Hoje inaugura-se o Polo III da Trienal de Lisboa com a Exposição Monográfica Álvaro Siza no Museu da Electricidade (17h30). Às 21 no CCB conferência sobre a nova sede da Fundação Iberê Carmargo em Porto Alegre.
O Público publica um importante dossier no Ípsilon (sem acesso), com texto e entrevista de Alexandra Prado Coelho e um testemunho de Nuno Portas.
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O Museu de Santiago, inaugurado em 1993, é uma das suas obras de grande projecção. Por sinal, é o ano em que abriu o CCB e em que o projecto para o Museu de Serralves conhecia grandes dificuldades.
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SIZA “Construir com a luz” em Santiago de Compostela
Expresso/Revista de 02-10-1993 (com fotografias de António-Pedro Ferreira
Álvaro Siza Vieira orienta a visita à sua obra mais recente, o Centro Galego de Arte Contemporânea, inaugurado a 29 de Setembro, junto a um grande convento barroco, no centro histórico da cidade: a busca do essencial numa construção guiada pela rezão. É também a oportunidade para recordar outro museu, anuciado para Serralves – Ver Serralves 1993)
SÓ AS CÂMARAS de vídeo do sistema de segurança interrompem a absoluta
regularidade das paredes das salas de exposição. Do alto vem uma luz
solar que será eternamente constante - coada, controlada e completada
pela iluminação artificial: «É preciso que ela não venha ferir a
minúcia de Vermeer, rivalizar com a luz violenta de Goya, ou com a sua
penumbra, desfazer a quente atmosfera do Ticiano, sempre pronta a
esbater-se, nem a luz universal de Velázquez, ou a luz dissecada de
Picasso» (1).
Não haverá Vermeer ou Velázquez em Santiago de Compostela, mas a luz
imutável e as paredes brancas, rigorosamente ortogonais, constroiem os
espaços de exposição permanente do Centro Galego de Arte Contemporânea
(CGAC). O edifício inclui também um auditório e uma biblioteca de arte,
várias galerias para mostras temporárias, salas de reunião e de
serviços, depósitos e oficinas, livraria e cafetaria (o custo total da
construção oscilará entre os 2,5 e os 3 milhões de contos): é a mais
recente obra de Álvaro Siza Vieira e foi inaugurada na passada
quarta-feira por uma retrospectiva de Maruja Mallo, pintora nascida em
1902, em Viveo, Lugo, com uma discreta carreira madrilena e
internacional
O arquitecto orienta a visita ao coração do seu último projecto: «No centro das salas há uma plataforma sobre a qual estão todos os elementos que tornam complicados os espaços em edifícios destes: grelhas de ar condicionado, gambiarras de iluminação, etc. É um sistema que engloba a iluminação, natural e artificial (mesmo de dia há sempre um reforço para equilibrar a distribuição da luz), e o tratamento de ar. Tudo isso não se vê e portanto a sala fica definida pelo essencial: paredes, tecto e pavimento».
Essas plataformas suspensas são uma intervenção arquitectónica muito forte e, ao mesmo tempo, a condição da serenidade radical que Siza exige das salas de exposição. E é nessa prioridade conferida ao domínio da luz e na conjunção só aparentemente contraditória entre a visibilidade e o apagamento da arquitectura que parece assentar todo o desenho deste edifício encomendado em 1988 pela Junta da Galiza. Uma intervenção exemplar num sector que é um dos temas mais em evidência, e mais polémicos, da arquitectura contemporânea: o museu.
«Para muita gente - diz Álvaro Siza -, quando se fala em qualidade de arquitectura liga-se isso à ideia de uma arquitectura expressiva, muito marcada, que seria uma concorrência relativamente ao que se vai expor. E não é assim. Uma das qualidades da arquitectura é o doseamento do seu grau de expressão: pode ser um discurso de grande impacto ou, pelo contrário, noutras situações, pode ser de uma grande serenidade, quase de um apagamento.»
NÃO HÁ capital ou cidade de média importância (ver caixa sobre Serralves...) que não pretenda representar por um centro de arte, de preferência contemporânea, a sua dinâmica de crescimento, e ganhar com a assinatura ostensiva de um grande arquitecto internacional, mesmo quando faltam as obras que preencherão as suas paredes, a entrada nos roteiros do turismo cultural. Só em Espanha, depois de Madrid (Rainha Sofia e Thyssen), de Valência (IVAM) e Las Palmas (CAAM), outros novos museus se constroiem ou projectam em Barcelona (encomendado a Richard Meier), Bilbao (a Frank Gehry) e Sevilha. Na Galiza, a disputa da primazia entre as cidades de Santiago e La Coruña passa também por uma competição entre centros de arte.
