No ano do centenário da Bienal, o ano de Jean Clair, Portugal esteve representado por José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis e Rui Chafes, sendo comissário José Monterroso Teixeira, então director de Exposições do CCB.
Publicavam-se à data duas noticias sobre a representação portuguesa (chegara a convidar-se Paula Rego e Álvaro Siza para projectar o Pavilhão de Portugal) e dois textos extensos sobre a bienal, em semanas consecutivas.
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"Veneza, Cem anos de guerrilha"
EXPRESSO/Revista de 17-06-95
A Bienal de Veneza faz cem anos, mas, mais do que a celebração do centenário, esta é a bienal de Jean Clair, o primeiro estrangeiro a ser nomeado director do sector das artes visuais da Mostra e, certamente, o mais polémico personagem de todo o actual universo artístico. Polémico, note-se, já não significa o mesmo que vanguardista, numa situação geral em que «a tradição do novo» é promovida directamente pelos museus e outras instituições oficiais: quando a inovação ou «arte jovem» são o centro e não as margens do sistema, o que é controverso, hoje, é afirmar uma relação de distanciamento crítico perante as regras de funcionamento do mundo da arte.
Director do Museu Picasso de Paris e especialista de Marcel Duchamp, ex-crítico de vanguarda — hoje tratado como reaccionário e «arrependido», ou «conhecido pelas suas reservas perante as novas gerações e sobre a própria definição da modernidade», segundo uma informação oficial francesa —, ensaista de formação psicanalítica, Gérard Regnier/Jean Clair foi o organizador das grandes exposições do Centro Pompidou sobre Duchamp, Magritte, Balthus, Bonnard e também das mostras retrospectivas «Les Réalismes, 1919-1939» e «Vienne, L' Apocalypse Joyeuse».
A sua ruptura com o «mainstream» fez escândalo em 1983, graças à publicação de Considerations sur l'État des Beaux-Arts — Critique de la Modernité, um panfleto por vezes excessivo e obviamente nostálgico onde fazia um terrível balanço do «progresso» das artes, da «tradição da ruptura» instituída pela modernidade e também da própria modernidade, enquanto estética da «innovatio», como um dos dois grandes flagelos do primeiro meio século (o outro foi o nazismo). À «institucionalização acelelerada de novas categorias estéticas como o não-importa-o-quê e o quase-nada», que dominariam o curso da arte desde os anos 60, contrapunha Jean Clair o «regresso ao 'métier' e à figura», defendendo a ideia de renovação, que não rejeita a tradição, como base de um possível «renascimento», contrário à fatalidade hegeliana da morte da arte.
Colocar Jean Clair à frente da Bienal «é como entregar um jardim de infância à guarda de Herodes» — assim resumiu um crítico italiano toda a expectativa que antecedeu a inauguração. O balanço crítico dos estragos e a previsão dos seus efeitos a longo prazo serão agora terreno aberto para a contraposição de diferentes pontos de vista, se não vingar a táctica do silêncio que tem respondido a muitas outras vozes incómodas, como as de Octavio Paz, Robert Hughes, Thierry de Duve, Rainer Rochlitz, etc.
De qualquer modo, parece inquestionável que o papel central de Jean Clair nesta Bienal resulta tanto da importância excepcional da mega-exposição histórica que directamente organizou para Veneza, como da notória fragilidade da grande maioria obras apresentadas nos pavilhões nacionais e nas muitas exposições paralelas que compensaram a suspensão do «Aperto», o sector oficial dedicado desde 1980 aos jovens artistas.
ANTROPOMETRIAS
O centenário das Exposições Internacionais de Arte (a designação Bienal de Veneza inclui, de facto, os festivais anuais de cinema e os outros programas bienais dedicados ao teatro, à música e, mais recentemente, à arquitectura) podia ter proporcionado uma edição rendida à auto-celebração do passado da Mostra ou uma revisitação conformista da história do século através de um qualquer inventário de obras-primas ou de movimentos artísticos.
