Siza “Ofício arquitecto”
Retrospectiva itinerante vinda do CGAC, Compostela, para o CCB em 1996
e, em Setúbal, a Escola Superior de Educação , projecto de 1986-1994 (com duas fotos do José Manuel Rodrigues)
EXPRESSO/Revista de 28-09-1996 , pp. 96-99
SANTIAGO de Compostela tem um novo lugar de peregrinação, desde 1993: o
museu/centro de arte edificado no limite do núcleo histórico da cidade.
Aí se instalou o Centro Galego de Arte Contemporânea (CGAC) , cuja
programação cosmopolita passou igualmente a grangear uma notoriedade
própria, o que é particularmente curioso se se atender à situação
periférica da Galiza. Em homenagem ao arquitecto, o CGAC produziu em
1995 uma exposição retrospectiva que se tornou, por sua vez, um produto
de exportação galega, ampliando mais ainda a projecção do edifício e do
Centro. O museu é uma das obras mais significativas de Álvaro Siza e
talvez a mais importante encomenda institucional até agora construída.
Por outro lado, a Galiza da Fraga Iribarne tem feito de alguns recentes
projectos arquitectónicos exemplares, programados como edifícios
transformadores de cidades, a bandeira de uma nova dinâmica do
desenvolvimento regional.
É essa exposição itinerante, prometida a um longo périplo
internacional, que o Centro Cultural de Belém agora acolhe, depois de
ter sido inaugurada em Matosinhos. Desde uma primeira mostra que se
pôde ver em 1984, vinda da Holanda e documentando a carreira inicial do
arquitecto, é a primeira oportunidade para fazer uma abordagem
retrospectiva da sua obra mais recente, actualizando a exposição
promovida pelo Centro Pompidou, em Paris, com obras de 1980-90,
apresentada em Madrid mas não em Portugal.
Dedicada às obras construídas e também aos projectos não concretizados, entre 1980 e 1995, a mostra permite seguir o trabalho de Álvaro Siza após a internacionalização da sua carreira, a partir das habitações sociais realizadas para Berlim ou para Haia e da vitória em alguns concursos de grande projecção. Os prémios que lhe foram atribuidos em 1988, pelas Fundações Alvar Aalto e Mies van der Rohe, coroados em 1992 pelo Prémio Pritzker da Fundação Hyatt, de Chicago, considerado o equivalente a um Nobel, são a expressão maior dessa chegada ao topo do «star-system» da arquitectura mundial. Entre nós, entretanto, acaba de lhe ser atribuido o prémio Secil de Arquitectura pela recuperação do Edifício Castro e Melo na zona do Chiado.
Em Matosinhos, a exposição foi apresentada numa versão ampliada para integrar as primeiras obras projectadas pelo arquitecto para a sua cidade natal, em meados dos anos 50. Além de acolher os materiais vindos de Santiago, foi completada por uma biografia fotográfica, desenhos de juventude e outros documentos, com o que também se assinalou o lançamento das actividades do Centro de Documentação Álvaro Siza, criado pela câmara local como embrião de futuro museu da sua obra, mas, por vontade do arquitecto, com projecto alargado a um âmbito menos individualizado.
A cave-garagem da Câmara, adaptada para o efeito no também assinalável edifício projectado por Alcino Soutinho, foi o cenário adequado — como um atelier ou oficina onde se apresentasse o desenrolar de uma «work in progress» (ver artigo de José Manuel Fernandes na «Revista» de 10-08-96) — para a exposição de objectos que são sempre e apenas materiais de trabalho e não obras de arte em si mesmos. A arquitectura, como Siza tem repetido, expõe-se a si própria apenas nos edifícios construídos; pode propor-se como processo de projecto nos desenhos e maquetes, representar-se por aproximação através da imagem fotográfica, mas resiste sempre como objecto apenas acessível à experiência da habitação física de um espaço complexo e condicionado, com as suas formas, materiais, cores, luzes, escalas, envolvente, contexto, etc. A mediatização das suas criações surge, por isso, acompanhada pela explícita prevenção quanto à resistência da arquitectura aos efeitos de tradução-redução impostos pelos «media», numa atitude convergente com a rejeição das classificações esquemáticas que sobre a mesma obra se têm sucessivamente produzido.
