EXPRESSO/Actual de 21-Junho-2003 (pág. 36-37)
"Bazar veneziano"
Bienal gigantesca expõe débil panorama internacional <onde Bruno Gironcoli era a única surpresa relevante"
Foto PCR Studio / Tânia Simões. <A obra veio de Veneza para se arruinar no Pátio da Inquisição em Coimbra>
A República Popular da China, que devia comparecer oficialmente em
Veneza pela primeira vez, cancelou a viagem por causa da pneumonia
atípica, mas muitos jovens chineses participam, com uma energia
transbordante, numa das exposições sectoriais de uma bienal apostada em
comprovar a globalização do universo artístico. Questões da actualidade
também atingiram o pavilhão da Venezuela, que não chegou a abrir devido
a declarações anti-Chavez. No entanto, foi muito mais notado o
encerramento do pavilhão da Espanha por um muro de blocos de cimento
erguido 65 centímetros a seguir à entrada (Parede Fechando um Espaço, é
o título da "obra"), enquanto o nome do país foi embrulhado em plástico
negro - «Palavra Tapada é uma simples escultura realizada com materiais
pobres», assegura a comissária.
Dois seguranças armados exigem o
passaporte espanhol para se aceder pelas traseiras ao interior vazio e
devastado. O sempre demagógico Santiago Sierra diz tratar-se de uma
«performance» sobre a fronteira e as políticas de imigração,
acrescentando que «o orgulho nacional é um conceito do século passado».
A direita civilizada <no caso, o governo de Aznar> já aprendeu a administrar a irrelevância do
espectáculo cultural e as respectivas clientelas.
As bandeiras do arco-iris pacifista que pendem de muitas janelas de uma cidade assaltada pelas exposições da Bienal, como metásteses que invadem igrejas e palácios ao longo dos canais, são o testemunho mais directo da conjuntura internacional (e também da contestação a Berlusconi); o efeito é bonito mesmo se o argumento é atacável. Entretanto, o título escolhido para a 50ª edição da Exposição Internacional de Arte, «Sonhos e Conflitos» - seguido por um complemento mais obscuro, «A Ditadura do Espectador» -, aponta para uma polarização da criação contemporânea nas direcções alternativas do «sonho estético», mais ou menos separado do mundo, e o «documento do conflito», segundo a lógica rudemente esquemática de Francesco Bonami, um italiano sediado na América nomeado comissário-director.
A alternativa mais evidente, no entanto, é a que resulta do modelo organizativo da Mostra: por um lado, os representantes dos países (63, número record) que expõem em pavilhões próprios (ou por vezes em conjunto, mas há também mostras autónomas da Escócia e do País de Gales, por exemplo), uns construídos há muitos anos nos Giardini di Castello e outros alugados em lugares mais ou menos periféricos, como se fossem embaixadas oficiais; em simultâneo, o comissário encarrega-se duma exposição colectiva onde propõe um tema ou uma perspectiva genérica sobre o estado das artes.
Este ano, porém, Bonami decidiu partilhar responsabilidades e dividiu os 12 mil metros quadrados dos antigos Arsenais com mais 11 comissários, que apresentam oito exposições temáticas sucessivas, conseguindo assim fazer das divergências estéticas assumidas uma demonstração equívoca da unicidade do mundo da arte. Se no subtítulo se pretendeu sublinhar a liberdade de apreciação do espectador face à singularidade das obras, o resultado acaba por ser uma esmagadora demonstração da ditadura dos comissários, cuja visibilidade autoral suplanta em muito a dos artistas. Como estes são perto de 400, o espectáculo é o de um gigantesco bazar, e o calor sufocante dos dias da pré-inauguração ainda tornou um pesadelo maior a romagem dos seis mil jornalistas e críticos acreditados. Até 2 de Novembro esperam-se mais de 350 mil visitantes, em geral turistas estrangeiros, o que resultaria em receitas globais de cinquenta milhões de euros para um investimento de cerca de oito milhões, segundo números do «Corriere dela Sera».
A fórmula dos pavilhões dos países é uma herança oitocentista das exposições universais e das escolas nacionais (a Bienal festejou o centenário em 1995, mas os anos de guerra atrasaram a chegada à edição nº 50). Criticada por alguns, porque as nacionalidades artísticas são uma questão controversa face à dominação dos grandes centros e à circulação dos artistas, ou porque muitas presenças periféricas nunca acertam com o padrão dominante, não deixa de ser uma oportunidade de competição internacional arduamente disputada, e cada país dedica sempre o maior espaço informativo a defender os seus representantes.
Não é possível fugir à regra e não há que temer dúvidas de chauvinismo quanto à participação de Pedro Cabrita Reis como representante português, reforçada por um convite de Bonami para expor uma segunda obra nos Giardini. A apresentação dos projectos em Lisboa (ver «Actual» de 24 de Maio) assegurava que um forte impacto visual os distinguiria da cacofonia ambiente, mas essa é apenas uma questão de eficácia elementar. No terreno, a presença espectacular das duas obras, diversas entre si mas identificando nas suas estruturas formais uma mesma autoria, é também a afirmação da densidade poética de um artista que se serve da escala arquitectónica para equacionar simbolicamente questões vitais e que se arrisca a utilizar de novo a condenada palavra beleza.
