(Veneza II)
EXPRESSO/Actual de 28 Junho 2003 (pp. 38-39)
"Sem alternativas"
A Bienal de Veneza procurou absorver todas as direcções críticas e a sua própria contestação num universo fechado
<Com Ilya Kabakov e Bellini. Com Jorge Queiroz. Com Agnès Varda>
Do roteiro da Bienal também fazem parte as exposições extra-programa acolhidas pela organização, e outras ainda, de diversíssimos promotores, ocupam tudo o que resta de espaço disponível em Veneza. Entre as primeiras, destaca-se a de Ilya Kabakov, o mais internacional dos artistas russos, nascido em 1933 e sediado desde 92 em Nova Iorque. Where Is Our Place?, co-assinada com a sua mulher, Emilia, na Fundação Querini Stampalia, é mais uma vez uma instalação total, um espaço encenado onde os objectos não se separam do lugar físico em que se expõem e onde os visitantes são actores do espectáculo que os inclui.
Ao entrar, vemos uma vulgar exposição de dípticos de fotografia e texto, idênticos a tantas peças ditas conceptuais onde a imagem a preto e branco é de um bom gosto anódino e a escrita, sem relação com a imagem, vagamente poética (Victor Burgin é uma referência entre outras). Nas salas seguintes prossegue o alinhamento dessas obras, mas somos surpreendidos pela presença dos visitantes de uma segunda exposição, com quem partilhamos o mesmo chão.
São gigantes de que só vemos as pernas cortadas pelo tecto, enquanto o cimo das paredes é ocupado por pesadas molduras douradas com breves faixas de quadros do século XIX. Notamos depois que há fendas no soalho cobertas por plexiglas transparente, deixando ver um mundo ainda mais pequeno sob os nossos passos de gigantes intermédios. Divisamos montes verdejantes, estradas e povoações, mas ficaremos sem saber se existirá arte nesse outro mundo, certamente futuro.
Na instalação que o CAM apresentou em 95 (por sinal integrada no festival Acarte - consultar aqui "categorias" 1995 ou CAM) - Incidente no Museu ou Música Aquática -, Kabakov propunha uma interrogação muito mais subtil sobre o sistema institucional da arte, o museu e a relatividade da memória artística. Agora, ao associar a sucessão de tempos à diminuição das escalas, comenta com uma melancolia demasiado óbvia a evolução da arte, e a obra esgota-se no enunciado do seu projecto. Com boa vontade, talvez se possa contornar a tese da decadência face a um passado grandioso, e supor que, passando da mentira à insignificância, da imponência dourada das antigas molduras aos caixilhos baratos, já pouco falta para acedermos a uma existência sem ilusões nem falsos ícones.
Mas é mesmo de uma nostalgia da Grande Arte que Kabakov certamente fala, a partir do lugar central que ocupa no mundo institucional da arte actual. O catálogo da Bienal insiste nessa leitura, em termos simplistas que não serão do artista: «O nosso tempo ‘contemporâneo’ rejeitou a arte antiga, mas o antigo não desapareceu e sobrevive firmemente, desacreditando o que fazem as novas gerações.» <!!!!> A mensagem é inaceitável, por mais degradado que seja o panorama de Veneza em confronto com uma tábua de Bellini recentemente restaurada e exposta no Museu da Fundação (Apresentação de Jesus no Templo, de cerca de 1460).
Outro sintoma da desorientação que atravessa um meio da arte gravemente descredibilizado, de que já nos anos 60 Marcel Duchamp era o mais autorizado dos críticos, é a exposição que o director da Bienal apresenta no Museu Correr, integrada no programa oficial.
«Pittura/Painting», de Rauschenberg a Murakami, pretende-se uma reparação das injustiças feitas à pintura, declarada extinta ou desvalorizada face ao aparecimento de outras «linguagens», a partir de 1964, ano em que o pintor americano foi premiado em Veneza, e especialmente desde as contestações de 68. «Celebração da pintura, o arquétipo da arte» <!!!!>, anuncia Francesco Bonami no catálogo, vendendo a sua mercadoria estragada. Adiante, diz que «pittura» soa a uma coisa morta, «como uma rejeição do presente», enquanto «painting» é ainda um campo aberto, «móvel, lutador e indeterminado na nossa era contemporânea de realidade virtual e tecnologia inexorável».
Tudo corre mal nesta mostra, co-organizada com a Bienal de São Paulo, desde o espaço disponível à menoridade de muitas das obras cedidas, mas o mais grave é a incapacidade de entender que a pintura não é um médium entre outros, nem só um processo de produzir imagens. Freud e Hockney, desde o início anunciados, estão ausentes - espera-se que por recusarem uma tal manobra. De Rauschenberg ao «revisionismo» anti-moderno de um John Currin, ou à boçalidade «manga» de Murakami, as escolhas são (quase) sempre a descer, já que se quer apenas recolocar a pintura nos circuitos institucionais, mas sem restabelecer quaisquer critérios de qualidade.
