas pulsões revivalistas. (...)
(2) Ver crítica de José Luís Porfírio, "De Belém a Serralves", Expresso/Cartaz de 12-07-1997
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