O 2ºartigo sobre a 46ª Bienal de Veneza de 1995, sobre a exposição central, IDENTITY AND ALTERIY - FIGURES OF THE BODY 1895/1995, comissariada por Jean Clair.
"Corpo a corpo"
EXPRESSO/Revista 24 -06 - 95
Com a aproximação do fim da década, vão multiplicar-se os projectos retrospectivos sobre a arte do século XX. Mas, se o centenário da Bienal oferecia a Jean Clair a oportunidade de uma primeira revisão da história da modernidade, o polémico director do Museu Picasso não ficou subjugado às regras dos inventários de obras-primas.
«Identidade e alteridade — Imagens do Corpo, 1895-1995» não é nem pretende ser uma síntese de toda a arte do século, embora tenha conseguido reunir em Veneza (até 15 de Outubro), graças ao prestígio do seu autor, um acervo irrepetível de 600 obras vindas de todo o mundo, do MoMA de Nova Iorque ao Ermitage de Moscovo, que ficará como um incontornável ponto de referência.
Exposição temática, ela afirma a importância central, ao longo de um século que costuma ser visto sob o signo da abstracção, da representação do corpo e do rosto, em especial do nu e do auto-retrato, constantemente investidos pelos artistas como uma necessidade íntima e inexplicada de confronto consigo mesmo e com os outros — quer através da continuidade das disciplinas tradicionais, a pintura e a escultura, quer em novos «media» como a fotografia e o vídeo, a «acção» e a instalação.
Reinterpretação da história da arte recente, entre tradição e ruptura, e não simples regresso a uma ultrapassada contradição entre figuração e abstracção, a exposição do centenário é deliberadamente parcial e provocante, enquanto afirmação de um ponto de vista e mesmo de um gosto pessoal que se verá como uma nova batalha de um itinerário crítico dirigido há anos contra as versões redutoras da modernidade (ver edição anterior da «Revista»). É uma história oposta às versões banalizadas desde o final da 2ª Guerra, a partir do eixo Paris-Nova Iorque, que se identificam com um processo linear desde Cézanne ao cubismo e à abstracção, depois às neo-vanguardas dos anos 60, numa sequência de cortes definitivos com a tradição, desconstruções das convenções e reducionismos constantes, até um eventual fim anunciado da arte que seria também, com a impossibilidade de novos -ismos, a emergência pós-moderna, regressiva ou paródica, de uma diversidade pós-histórica.
Exposição a diversos títulos problemática, ela poderá ser vista ainda como uma resposta ao «progressivo» estreitamento do território da arte ao universo dos seus especialistas profissionais, porque o desaparecimento do público não é uma consequência indiferente de uma história que passou (sem dilacerantes rupturas...) da subservão à institucionalização das vanguardas, cujas obras, aliás, se deveriam esgotar no próprio poder de negatividade e rarefacção estética. Importa saber que, apesar da democratização da cultura, do turismo e indústrias culturais, os visitantes da Bienal foram decrescendo dos 450 mil de antes da 1ª Guerra para menos de cem mil na década de 90.
NORMAS
A releitura da lugar do corpo na arte do século XX, desocultando, em grande medida, o não visto ou o recalcado, é uma aposta na defesa de certos artistas excluídos do discurso museológico dominante por serem inclassificáveis ou marginais em relação a uma história rectilínia (Beckmann, Stanley Spencer, Gaston Lachaise ou Arikha), na valorização das maturidades e dos itinerários longos, contra a prevalência das fases de afirmação e juventude (Picasso e Bonnard, De Chirico e Kokoschka), na revelação das rupturas individuais contra os interditos modernistas, tantas vezes censuradas ou desentendidas (Malevitch e Giacometti, Pollock e Guston), bem como na descoberta da produção originária de países periféricos, nomeadamente os do centro da Europa, aliás, segundo um exacto entendimento de Veneza como eixo de cruzamentos entre Oriente e Ocidente, entre a tradição católica da imagem sensorialmente exuberante e o diferente valor cultual do ícone bizantino.
Esse retorno permanente ao tema, às obsessões e também às próprias formas do corpo, regresso compulsivo do mesmo e interrogação sempre renovada da imagem própria e do outro, relação carnal que é também a experiência directa da presença do sexo e da morte, da máscara e da doença, não é, no entanto, a história pacífica de uma mera continuidade da tradição — o corpo do século XX, segundo demonstra Jean Clair, não é nunca o dos modelos clássicos congelados pela Academia, mas um novo corpo de que no final de 800 se apropriaram as ciências experimentais, a antropologia normativa e também a psicanálise.