O próprio sentido histórico da mostra constrói-se com erros e simplificações: o prémio de Rauschenberg, que não é um artista pop, também não foi o primeiro atribuído a um norte-americano (Mark Tobey ganhara-o em 58); perante a histérica reacção parisiense, que chegou a propor uma contra-bienal, coroava-se com inteira justiça a sua circulação europeia promovida por Leo Castelli e o investimento de uma administração americana que descobrira a importância política da bandeira da arte moderna. O anti-americanismo já era dado à cegueira e, na noite da inauguração < em 1964, claro>, Cunningham, Cage e Rauschenberg eram assobiados no espectáculo do La Fenice e apelidados de «fascistas»...
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O desempenho de Francesco Bonami, que tudo quis integrar na sua bienal, anulando as tensões ou diferenças num gigantismo acrítico, continua em duas mostras internacionais dedicadas, uma, a fazer comparecer em Veneza alguns nomes sonantes da actualidade, sob o título «Atrasos (Delays) e Revoluções», e outra a apresentar jovens artistas de várias periferias. O prémio para o melhor artista tinha de sair do primeiro lote e coube à dupla suíça Peter Fischli e David Weiss, com um espaço iluminado pela projecção de frases com ou sem sentido, no género «Há um homem invisível no meu quarto»; não é o mais interessante momento de uma carreira partilhada entre a crueza de um humor lúcido (notável nos intermináveis vídeos da Bienal de 95) e a diversão amável. E mais temos uma nova facécia de Maurizio Cattelan, Gabriel Orozco e uma réplica arquitectónica de Carlo Scarpa, Matthew Barney e pequenos desenhos em grandes molduras-mesas de um insuperável kitsch, e, entre outras vedetas, Robert Gober com um absurdo «slide-show» de um mesmo quadro em execução, que é mais um exercício de desqualificação e incompreensão do que a pintura pode ser.
Para a segunda mostra usou um título que recorda Duchamp, quando em 1961, na Escola de Arte do Museu de Filadélfia, dizia que «o grande artista de amanhã será clandestino», criticando a comercialização da arte e a sua integração na sociedade. É entre os «Clandestinos» que expõe Jorge Queiroz, fazendo um intervalo notório num itinerário pouco estimulante (Gillo Dorfles, ainda atento com 82 anos, assinalou-o numa crónica do «Corriere Della Sera»). Nos seus grandes desenhos esboçam-se fragmentos de narrativas e mundos ilocalizáveis, onde o automatismo das formas gráficas escapa às fórmulas surrealistas e abre pistas para um exercício de imaginação partilhada.
Adiante, Francisco Tropa instalou a mesa de queijos e o banco com pesos que se viram (e não se entenderam) na sua recente exposição do CAM, rapidamente derrubados por algum passeante apressado e substituídos pela presença mais sintética de um tijolo e um boné. Outro português, Didier Fiuza Faustino, arquitecto em Paris, integra a colectiva «Estação Utopia» com o projecto de uma torre modular. O inventário das intervenções nacionais continua com a participação de Isabel Carlos, na qualidade de comissária da Bienal de Sidney de 2004, no júri que escolheu o melhor pavilhão, e com a inclusão de quatro alunas-artistas da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa num projecto de trabalho «in situ» que envolveu outras escolas. Mostram na alameda de acesso aos Giardini fotografias da população vizinha, perdendo-se no ambiente geral; teriam sido notícia se aproveitassem a viagem para desenhar nos museus, como fizeram gerações de estudantes, e mostrassem as suas «cópias».
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Na sequência das oito exposições que preenchem os Arsenais, há espaços para discursos africanos, árabes e latino-americanos, a assegurar as intenções políticas dos respectivos comissários, mas as condições não são propícias a uma escuta condigna. Mais eficaz é o caos construído sob o título «Zona de Urgência» por Hou Hanru, comissário das Bienais de Kwangiu (Coreia do Sul) e Shangai, com a diversidade e a vitalidade das novas gerações de artistas orientais. Da pintura aos ecrãs de computadores portáteis, passando por toda a sorte de objectos e projecções, a frenética acumulação gera um espaço de cumplicidades e descobertas. Por exemplo, logo à entrada, a dupla projecção da chinesa Yang Zhenzhong (n. 1968): num ecrã lateral, uma jovem aproxima-se e sopra sobre o público (acalorado), a obra prolonga-se num segundo ecrã fronteiro onde imagens de trânsito urbano são aceleradas e alteradas pelo sopro - refrescante e surpreendente. Adiante, Tadasu Takamine (Japão, n. 1968), apresenta o divertido God Bless America, instalação e projecção de um filme em «stop action» e animação, onde uma cabeça-escultura em constante mutação ocupa o centro de um quarto muito habitado. As consultas feitas indicam já circulações europeias dos dois artistas.
Na mesma táctica de absorção de todos os antagonismos, do empenhamento político à irrisão, atravessam-se os «Sistemas Individuais», dedicados a projectos autistas como as intermináveis sequências de números pintados pelo velho Opalka, e a grande galeria que Gabriel Orozco ocupou com os objectos de um «Quotidiano Alterado», da discreta anedota ao grande efeito visual de um «carocha» desconstruído pelo mexicano Damián Ortega. No final, «Estação Utopia» acolhe todos os revivalismos mais ou menos esquerdistas num espaço de convívio comunitário, de que após a animação inaugural restarão exíguos vestígios - mas o visitante estará suficientemente exausto para não se queixar. Agnès Varda passeou-se vestida de batata e deixou uma vídeo-instalação simpática, observando as discretas formas que tomam ao nascer as respectivas raízes.
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