Jean Clair, no entanto, conseguiu evitar os riscos de um programa apenas comemorativo, apropriando-se da tradição temática das últimas bienais para apresentar uma gigantesca exposição em que o itinerário retrospectivo constitui, de facto, a defesa de uma original e polémica reconsideração da história, pensada contra a tradição formalista, e é também uma desencantada meditação sobre o «declínio» que, cem anos depois, se sucederia à decadência do anterior «fin de siècle».
«Identidade e Alteridade — Imagens do Corpo, 1895-1995» é um projecto onde Clair retoma o tema da exposição «L'Âme au Corps», que apresentara em Paris, no Grand Palais, no final de 1993, partindo do estudo da inter-relação das formas de representação do corpo humano nos territórios das artes e das ciências (que nunca foram estanques). O itinerário vai do positivismo e do triunfo da antropologia normativa, que vieram dar o golpe de misericórdia ao últimos vestígios do culto das proporções ideais dos modelos clássicos, até uma actualidade que seria definida quer pelas novas tecnologias da imagem digitalizada e interactiva, quer pela «predominância dos temas da doença, do sofrimento, do sexo impossível e da morte» (J.C.).
Toda a exposição é marcada por uma defesa acerba da permanência dos temas da figura humana, em especial do nu e do auto-retrato, ao longo de um século visto como dominado pelo império da abstracção, que Clair tende a ver apenas como um afloramento de uma pulsão iconoclasta também permanente através dos tempos, valorizando no seu desenvolvimento alguns artistas, ou fases das suas obras, que são habitualmente excluídos da história canónica das inovações. Mas quem esperava a ilustração de um novo «regresso à ordem» encontra um trajecto guiado por uma interrogação trágica sobre a dificuldade crescente dessa vontade de representação do corpo, entre os dados da informação científica e da fotografia, a tentação da máquina e os desastres da guerra, as normas totalitárias e as pulsões da abjecção, no qual se incluem numerosos artistas com projecção nos anos mais recentes. Afinal, a exposição parece mais identificada com o «espírito do tempo», na sua evidente atracção pela escatologia e pela violência, do que com a sacralização da história e das disciplinas tradicionais.
Distribuida em três núcleos (Palácio Grassi, Museu Correr e Pavilhão Itália, com uma extensão e uma importância que justificam uma próxima abordagem autónoma), a exposição conta ainda com uma produção anexa, «O Eu e o seu Duplo», dedicada a «Um Século do Retrato Fotográfico em Itália». Afinal, 1995 é também o ano do centenário do bilhete de identidade, tal como da descoberta do raio X, da radiactividade e do cinema.
É uma outra grande exposição, essa promovida pela Comuna de Veneza, que pretende ser a directa evocação do passado da Bienal, através de alguns dos seus momentos mais fortes, das consagrações oficiais e das aquisições para os museus italianos, dividida em dois núcleos complementares dedicados à pintura e escultura, desde 1895 até 1968 (no Palácio Ducal), e às artes decorativas, que estiveram presentes na Bienal até 1972 (em Ca'Pesaro).
«Veneza e a Bienal: Itinerários do Gosto» é um muito interessante olhar sobre as convenções académicas dos primeiros tempos da Mostra e sobre a sua lenta abertura a outras inquietações artísticas (e, por ausência, também sobre as relações de rejeição de correntes como o cubismo, o futurismo e a abstracção), sobre as distâncias entre a tradição italiana e a afirmação de novos valores internacionalistas, mantidas até ao final da 2ª Guerra, e, em geral, sobre a relatividade da ideia de obra-prima. A importância do simbolismo no processo italiano de oposição ao academismo dos Salões e a prolongada especificidade de uma produção plástica que, sob complexos circunstancialismos políticos, tentou manter uma ligação viva com os exemplos clássicos são outros dados curiosos que se impõem ao espectador, numa exposição que não visa exactamente uma celebração da arte italiana, mas em que também dominam os temas do corpo e se insinua, por outro lado ainda, a questão essencial da relação interrompida entre as «artes maiores» e as artes decorativas.