Militante anti-formalista, atento às questões do conteúdo e do sentido da «vida das formas», Clair considera a arte como uma das dimensões da história das ideias e, por isso, o seu programa expositivo, de facto multidisciplinar, é construído sobre uma permanente referência ao avanço dos conhecimentos e das técnicas, e, em especial, às respectivas consequências sobre as linguagens artísticas, sobre as convulsões da política (as guerras, a emergência das utopias, os totalitarismos) e ainda sobre as mutações mais imprecisas do que se pode designar como «espírito do tempo», numa longa viagem entre dois fins de século — entre decadência e declínio, na sua perspectiva desencantada.
O horizonte cronológico de partida, a primeira Bienal, é sinalizado como uma data marcante da história das ciências e das mentalidades. Nesse ano surgem as fotografias com raio X do interior do corpo e discutem-se as provas científicas do Santo Sudário, descobre-se o cinema, generaliza-se o uso do bilhete de identidade, em ligação com a antropometria judiciária e criminal, que estende uma mesma confiança reformadora na classificação e na norma às questões do génio, da criminalidade e da loucura; Charcot publica os estudos sobre a histeria e Freud troca a neurofisiologia pelos caminhos da ciência dos sonhos. Em pleno triunfo do cientismo positivista, com a sua crença de que a essência do ser humano se pode reduzir a um certo número de dados físico-químicos, quantificáveis, a voga das «maravilhas da ciência» prolonga-se numa vaga imensa de espiritualismo, que compreende as versões mais fantasmagóricas do espiritismo e do ocultismo (e de que partilham Mondrian e Kandinski, Kupka e Boccioni).
Sobre o simbolismo que domina o final de 800 e as realidades invisíveis que a ciência desvenda estabelecem-se as pontes para uma representação do imaginário que conduz à pintura abstracta; a cronofotografia (Marey) disseca o movimento dos gestos, e Degas e Eakins tomam-na por modelo, antes que os futuristas a traduzam em vertigem da velocidade; as matemáticas e a quarta dimensão alteram a representação do espaço e do tempo, na sequência directa das experiências sobre a visão da cor dos pós-impressionistas. O triunfo da antropologia normativa, com os inventários fotográficos de Bertillon e de Lombroso, prolonga-se com a acção de Paul Richer, professor de anatomia na Escola de Belas Artes de Paris, num gigantesco esforço de fixação de novas medidas das proporções humanas. Mas artistas como Munch, Ensor ou Gerstl vão opor a «reivindicação expressionista» a essa dinâmica normalizadora e as Demoiselles de Avignon constroiem-se sobre inúmeros estudos que questionam a possibilidade de novos cânones para o corpo.
ABISMOS
Seguindo um percurso cronológico definido — o positivismo (1895-1905), «a incoerência da vanguarda» (1905-15), «em direcção ao homem novo» (1915-30), «artes totalitárias e arte degenerada» (1930-45), o pós-guerra (1945-62), etc —, a exposição justapõe objectos com diferentes estatutos que permitem, ou não, distinguir a obra de arte da representação científica, da máquina e das imagens popularizados pelas novas técnicos. As experiências de medida e moldagem do corpo surgem referidas nas antropometrias de Klein ou nos retratos de Chuck Close, a maleta antropométrica de Bertillon vê-se ao lado de Stoppages Étalons de Duchamp, as fotografias espíritas aproximam-se de imagens simbolistas, os desastres da guerra registados pela medecina confrontam-se com as suas versões artísticas, as representações da histeria prolongam-se na obra recente de Louise Bourgeois, as primeiras fotos feitas numa morgue contrapõem-se às de Serrano, e mais do que a cor e a diferença de escala importa aí o peso da actualidade, a sida. Nesse trânsito entre objectos e tempos, é também a desconstrução da novidade que Clair persegue, opondo inovação e originalidade, e entendendo esta, sobre a raiz etimológica, como diferente regresso às origens.
Por outro lado, a sucessão dos núcleos históricos é interrompida por salas temáticas dedicadas ao auto-retrato, à representação da morte («ars moriendi») e do sexo («ars amandi») — e nestes três tópicos se condensa, afinal, toda a interpretação subjacente à mostra de Clair, uma viagem aos abismos do humano guiada por um autor que toma a figura da Medusa, emblema do sexo e da morte, como o exacto paradigma da visão do artista (em Méduse, 1989).
