Já agora, por contiguidade, a exp. amazónica comissariada por J. A. Fernandes Dias, Eglantina Monteiro, Paulo Providência (arquitecto) e Ângelo de Sousa
EXPRESSO/Revista 27/08/1994
«Brasil, Brasis»
«Memória da Amazónia, Etnicidade e Territorialidade», Alfândega do Porto
À ENTRADA há uma longa parede, fortemente iluminada, onde se expõem citações extraídas das primeiras informações escritas sobre os índios dos Brasil — são «citações de seres e situações fantásticas», segundo o roteiro, porque a estranheza perante o outro desconhecido só podia exprimir-se através da reactualização de antigas descrições mais ou menos míticas: «vimos muitos homens e mulheres que não tinham cabeça e tinham os olhos no peito», Santo Agostinho «dixit»; «eu pensava que estava no paraíso terrestre», Américo Vespúcio, 1502; «próximo do Eldorado existe uma terra das mulheres que se chamam Amazonas e não têm homens», séc. XVI; «outra casta de gente nasce com os pés às avessas», 1663.
Passa-se, a seguir, da palavra à imagem, em três diferentes suportes:
um painel onde se reunem gravuras com as primeiras representações dos
povos ameríndios (imagens também fantásticas, menos iluminadas e não
individualmente referenciadas); um diaporama que se vê num
écran-objecto (é uma escultura «minimalista», em ferro), dedicado às
imagens ambivalentes do índio, ora bom selvagem, o da Adoração dos
Magos, de Grão Vasco, ora mau selvagem, no Inferno, do Museu de Arte
Antiga, até ao rigor naturalista das estampas da «Viagem Philosophica»,
de 1783-1792; um monitor vídeo com um extracto do filme Aguirre, o
Aventureiro, de Herzog, e um documentário sobre a situação actual dos
Yanomani.
Adiante, um mapa do povoamento indígena no tempo dos primeiros
contactos; móveis de um museu do século XIX apresentando material
arqueológico e objectos pertencentes a grupos extintos (machados de
pedra, cerâmicas, adornos, uma máscara — os mais recentes são de meados
do séc. passado, dos Jurupixuna, e já dos anos 70 do séc. XX, dos
Arara); urnas funerárias da ilha de Marajó, expostas sobre placas de
ardósia e de modo a valorizar a sua beleza artística; por fim, notícias
do massacre da aldeia Haximu da tribo dos Yanomani, publicadas na
imprensa portuguesa, em 1993.
É o primeiro andamento, o núcleo «Choque», da exposição «Memória da Amazónia, », apresentada na furna grande da antiga Alfândega pela Reitoria da Universidade do Porto em colaboração com a U. do Amazonas, comissariada por J. A. Fernandes Dias, Eglantina Monteiro (antropólogos), Paulo Providência (arquitecto) e Ângelo de Sousa (artista plástico). Seguem-se-lhe os núcleos «Tutela» e «Afirmação da Etnicidad», que não se verão como sucessivos capítulos de um percurso linear mas como outros tantos recomeços de uma mesma exposição, cobrindo o mesmo horizonte temporal com novas perpectivas de abordagem, com diferentes olhares.
Neste ano de Lisboa Capital Cultural, aqui se proporia, se tal distinção existisse, o prémio de melhor exposição de 94 para esta iniciativa portuense.
OUTRA ANTROPOLOGIA...
O visitante desprevenido confronta-se, de imediato, com uma exposição diferente, capaz de provocar as mais desencontradas reacções, do desconforto ou da rejeição extrema perante a distância em relação à norma, até ao interesse em aprofundar a originalidade expositiva e teórica deste projecto. É a segunda via que se procurará seguir adiante, já com recurso a esclarecimentos prestados por Fernandes Dias, docente da Faculdade de Belas Artes de Lisboa e do Departamento de Antropologia da U. de Coimbra.
Esta exposição é diferente, desde logo, pela extensa utilização da escrita como material expositivo e pelo recurso a diversos suportes de apresentação de imagens (gráficas ou em movimento), que, como os textos (enunciados programáticos e citações), forçam o visitante a demorar a sua passagem. Depois, já em relação ao terreno específico da antropologia, pela recusa evidente de algumas das suas regras habituais: a estetização dos objectos «primitivos» ou a sua contextualização por referência a uma história encerrada, ou fatalmente condenada, onde a valorização de uma inocência perdida é o único limite admissível para o olhar neutral do cientista.
Aqui, pelo contrário, fala-se de massacres e de estratégias de sobrevivência, expõem-se recentíssimas cartilhas de alfabetização que fixam a escrita das línguas indígenas e um quadro das actuais organizações auto-representativas dos índios — em «Afirmação da Etnicidade» —, apresenta-se uma realidade política de contornos imprevisíveis, que é conflituosa já no momento presente (o debate sobre a auto-representação das nações índias está a processar-se em cumprimento da constituição brasileira de 1988) e potencialmente explosiva no futuro (confronte-se com a situação em Chiapas). A neutralidade, afinal, não é possível.
Uma exposição é quase sempre uma espécie de album de estampas: mostram-se séries de imagens ou colecções de objectos acompanhadas por breves legendas. Far-se-ía assim a prova de uma suposta facilidade de ver contra as agruras do livro de texto, oferecendo-se a síntese fácilmente acessível de um qualquer saber constituído, o «digest», a ilustração preguiçosa de um discurso. Em geral, é para ver depressa, para percorrer ou atravessar, e pode ser também, é cada vez mais, já em dimensão industrial, um espectáculo, da ordem da recreação, da ocupação de tempos de lazer, da «animação urbana».