São questões afins que marcam o pavilhão italiano, onde as presenças do cenógrafo Pier Luigi Pizzi e do estilista Roberto Capucci motivam estranhas contestações. Acompanhado pelo comité de consultores da bienal (Maurizio Calvesi, Gillo Dorfles, Gabriella Belli, Giulio Macchi e Hans Belting), Clair apresenta um conjunto heteróclito de artistas, onde as suas escolhas pessoais se encontram entre as mais controversas — Ida Barbarigo, Ruggero Savinio e um Vito Tonguiani cuja estatuária desportiva não é fácil de distinguir dos realismos totalitários. Em geral, parece querer-se documentar, acima de tudo, a diversidade das gerações e tendências que coexistem no terreno, de Clemente à escola dos anacronistas em versão neo-metafísica (Paola Gandolfi, Stefano Di Stasio), da tradição abstracta à versão kitsch dos «nuovi-nuovi» (Luigi Ontani), numa reafirmação da autonomia italiana perante as circulações internacionais ou, em última instância, numa oposição provocatória face ao ritmo de visão imposto pelas circunstâncias próprias de uma mega-exposição.
PRÉMIOS
Mas a 46ª edição da Bienal (houve interrupções durante as duas guerras, atrasando a numeração do centenário) são também os 31 pavilhões estrangeiros presentes nos Giardini, mais as representações de outros 19 países que ocupam galerias, igrejas e palácios da cidade — como sucede com Portugal, regressado a Veneza depois de uma última participação em 1986. E ainda as incontáveis iniciativas paralelas com que os países mais ricos desdobram as suas representações e propõem os seus mais jovens artistas. Como dar conta dessa diversidade infindável de participações individuais, de referências culturais mais ou menos exóticas, de gerações e de projectos, num tempo que não parece propício à renovação dos estilos colectivos?
A lista dos prémios oficiais pode constituir uma primeira linha de abordagem, em que se volta a deparar com a forte influência de Jean Clair, ainda que este tenha afirmado a sua discordância com a atribuição de distinções: «Reinstauremos os prémios a partir do momento em que o academismo seja restabelecido nas artes plásticas. Numa situação em que não há ensino, excepto o ensino da dúvida, se tal coisa pode existir, a ideia de um palmarés não tem rigorosamente nenhum sentido» (in «Journal des Arts»). Para o director da Bienal, esse futuro academismo será «o regresso a uma comunidade de indivíduos participando de uma mesma profissão (métier) e partilhando os mesmos ideiais».
De qualquer modo, um juri oficial em que se destacaram a presença do espanhol Thomas Llorens e a ausência de Robert Hughes, ainda anunciado nos catálogos, atribuiu os leões de ouro de pintura e escultura a Ronald B. Kitaj e a Gary Hill, ambos apresentados na exposição histórica, e o do melhor pavilhão ao Egipto.
Em Kitaj, pintor americano exilado em Londres e Paris, que esteve no início dos anos 60 associado à afirmação da Pop britânica, foi distinguida «a coerência de uma pesquisa que redescobre no 'Moderno' os trilhos da pintura europeia e traz uma nova abertura à imaginação colectiva», representada com obras dos anos 76-77 e 84, entre outros artistas que cultivam a pintura de modelo vivo, como Hockney, Lucien Freud, Lopez García e Avigdor Aricka. Mas a distinção também teve certamente em conta a retrospectiva que circulou no ano passado por Londres, Nova Iorque e Los Angeles (sendo, aliás, objecto de uma hostilidade da crítica britânica que atingiu proporções raras) e o próprio papel de Kitaj em defesa da figuração e da pintura da «Escola de Londres», por ocasião da exposição «The Human Clay», de 1976, cujo título é retomado por J.C. nessa secção da mostra retrospectiva. Ao lado de Hockney e Aricka, Kitaj é realmente um dos maiores pintores vivos, e também um dos menos vistos.