Em Lisboa, o CCB optou pela utilização de um espaço menor, habitualmente destinado às exposições de arquitectura, o que — embora sem diminuir a qualidade da montagem e a importância do acontecimento — condicionou o número de projectos mostrados e igualmente o volume da documentação exposta sobre cada um deles, obrigando ainda à utilização de um segundo local para as peças de mobiliário do arquitecto. É possível que se justificasse a escolha de outro piso do Centro, como sucedeu com as excelentes condições de espaço que foram oferecidas a Manuel Álvarez Bravo, quando a sua exposição não se conteve no espaço tradicional da fotografia.
UM SALTO A SETÚBAL
ENTRETANTO, a mostra de Lisboa conta com o excepcional trunfo de um segundo pólo visitável num outro edifício projectado por Álvaro Siza, a Escola Superior de Educação de Setúbal. Por razões pouco claras (dependentes do CGAC?), esse prolongamento da exposição, organizado em colaboração com o arquitecto e o Centro de Documentação de Matosinhos, com o apoio do CCB, não está, no entanto, devidamente publicitado: apenas duas fotografias de José Manuel Rodrigues, expostas sem legenda no final do percurso expositivo, remetem subliminalmente para a escola de Setúbal, mas nenhuma pista é facultada ao visitante.
A passagem da exposição ao edifício, da representação da arquitectura para a experiência directa de um lugar construído, é uma oportunidade fascinante. Situada na periferia da cidade (direcção Praias do Sado), na orla de uma reserva natural e integrada na paisagem, que já é também uma paisagem sub-urbana parcialmente degradada, a escola divisa-se entre um bosque de sobreiros, quase oculta no declive de uma colina, antes de se impôr a presença afirmativa dos seus volumes brancos e geométricos — a forma abstracta do objecto arquitectónico destaca-se então com clareza e sem mimetismo, como ruptura sobreposta ao ambiente natural. O visitante encontra um corredor descoberto que nasce junto ao parque de estacionamento, pintado de vermelho no interior e desenhado em ângulo; avança, sob um frágil pórtico que talvez não distinga de imediato, até um pátio com relvado, franqueado pelos dois pisos de galerias dispostas em «U», para onde se abrem as salas de aula, e, ao fundo, vê uma parede central semi-oculta por um imenso sobreiro centenário, recortada por livres formas escultóricas, marcadas pela diferença das únicas linhas curvas, por onde penetrará num deslumbrante átrio interior, assimétrico e oblíquo dentro de uma grelha rigorosamente ortogonal, que se abre para um segundo «U», de menor dimensão.
No tecto, uma abertura oval projecta um cone de luz que segue o movimento do sol, articulada com um óculo aberto para o piso superior. Por todo o edifício, a modelação da luz, cortando o impacto excessivo do sol ou captando o máximo de luminosidade natural, reconhece-se como um dos instrumentos privilegiados do desenho arquitectónico — em particular nas diferentes soluções adoptadas no anfiteatro, na biblioteca e no ginásio, construídos como corpos independentes adossados à estrutura principal.
Inaugurado em 1993 e nesse ano distinguido com o Prémio Nacional de Arquitectura da Associação de Arquitectos Portugueses, o edifício é hoje valorizado por muitos dos que o utilizam como um património a defender e um pólo de modernidade numa região empobrecida e degradada. A presença constante de visitantes estrangeiros, nomeadamente de estudantes de arquitectura vindos dos pontos mais distantes do globo, e também a consciência do impacto positivo das condições arquitectónicas e ambientais sobre a vida escolar, levaram o Conselho Directivo da ESE a empenhar-se no aprofundamento de uma relação colectiva com a arquitectura, que passa pela criação de um centro documental dedicado a A. Siza e pela defesa da classificação patrimonial do edifício. Em causa está também a viabilização de algumas intervenções necessárias e de pequenos acabamentos, na área do mobiliário, ou o tratamento acústico do átrio e do bar, com condições agravadas pela duplicação da população escolar prevista.