A dupla presença de Pedro Cabrita Reis é uma das mais destacadas da 50ª Bienal
Nomes Ausentes, uma casa fechada instalada nos Giardini, pintada no interior com um uniforme cor-de-laranja incendiado sobre o qual se desenham, por vezes em desordem, centenas de lâmpadas brancas de néon (em que cada um poderá ler os nomes das suas próprias memórias), habita-se como um lugar de recolhimento e celebração, um espaço monumental e de dimensão humana, ao mesmo tempo dramaticamente íntimo e solar. Viagens Cada Vez Mais Longas é uma longa estrutura de vigas de alumínio, de dois pisos, como uma casa inacabada, cortada por portas móveis pintadas de um branco irregular e néons também brancos. Fotografada antes ao ar livre, percorre-se (na Giudecca) no espaço imenso de um antigo depósito de cereais, de paredes de pedra, numa disposição ligeiramente oblíqua, com um perfeito sentido de escala e, como dissera Cabrita Reis, «com a leveza e o rigor de um traço de desenho no papel». Ideia de casa e arquitectura ambiguamente precária, confronta-nos com a estranheza absoluta do próprio acto de construir.
Um livro monográfico onde se ilustra e comenta toda a obra de Cabrita Reis acompanha a presença em Veneza, cujos ecos na imprensa internacional já tinham principiado antes da inauguração, apontando-a como uma das mais destacadas da Bienal. A concorrência, acrescente-se, não é grande, nomeadamente quanto aos países que justificariam maiores expectativas.
Bruno Gironcoli, um veterano escultor austríaco (n. 1933)
É o caso da França com Jean-Marc Bustamante (n. 1952), que juntou a fotografias «sem qualidade nem actualidade» (será um elogio do «Le Monde»?), ampliadas como grandes quadros, mais algumas pinturas banais transformadas em fotografias sobre plexiglas. E também o da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, ambos com representações decerto muito correctamente políticas, confiadas a artistas identificados como negros que «reflectem» sobre questões de identidade rácica.
Chris Ofili (1968, Manchester, com raízes na Nigéria), Prémio Turner 98 e vedeta da exposição «Sensation» graças a uma Virgem com bosta de elefante, pintou agora «amantes afro-lunares» com a grosseira debilidade «kitsch» de decorações de bar em versão popular africana, inevitavelmente apoiados em volumosos dejectos, forrando as salas com o mesmo verde ou vermelho berrante dos quadros (cores do nacionalismo pan-africano). As autoridades britânicas queixaram-se de a oposição à guerra do Iraque lhes ter tirado o prémio…
Fred Wilson (1954, Bronx, NY) reuniu referências aos negros na arte veneziana e também em bugigangas decorativas, colocando à entrada do pavilhão um dos muitos irmãos de cor, mas não de classe, que pela cidade vendem malas de senhora aos turistas – tudo mais do domínio da sociologia da arte do que da criação artística.
Candida Höfer comprovou os limites inultrapassáveis de um género alemão de grandes fotografias neutras de interiores arquitectónicos; Jana Sterbak, canadiana nascida em Praga, apresentou ao som de Glenn Gould uma instalação-vídeo em grandes ecrãs articulados, usando o ponto de vista irrequieto do seu cão, que transportava a câmara numa viagem até Veneza; Thierry de Duve comissariou uma representação belga confiada a discretos discursos confessionais femininos.
A um nível mais afirmativo deve citar-se a presença do Brasil, com Beatriz Milhazes e Rosângela Rennó, que já expuseram em Portugal, pintora a primeira de abstractos motivos florais e geométricos, vibrantes de cor, e a segunda fotógrafa pictural que tinge de vermelho sangue quase invisíveis retratos antigos. Olafur Eliasson, pela Dinamarca, é um construtor de experiências perceptivas, que, num espaço labiríntico, oferece ao visitante visões caleidoscópicas ou o coloca no interior de espelhos multifacetados.
Presença insólita num contexto filtrado pelo grande mercado institucional globalizado é a de Bruno Gironcoli, veterano escultor austríaco (n. 1933) pouco conhecido no exterior, de quem se apresentou uma antologia de obras singulares. Algo de Giacometti e Moore (nomes finais da tradição da escultura?) comparece nas suas obras monumentais, onde elementos biomórficos ou a figura humana se fundem em estruturas maquínicas de ficção científica ou em composições teatrais de formas simbólicas proliferantes, com elementos ornamentais de aparência oriental, sempre integrando a «assemblage» sob a cor uniforme (prateada, amarela, etc) do metal.
O júri preferiu a surpresa de premiar a representação do Luxemburgo confiada a uma jovem sino-britânica estudante em Paris, Su-Mei Tse (n. 1973), muito pouco visitada por se situar fora dos Giardini. Trata-se de uma instalação-vídeo em dois ecrãs, um ocupado por varredores parisienses (imigrantes, claro) a vassourarem um deserto africano e o outro pela própria artista tocando violoncelo diante de uma «paisagem das montanhas suiças, idílica ou mesmo kitsch-sublime», em estilo «Heidi», segundo o catálogo. Air Conditioned (jogando com o sentido de era, ária e área) era o título mais promissor sob o sol abrasador de Veneza.
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