Por tudo isso, as relações entre a arquitectura do museu como obra de arte em si mesmo e as outras obras de arte que devem constituir o seu recheio não são, em geral, pacíficas. Como afirmar a qualidade arquitectónica e também a dimensão cívica e simbólica do edifício-museu, que as cidades escolhem como seu emblema moderno e instalam no coração dos seus centros históricos, e, ao mesmo tempo, tomar por objectivo a criação das mais perfeitas condições de exposição? O espectáculo da arquitectura, o excesso da arquitectura, desde a rampa helicoidal do Guggenheim de F.L. Wright, é muitas vezes um concorrente demasiado agressivo da visibilidade das obras.
Siza reconhece o problema, mas o essencial, para ele, é não ter medo da arquitectura: «Não há dúvida que a arquitectura contemporânea, ou a evolução recente das cidades, mostra muito erro - é claro que há razões para isso, e não foram os arquitectos que ficaram subitamente sem capacidades mentais ou profissionais... Mas é um facto, e de tudo isso ficou um medo da arquitectura que é esterilizante. Por princípio, há quase a procura de uma arquitectura cinzenta, que não diga nada - tal como há também, por oposição, a atitude contrária, e eu atribuo ao medo da arquitectura algumas disparatadas explosões da arquitectura recente. Extremam-se os campos e a páginas tantas não é a razão, que é fundamental na arquitectura, o que conduz a sua construção».
Um edifício cuja construção é conduzida pela razão é, segundo Álvaro Siza, o resultado prático de uma teia de relações com o sítio em que se insere, com a história do espaço que ele vem alterar e com o programa funcional que deve cumprir.
Em Santiago, se as salas de exposição permanente são quadradas e rectangulares, todo o edifício é imediatamente percebido como um jogo diversíssimo de volumes irregulares e fragmentados, organizado em três pisos parcialmente desencontrados ao longo de dois eixos ligados em ângulo e terminados pelo corpo autónomo do auditório e da biblioteca. Nos seus 7000 metros quadrados de área construída, formando um estreito triângulo com entrada pelo ângulo mais apertado, voltado a Sul, apenas o uso dos materiais é constante: o granito de Santiago (a «pedra do país») no revestimento exterior, em placagem aplicada sobre uma estrutura mista em aço e betão, as paredes interiores brancas (de gesso cartonado) e os pavimentos em madeira ou em mármore grego («Tassos»), onde o branco surge raiado de cinzento.
A rigorosa ordem daquelas salas de museu ideal insere-se na constante variabilidade da geometria de todo o edifício; da máxima regularidade passa-se à fragmentação da volumetria interior e exterior, à agitação instável dos espaços construídos ou vazios, à diferenciação constante dos pontos de luz, à torsão dos eixos, à imprevisibilidade do desenho. Nada se repete (nem mesmo as placas do revestimento granítico, desenhadas no atelier), mas também nada aparece por efeito de uma linguagem codificada ou pré-estabelecida, nem nenhum pormenor é acidental ou inútil.
Dessa enorme complexidade formal, indissociável das razões que determinam as linhas estruturais e do estabelecimento de relações ou correspondências entre espaços contíguos, entre exterior e interior, entre paredes cegas e aberturas de luz, a fotografia não consegue dar conta senão em fragmentos isolados, e a palavra, mesmo a do autor, é apenas aproximativa. A relação com o espaço construído deve ser fisicamente vivida pelo corpo do visitante que o percorre, e, como um quadro ou uma escultura, a experiência sensorial da variabilidade da luz é um elemento essencial do edifício. Por isso, nos desenhos de execução do projecto, já em adiantada construção, Álvaro Siza continua a desenhar, apurando elementos, introduzindo revisões.
ESTÁ-SE em pleno centro histórico de Santiago, junto ao antigo convento de Santo Domingo de Bonaval, um monumento onde se instalou o Museu do Povo Galego. A intenção inicial era, aliás, que o novo centro de arte ocupasse discretamente um espaço recuado nos jardins do convento para evitar o confronto directo com essa presença patrimonial forte. Mas Siza trouxe o seu edifício para o exterior, fazendo-o mesmo ocultar integralmente, de alguns ângulos de visão, a fachada histórica.
Na sua opinião, «um edifício de tamanha importância pública não poderia ser escondido como se fosse uma espécie de anexo; era necessário, neste caso (noutros casos poderia não ser assim), trazê-lo à rua e colocá-lo, portanto, numa posição muito próxima do convento.» E, radicalizando o diálogo entre os dois edifícios, entre antigo e moderno, é exactamente diante do portal barroco que se abre o pórtico do CGAM, com a sua forma de átrio exterior limitado no topo sul por uma pala de pedra assente em duas pequenas colunas de ferro.
Se o novo edifício não se devia esconder é também porque ele é a oportunidade de ordenar toda a área envolvente, perturbada por intervenções anteriores que a tornavam um espaço sem nexo. «A organização inicial tinha sido destruída com o desenvolvimento daquele sector da cidade e portanto era necessário alguma coisa que viesse reequilibrar o conjunto, e não isolar o edifício do convento.» Para criar essa nova ordem, que não é a restituição do passado, foi decisivo conhecer a organização antiga desta parte da cidade: a abertura de uma rua tinha destruído o sistema anterior, incluindo o muro que rodeava o convento e algumas construções de serviço que existiam adossadas a esse muro elevado.