No átrio, ele próprio concebido para funcionar como uma pequena galeria, mostram-se uma breve fotobiografia, desenhos de juventude (bandas desenhadas, os primeiros retratos, etc), o projecto do próprio edifício, esquissos de Évora (Malagueira) e ainda móveis concebido para a própria escola. Mas é a visita ao edifício que especialmente importa, contando com a disponibilidade de professores e estudantes e, durante o fim-de-semana, dos seguranças, já habituados ao papel de guias.
IDEIA E REALIZAÇÃO
Regresse-se então ao CCB, sem deixar de assinalar, entretanto, que o catálogo editado pelos comissários da exposição, Pedro de Llano e Carlos Castanheira, deverá ser utilizado como uma outra pista indispensável para entender a originalidade de uma obra que, sem produzir um corpo doutrinário estrito, é sustentada por uma constante reflexão sobre a prática da arquitectura, sobre os seus múltiplos factores condicionantes e a difícil liberdade de projectar, sobre as múltiplas dimensões de um ofício que não se pretende encerrar na sua especialização, mas antes se considera uma disciplina necessária à construção colectiva de uma vida de maior qualidade. Uma extensa entrevista com A. Siza e uma antologia dos seus textos e desenhos — para além da documentação sobre numerosos projectos — ajudarão a afastar a ideia de uma inultrapassável dificuldade que opõe o leigo aos alçados, cortes e plantas dos projectos desenhados. «A arquitectura é um tema escamoteado aos cidadãos por detrás do simulacro do mistério, quando na realidade é um tema discutível por todos e com vantagens evidentes», diz o arquitecto.
É para fazer da arquitectura uma prática comunicável que as exposições da sua obra recusam os habituais efeitos de teatralização dos objectos exibidos, não subsituindo a crueza dos documentos de trabalho pela atracção simplista do design expositivo. O que aí interessa, precisamente, é mostrar, diz Siza, que «não é possível reproduzir a qualidade, a densidade de um grande edifício de arquitectura», que «não é possível representar a arquitectura, ou substituir a experiência da arquitectura, porque há que visitar os edifícios, habitá-los, para os conhecer». Por isso mesmo, uma exposição é, acima de tudo, um meio de «mostrar o longo percurso de um projecto, como se começa e onde acaba o processo do desenho», uma vez que dela está excluída, por definição, a realidade da construção.
O que se expõe é a realidade prática do trabalho do arquitecto, no caminho que vai da primeira ideia — do «'olhar o sítio' e fazer um desenho antes de calcular os metros quadrados de área a construir» — até à fase da construção, e também todo o processo de projectar, toda a complexidade dos desenhos técnicos como mediação essencial para que a ideia possa ser realizada.
Por isso, para cada edifício exposto, são sempre materiais muito diversos que se apresentam, sublinhando as condições de implantação de um ante-projecto, com as curvas de nível do terreno ou o perfil da zona envolvente, mostrando o desenvolvimento de um esquisso ou apresentando o traçado rigoroso de um desenho construtivo, onde podem ainda nascer novos esquiços para corrigir uma construção em curso. Noutros casos, é antes a distribuição da luz o tema em evidência, no detalhe de um lanternim ou lucernário, a pormenorização de uma trapeira do novo Chiado, ou um desenho de caixilharias.
Em vez do «simulacro do mistério» é a arquitectura como ofício que se expõe, com a clareza e a complexidade de um trabalho sempre em evolução por diferentes tipologias e contextos, que recusa fixar-se numa fórmula estilística ou numa imagem de marca porque a qualidade de um projecto depende da densidade dos problemas que se apresentam ao arquitecto e projectar é «retirar ao que é construído a evidência em relação aos factores implícitos na arquitectura».
Diz Siza: «Antes de mais, aprecio e procuro na Arquitectura a clareza, tanto quanto não aprecio o simplismo. Simplicidade e simplismo são coisas sabiamente opostas, assim como unidade e diversidade não o são. A simplicidade resulta do domínio da complexidade e das contradições internas — e também externas, quando uma nova estrutura se confronta com a que a precede e rodeia, assumindo um destino não necessariamente previsível» («Fragmentos de um discurso»).
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