Aliás, a exposição inicia-se sob a dupla invocação do que foi o primeiro escândalo moral da Bienal e da Homenagem a Cézanne, de Maurice Denis (1900). Il Supremo Convegno, de Giacomo Grosso, reduzido a um único rosto sobrevivente (enquanto a mostra «Veneza e a Bienal, Itinerários do Gosto» se inicia com a exibição de uma réplica), é uma composição académica onde cinco mulheres nuas rodeiam com poses lascivas o caixão de um homem, que mereceu do então patriarca de Veneza a imediata condenação da Bienal. A Homenagem, por outro lado, é tanto uma referência ao mestre da pintura moderna como a memória da experiência perdida dos grupos de artistas, servindo de passagem, através de uma série de retratos colectivos, para um primeiro espaço temático dedicado ao trânsito da academia ao café (Dix e Kokoschka, Immendorff e o Caffè Greco de Guttuso), como dissolução da comunidade artística, outra ideia recorrente no discurso do comissário.
Com a sua exposição, Clair interroga-se «por que se tornou tão difícil representar a singularidade de um corpo» quando toda a arte precedente o conseguia fazer com um júbilo que continua hoje a perturbar os visitantes do museu. De certo modo, é a dificuldade dessa vontade de representação que aqui se sumaria, por vezes com opções questionáveis que levam a privilegiar a evidência maneirista dessa mesma dificuldade, traduzida na densidade dos empastos (Freud, Kossoff, Leroy), tal como se acentua na sua antologia o gosto por uma visão torturada do corpo, como fragmento, ferida, decadência, sacrificando alguns outros exemplos maiores em que se afirmaria o prazer feliz dos corpos, a sua integridade e pujança sensual. «Neste fim de século, o clima da arte e da sociedade é razoavelmente mórbido» justifica J.C.
Depois das vanguardas, o itinerário equaciona toda a complexidade do primeiro pós-guerra segundo os eixos de uma figuração que hesita entre o optimismo da máquina, tomando o robot como padrão do homem novo, e os modelos clássicos visitados por um impossível «regresso à ordem», de que os manequins de Chirico são a melancólica interrogação. Momento particularmente impressivo do percurso é, depois, a secção dedicada ao período de 1930 e 1945, onde as imagens do líder (Mussolini e Kirov) e dos corpos idealizados pelas normas totalitárias (Adolf Wissel e Samochvalov) se contrapõem aos auto-retratos dos «artistas degenerados» (Kokoschka e Felix Nussbaum) e, com uma máxima violência, às imagens do extermínio recordado por Zoran Music. A outra face dos mesmos anos é a da «beleza convulsiva» dos surrealistas, na explosão erótica de Lachaise e Spencer, ou no corpo distorcido por Kertesz e desmembrado por Picasso.
O segundo pós-guerra é revisto nas suas problemáticas cruzadas, em que a inquietação existencialista emparceira com um novo realismo militante, sobre a impossibilidade da figuração dos Otages de Fautrier ou os homúnculos de Dubuffet. O «eclipse do rosto» está também presente quer num monócromo negro de Rauschenberg e no gesto iconoclasta do apagamento de um desenho de de Kooning, em 53, quer na tela branca (Achrome) de Manzoni, em frente de Hélion e Artaud. Mas a presença central é já a de Pollock, visto na junção de uma abstracção «clássica» e da emergência de um rosto, na sua final volta à figura, sobre a mesma técnica do «dripping».
SEXOS
É um «regresso ao corpo» (1962-1985) que se afirma mais plenamente numa segunda sala em torno de nove Donne di Venezia de Giacometti, com Gruber, Balthus e Bacon, Kossoff e Eugène Leroy, com outra presença indispensável de Picasso. Mas é ao paralelismo da pintura de Baselitz e Philip Guston, na sala seguinte, que o comissário chama «o ponto de viragem, 1962-73». O alemão volta ao retrato, não-naturalista, invertendo o quadro e o americano, ao abandonar o expressionismo abstracto, representa-se sob a máscara da Ku Klux Klan a desafiar a intolerância da crítica.
A seguir, a secção «Human Clay» (barro humano) retoma o título da exposição pioneira que Kitaj organizou em 76. Aí estão Hockney, com os retratos duplos dos anos 70 e com uma última série de desenhos onde a procura de uma interioridade psicológica sobreleva o virtuosismo do traço; o próprio Kitaj, que seria distinguido com o prémio máximo da Bienal para a pintura, presente com os retratos «diasporistas»; Freud, o espanhol López Garcia e esse pintor admirável que é Avigdor Arikha onde a disciplina do modelo vivo se retoma com a limpidez de um recomeço, na evidência do elo («link») estabelecido «entre o olho e a mão».