Por seu lado, Gary Hill, também norte-americano, será um exemplo maior da necessidade de continuar a interrogar a presença e a representação do corpo através das novas tecnologias da imagem. Comparece com uma instalação inédita, Wither Shines, em que dois ecrãs limitam um espaço negro cujo chão é ocupado por um labirinto de barras de aço, onde a passagem dos espectadores desencadeia a audição de um texto bíblico; tal como na obra que se pôde conhecer em «Multiplas Dimensões», no CCB, os meios mais sofisticados são utilizados com uma deliberada depuração de efeitos, fazendo da presença física a origem de uma inquietante interrogação sobre a eficácia da imagem e da comunicação.
Entretanto, o mesmo interesse pelas pesquisas tecnológicas justificará também três das menções honrosas concedidas a Richard Kriesche (Austria), Jehon Soo Cheon (Coreia) e Hiroshi Senju (Japão), que apresentavam instalações com recurso à processos informáticos, ao vídeo e à fotografia microscópica (ver foto). Uma outra menção faz a sempre conveniente distinção de um italiano, Nunzio, enquanto a irlandesa Kathy Prendergast mereceu o prémio para um artista de menos de 40 anos, atribuibuido a uma série de pequenos mapas desenhados onde a malha urbana se pode ver ambiguamente como ilustrações anatómicas — o corpo, de novo.
Claramente político, ainda que as obras expostas consiguam controlar as marcas do exotismo e da produção dependente que são tão comuns aos países periféricos, é o Leão de Ouro atribuido ao Egipto, cujo pavilhão, segundo o juri, «propõe com êxito a integração num complexo itinerário arquitectónico da obra de três jovens artistas que associam a tradição da arte moderna ocidental com antigos modelos da cultura egípcia». Único representante do mundo árabe, o Egipto é um país fortemente ameaçado pela pressão do fundamentalismo, que no discurso de Jean Clair surge como uma nova e muito próxima ameaça iconoclasta que paira sobre a Europa: «Quando vemos o que se passa na Argélia... é todo este nosso sistema cultural centrado sobre o culto da imagem que pode, dentro de dois ou três decénios, ser totalmente varrido.»
GEOGRAFIAS
Entretanto, a apresentação de artistas consagrados revela-se uma estratégia comum a vários países — não se sabe se em resposta à crise, se como aproximação ao possível gosto de Jean Clair. É o caso do escultor César, apresentado pela França, que consegue ainda surpreender quem já não esperava mais do que a repetição de um formulário vulgarizado. Uma acumulação de compressões de automóveis com 540 toneladas (o título) impõe a sua monumentalidade no espaço interior do pavilhão com um poderoso acerto de escala e também com a energia de uma certa picturalidade assumida pela parede de sucata; em paralelo, alguns esmagamentos parciais de Citroen ZX novos, negros e reluzentes, oferecidos pela marca, apresentam-se como peças de parede, formalmente eficazes e impressivos como manifestação de um consumo absurdo.
O pavilhão britânico, por seu turno, apresenta uma vasta antologia de Leon Kossoff, outro dos pintores da «Escola de Londres», em cujas telas se repete obsessivamente um reduzido leque de opções temáticas directamente referidas a um quotidiano pessoal — retratos, nus, paisagens urbanas vista da janela, estações de metropolitano —, tratadas com pesadas sobreposições de matéria e um desenho esquemático. Nessa contradição insinua-se a ideia de uma construção laboriosa e o congelamento de um estilo, embora se esteja sem dúvida perante um respeitável pintor.
Mais débeis são as opções históricas da Espanha, com o pintor Eduardo Arroyo e o escultor Andreu Alfaro a revelarem apenas grandiosas condições de produção. Takis, apresentado pela Grécia, encerrou o pavilhão com uma pose contestária, destituida de sentido para quem souber que a sua obra há muito se orientou para a intervenção em espaços exteriores; a originalidade das construções electromagnéticas ou dos sinais luminosos e sonoros, afirmada desde os anos 60, mereciam uma mais bem calculada representação.