«Onde está a fachada (mas aqui o termo não serve)... digamos, a fachada com maior desenvolvimento ao longo da rua (que não é a fachada principal, não existe tal coisa neste caso), anteriormente havia um muro alto. Essa nova superfície ocupa a posição que antes ocupava o muro, de uma forma mais geométrica, evidentemente. Depois, entre o alinhamento da rua e a frente do convento, que não é paralela à frente sobre a rua, há um ângulo que faz uma espécie de leque. O edifício, no fundo, segue esse leque, deixando um espaço amplo entre o convento e o museu; esse espaço vai afunilando, de Norte para Sul, à medida que se aproxima do topo do edifício e faz uma espécie de porta sem que haja porta. Existem dois eixos de desenvolvimento dos espaços fazendo entre si um ângulo e, como optei por que as salas fossem muito regulares, quadradas ou rectangulares, facilmente se vê que resulta entre os dois eixos de desenvolvimento um espaço triangular que é o centro de distribuição pelas zonas do programa.»
ESSE ÁTRIO triangular que amplia, já no anterior, a área de recepção dos visitantes é um dos lugares mais fascinantes de todo o edifício, uma forma vazia com uma forte presença emblemática. É um espaço de luz, que se eleva, como o interior de uma grande proa, até penetrar no piso superior - e é aí visível em negativo como uma cunha quase cortante que separa as zonas de exposição e de serviços dos dois eixos longitudinais do edifício. O desnível do tecto e a interrupção da parede (rasgada pela passagem de um corredor do segundo piso e pela janela que se recebe a luz do terraço), estabelecem um movimento de correspondência subtil com o jogo definido no exterior da «fachada» pela relação entre uma rampa suave que dá acesso à entrada e uma janela muito longa que é semi-encoberta por uma pala revestida a pedra.
Outro dos elementos mais marcantes do edifício é o referido terraço, também totalmente revestido a granito: é um miradouro amplo sobre a cidade e o próprio convento e deverá servir igualmente para expor esculturas. No seu espaço irregular, interrompido pelo relevo exterior de salas de depósito, o volume de uma pequena pirâmide é já uma forma escultórica deixada pelo arquitecto - marcação de um eixo vertical do edifício, elemento de diálogo com a torre barroca do convento e lugar de um pequeno lanternim que introduzirá uma variação de luz no corredor do piso inferior.
Nada é gratuito no desenho formal do edifício, onde a tensão constante entre o construído e o vazio é criada por descontinuidades bem marcadas que revelam a organização autónoma dos três corpos do CGAC (os dois eixos e o auditório, sobre o qual assenta a biblioteca) e a necessidade de canais independentes de circulação pública.
«A fragmentação dos volumes tem correspondência em certas necessidades do contexto ou do programa - de tudo, simultaneamente ou alternadamente. Noutras situações um edifício não tem nada que ter essas quebras porque nada as justifica, pelo contrário. Mas neste caso, realmente, há umas quebras, umas descontinuidades na articulação dos volumes, que correspondem a determinados aspectos planimétricos, ou altimétricos, e também à organização do programa, ao facto de certas partes do edifício terem de funcionar autonomamente, etc. Esse desenvolver-se da arquitectura vem de coisas exteriores e de coisas interiores, que estão sempre em luta e há que fazê-las acertar. Tudo nasce muito de aspectos funcionais, para dizer um palavrão que não é muito caro nos dias de hoje, mas que continua a ser uma grande disciplina.»
A leitura dessa fragmentação das formas pode prestar-se a dois equívocos que Siza insiste ainda em esclarecer. Em primeiro lugar, ela não tem nada a ver com as fórmulas da arquitectura desconstrutivista: «Os valores que o desconstrutivismo põe em ênfase neste momento são valores constantes da arquitectura. A arquitectura vive sempre de uma série de perspectivas de aproximação que incluem todos esses 'ismos'. O que acontece é que em determinada altura se cria um vício na utilização de algum dos muitos instrumentos de que se faz a arquitectura.»
Contrariado o hábito de pensar a arquitectura como um ziguezague de tendências ou modas, Siza também não quer que o seu próprio trabalho seja visto como algo de constante ou codificado:
«Eu não sou muito partidário do termo 'constantes' da arquitectura deste ou daquele arquitecto, porque a arquitectura está condicionada e serve alguma coisa de não fechado em si mesmo, que é a cidade. A arquitectura é um problema de relações, não é um problema de objecto. Nalguns casos justificam-se, na perspectiva de quem está a projectar, determinadas quebras ou descontinuidades, noutros casos justifica-se o contrário, depende do contexto - é um palavra que hoje surge muito e acaba até por ser uma mania e um lugar comum, mas é certo que a maneira como é construida a arquitectura depende muito do sítio onde ela surge e de muitas outras condicionantes.»
(1) De um texto de A. Siza sobre museus, in «L'Architecture d'aujord'hui», nº 278, Dez. 1991.
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