Notar-se-á que Clair ignora aqui o regresso à imagem do corpo, sempre já mediatizado, que definiu a Pop Art e o hiper-realismo, não convocando, por exemplo, Wesselman e Larry Rivers ou Alex Katz e Duane Hanson, que dariam outras configurações do tema. A insistência numa visão trágica do corpo justifica também exclusões como a de Niki de Saint-Phale, e em toda a exposição descobrir-se-á numa pintura «vache» de Magritte o único afloramento consentido ao humor.
Mas o termo do itinerário do Palácio Grassi é ainda uma sequência de falsos fins sucessivos e de novos temas em aberto, num prodigiosa encenação de espaços que contou com a direcção de Gae Aulenti. «Ars Amandi» é a conjunção de obras muito diversas em torno da representação realista ou metafórica do sexo, de Georgia O'Keeffe, Fontana e Picasso a Robert Morris e Bruce Nauman. A seguir, uma sala de fotografias estabelece um confronto de atitudes perante a nudez do corpo e do rosto, em referência à diversidade das convenções culturais, com a série dos campos de nudistas de Diane Arbus e um díptico esplendoroso e voyeurista de Helmut Newton, em paralelo com duas séries de imagens de mulheres argelinas (Gatian de Clérembault e Marc Garanger). Por último, os volumes maciços dos lutadores Nuba do nigeriano Ousmane Sow, a única presença de um artista do Terceiro Mundo proposta por Jean Clair, que rejeita a tentação do exotismo que está presente nas recentes temáticas do multiculturalismo, mostram-se diante dos monstros sanguinários, brancos, de Jane Alexander, uma artista da África do Sul. É um último confronto, de corpos e de civilizações, entre «identidade e alteridade».
Duas outros secções que acolhem jovens artistas ou expressões e processos de mais recente emergência, desde os anos 60, alargam a exposição do Palácio Grassi a outros locais, numa distribuição por vezes confusa em que se reflectem dificuldades logísticas resultantes do gosto italiano pela improvisação — um mês antes da inauguração, Clair dirigiu-se ao primeiro ministro para pôr em causa a inauguração e impôr a cedência, não prevista, do Museu Correr.
«O corpo real e virtual» é um diálogo entre abordagens do corpo e do sexo em exemplos recentes de continuidade da pintura e de uma fotografia que, depois de ter tido valor de afirmação e prova, descobre a necessidade de se pôr em dúvida como manipulação e desrealização. Aí se mostram imagens de um discurso feminista sobre a identidade sexual, de Ines van Lamsweerde, Jeanne Dunning e Helen Chadwick, e também, noutro fim de percurso sobre a «monstruosidade», de Nancy Burson, fotógrafa que passou da reformulação informática dos rostos à reportagem sobre os efeitos de disfunções neurológicas. No entanto, a presença inicial dos registos fotográficos deixados pelos accionistas vienenses (G. Brus e Schwarzkogler) estabelece um preâmbulo de violência e abjecção que não mais será ultrapassado, num efeito de permanente interrogação do novo que se prolonga com as fotografias de Wols, frente aos corpos femininos, e da italiana Wanda Wulz, de 1932, diante das novas tecnologias da manipulação da imagem.
Pinturas de Marlene Dumas (holandesa, também presente no pavilhão do seu país e cuja projecção actual se comprova com a inauguração de uma dupla retrospectiva no Palácio Rivoli, ao lado de Bacon), Marie Lassnig e Chantal Wicki, bem como de Vincent Corpet e Michel Haas, Clemente e Eric Fischl encenam outros olhares cruzados sobre o corpo nu e a guerra dos sexos. No Pavilhão Itália mostram-se ainda instalações e vídeos de Gary Hill (prémio de escultura), Nauman, Clegg & Guttman e Mona Hatoum.
Por último, «Impressões do corpo e do espírito», com organização de Adalgisa Lugli, é um núcleo temático sobre o uso da moldagem enquanto sinal tangível da presença directa do corpo, como vestígio de uma acção que ocupou nos anos 60 e 70 o lugar da representação, através do aprisionar de uma sombra ou silhueta, impressão («empreinte») e marca, ou ainda através de objectos metafóricos. Das telas queimadas de Burri aos moldes fechados de Tony Cragg, passando pelo polegar de César e múltiplos exemplos da Arte Povera, o percurso surge como uma amálgama de vestígios. Mas, também aqui, uma pegada de dinossauro e uma cabeça renascentista, a máscara de Rossini e a Elevage de Poussière de Duchamp vêm questionar todas as cronologias, com a evidência de um elo nunca quebrado, para lá da experimentação dos materiais e das diferenças de linguagem, com a questão da presença real do corpo.
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