Outro escultor consagrado, esse americano de ascendência italiana, Mark Di Suvero, ocupa com sete gigantescas obras as margens do Grande Canal, num projecto acolhido pela bienal à margem da representação oficial. As pesadas vigas de aço industrial elevam-se com a leveza de desenhos construidos no espaço, que, por vezes, a cor vermelha acentua ainda mais, associando a monumentalidade da escala urbana a elementos móveis que baloiçam lentamente com o vento. Entretanto, o pavilhão dos Estados Unidos é ocupado por uma série de instalações video de Bill Viola, pretenciosas ou dificilmente observáveis nas condições de um desfile constante de espectadores.
Na mesma área do vídeo é particularmente curioso o pavilhão da Suiça, onde Peter Fischli e David Weiss apresentam os seus Arquivos Panópticos, visíveis em 12 ecrans tv em emissão permanente. São cerca de 80 gravações de mais de cem horas de registo, feito em tempo real, de viagens ou de observação de situações de trabalho, lazer, espectáculo, desporto, etc: «em vez de tornar visível o invisível, como pretende a tradição da arte, F. & W. tornam invisível o visível (o quotidiano), registando-o nas suas longas sequências filmadas» (do catálogo). Com uma aparente natureza de «ready mades», repousantes no imenso itinerário da Bienal, os filmes contrariam os efeitos estetizantes geralmente procurados pela arte-video e ganham a cumplicidade do espectador numa situação em que toda a expectativa é anulada a favor de uma continuidade não ficcional, neutra e inexpressiva.
Entretanto, um outro artista suiço, Christian Marclay, ocupa toda a nave de uma igreja com gigantescas ampliações de banais fotografias de amadores, impressas sobre finíssimos véus, mostrando-se as respectivas provas originais em cada um dos altares. Aqui, uma mesma indiferença das imagens apropriadas, testemunhos de situações privadas, contrapõe-se a uma eficaz ocupação de um espaço carregado de outros sentidos.
DESCOBERTAS
No plano das descobertas gratificantes, raras na bienal, situa-se o artista dinamarquês John Olsen (1939). Apresenta uma muito extensa produção de desenhos, gravuras, fotografias, esculturas, «assemblages» e vitrinas de objectos encontrados, que constituem um universo original de criações intimamente ligados a uma existência solitária de caçador e recolector, à margem da cultura urbana. Cadáveres de animais, plantas mortas e materiais muito diversos consumidos pelo tempo e pelo mar são absorvidos numa prática de apropriação e reciclagem permanente, que parte de referências de uma formação artística tradicional (mais evidente no desenho) para o despojamento de uma experiência muito directa dos ciclos da vida e da natureza. As esculturas partem da observação de formas animais e ganham uma gravidade estranha nas suas escalas monumentais (ver «Sumário»).
No pavilhão do Brasil, Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) é a revelação de um original criador «alienado», internado durante 50 anos numa colónia psiquiátrica. As peças bordadas que sintetizam memórias pessoais associam-se, como inventário do mundo e preparação meticulosa da morte, a outros objectos insólitos que são surpreendentemente próximos das montagens, acumulações e relicários da tradição erudita, mas que se vêem com um acréscimo de ingenuidade e aparente humor. Outro brasileiro, Nuno Ramos (S. Paulo, 1960), apresenta obras que se identificam como marcas fossilizadas de animais, em lages de pedra arenosa e numa barroca moldagem em alumínio.
Quanto a Portugal, as presenças de Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes e José Pedro Croft constituem a representação correcta (e possível no seu curtíssimo tempo de preparação) da energia que se reconhece à actual escultura nacional. As peças reeditam problemáticas experimentadas e mostram-se numa galeria da Praça de São Marcos que é fronteira à esplanada do frequentadíssimo Café Florian, o que garantiu à inauguração as presenças convenientes, apesar da dificuldade de um acesso oculto. O que mais importa é, afinal, o regresso a Veneza e a perspectiva da construção de um pavilhão próprio nos Giardini, que Santana Lopes terá deixado confiada a Siza Vieira — espera-se agora que a desarticulação entre o comissariado pessoal de José M. Teixeira e as competências oficiais do Instituto Português de Museus, bem como os condicionalismos da troca de governos, não inviabilizem uma consideração oportuna do projecto.
Outra inesperada presença portuguesa é de João Tabarra, com uma fotografia utilizada no desdobrável-cartaz que anuncia o «Aperto 95», iniciativa com que três dezenas de centros de arte europeus, da Espanha à Austria, resolveram responder ao cancelamento da secção veneziana dedicada aos novos artistas, colocando sob aquela designação as suas programações de Verão.
A oposição mais visível a Jean Clair acabou, aliás, por concentrar-se na questão da anulação do «Aperto», respondendo o director da bienal com argumentos de ordem financeira ou burocrática e também com críticas dirigidas aos critérios de selecção das suas últimas edições. O local utilizado pelo «Aperto», o Arsenal, seria um espaço sem condições museológicas mínimas e, por isso mesmo, condicionava «subrepticiamente, insidiosamente» a apresentação de um único tipo de práticas, as instalações de obras efémeras e «site-specif». Clair lembrou também que «a modernidade fez-se em grande medida contra a Bienal», durante os seus muitos anos de exclusão das vanguardas, dizendo ver com bons olhos a possibilidade desta sua edição, que pretendia «coerente, forte e discutível», vir a gerar reacções e anti-corpos.
No entanto, o peso da história e a ausência do «Aperto» são já contrariados em Veneza por uma profusão de exposições paralelas, promovidas por diferentes países e acolhidas no programa oficial. É o caso de umamuito infeliz mostra francesa comissariada por Jean-Yves Jouannais, «História da Infâmia», dedicada a lançar «o descrédito sobre a obra-prima e a ridicularização do objecto de arte». A propósito, deve ler-se o número de Junho da revista «Art Press», de que é o chefe de redacção, para conhecer a dimensão da esquizofrenia instalada nos meios da arte — Catherine Millet, directora da mesma publicação, foi a responsável pela escolha de César e excede-se na sua resposta às defesas dos artistas «jeunnnes» (sic) e «vanguardisticamente correctos».
Outra mostra, patrocinada pelo Arts Council, reune em «General Release» alguns novos ingleses. Passa-se por aí do humor fatigado e da subservão institucionalizada dos franceses para a aplicação escolar, sempre apoiada por protocolos escritos que justificam o desejo de sentido dos exercícios. Jane e Louise Wilsom, vistas nas Jornadas'93 do Porto, apresentam inquietantes fotografias de universos de pesadelo: a sua obra «é psicótica, psicadélica e psíquica» (sic) e interpreta as ruas tortuosas de Veneza «como uma metáfora arquitectónica do labirinto da insignificância». Os frascos de Adam Chodzko (na foto) são «uma interpretação das perdas fisiológicas que ocorrem na busca da experiência extrema». Na pintura de Gary Hill «os temas são claramente identificáveis, mas a nova iconografia do artista opõe-se a qualquer forma de conclusão lógica». Elizabeth Wright fotocopia as listas telefónicas de Veneza com uma redução a 65 por cento do formato para «reportar os objectos quotidianos a uma imagem de si próprios». Etc.
Mais radical, na via de uma indiferenciação total dos objectos e de uma desrazão essencial de todas as práticas artísticas, é uma colectiva de holandeses e flamengos, «Among Others», promovida pela Fundação Mondrian. O jogo compulsivo, a acumulação de restos, o desvio das funções imperam como actividades que prescindem de forma e de sentido para se reinscreverem, apenas como acções, numa realidade caótica.
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