No caso presente, não só se contrariam tais lógicas, mas sem qualquer sacrifício do seu impacto visual, como a própria exposição se constroi como um exercício crítico em relação à disciplina que é suposto ilustrar, em consonância com uma reorientação radical do estudo antropológico das sociedades indígenas que se vem observando no Brasil, aliás, já com sensível atraso em relação a situações idênticas da restante América. E não será por acaso que uma iniciativa académica dedicada ao «encontro de culturas» foi acolhida pela Universidade do Porto mas não despertou qualquer interesse da parte da Comissão dos Descobrimentos, que lhe concedeu um subsídio de apenas 300 contos, naturalmente recusado pela Reitoria (o roteiro conserva ainda o seu emblema oficial, por ser anterior a tal episódio).
E ARTE CONTEMPORÂNEA
Voltando à construção da diferença expositiva e conceptual deste projecto, há que destacar a criação de mobiliário original (expositores e meios de iluminação com intervenção escultórica e valor semântico) e, em especial, a montagem sequencial em cenários onde é visível um grande investimento ao nível da concepção plástica: neles se consegue sempre uma mobilização significante dos recursos do espaço, dos materiais, da luz, da cor e do som, em condições sucessivamente diferenciadas que se percorrem como outros tantos ambientes ou instalações.
De facto, a prática museológica encontra-se aqui com processos importados do território da arte contemporânea e é questionada ou descontruída por eles. Mas as instalações (por exemplo a «sala à Kosuth» da secção «Tutela» ou a feira de artesanato indígena do terceiro núcleo) têm sempre um preciso sentido funcional e teórico, até porque os responsáveis pela arquitectura interior participaram como comissários de parte inteira na construção conceptual da exposição: elas não são meros efeitos de teatralização, veiculam uma nova forma de pensar a antropologia, diferenciando as diversas relações com os objectos que se estabeleceram ao longo do tempo ou os significados e valores que lhes são associados em diversos contextos ideológicos. Não é impunemente que se ocupa o cenário fortíssimo da galeria subterrânea e granítica da Alfândega do Porto, onde há alguns meses se podia ver a instalação de Ângelo criada para as 2as Jornadas de Arte Contemporânea.
Diferença, ainda, é a estratégia de apresentação de muitos dos objectos em conjuntos, ou acumulações (outra situação tomada da arte contemporânea), a qual permite subverter a relação formalista com o objecto etnográfico que se constituiu com a arte do princípio do século; e também a opção pela não identificação individual das peças expostas, substituída por referências colectivas e compreensivas (textos «Trançar o mundo», para a cestaria; «Mudar de pele», as máscaras, no núcleo «Tutela»). Assim se mantem a evidência de uma margem permanente de desconhecido, que é propiciadora de intranquilidade para a vontade de conhecer-«dominar» do visitante, e se constrói um outro modelo de mostra antropológica que é «menos uma exposição de objectos do que de contextos de significação dos objectos» (F.D.). Existem, no entanto, problemas de localização de algumas das tabelas e também de legibilidade do roteiro, devido a erradas opções gráficas.
Importa sublinhar, ainda, que os materiais expostos estão, na sua esmagadora maioria, inventariados e reproduzidos em publicações recentes, e, por isso, a própria ausência de catálogo, neste caso (também excepcional), não se afigura uma lacuna: esta é uma exposição com uma genealogia recente, está directamente relacionada com as que a precederam sobre o mesmo tema e convida a revê-las criticamente. É o caso de «Índios da Amazónia», no Museu de Etnologia, em 1986, que, por sua vez, actualizava a exposição pioneira de 1966, na SNBA, «Arte do Índio do Brasil», com a recolha de Vitor Bandeira; de «Memória da Amazónia — Alexandre Rodrigues Ferreira e a Viagem Philosophica», organizada em 1991 pelo Museu Laboratório Antropológico de Coimbra; e de «Nas Vésperas do Mundo Moderno Brasil», promovida pela Comissão dos Descobrimentos no Museu Nacional de Etnologia, em 1992, sendo comissário geral Jill R. Dias e Benjamim Pereira o responsável pela concepção e realização da exposição.
Entretanto, a actual mostra propõe uma outra linha paralela de reflexão em torno da criação artística, dos artefactos produzidos para consumo dos brancos ao artesanato índigena actual comercializado pela Funai, e da atenção à dimensão simbólica e artística que excede o valor funcional dos objectos tradicionais até à apresentação de obras realizadas sobre suportes ocidentais por artistas indígenas (Chico da Silva) ou outras de artistas eruditos que trabalham sobre referências indígenas (Marcelo Silveira e Flávio Emanuel). A simultaneidade de uma segunda exposição na Alfândega sobre arte popular brasileira, «Recife, Raízes e Resultados», constitui uma poderosa amplificação de toda esta problemática.
AUTO-REPRESENTAÇÃO
Fernandes Dias diz que neste projecto se pretendeu «identificar as limitações das formas das exposições tradicionais» e que a respectiva montagem partiu de «duas preocupações assumidas, uma de carácter temático, sobre a sua narrativa científica e crítica, e outra de linguagem expositiva, com um forte investimento estético», porque esta «não é uma exposição de objectos, é uma exposição de conceitos». Tratava-se de «expor um tema», em deslocação do interesse pelos vestígios materiais e pela história das suas interpretações para a atenção aos «modos de relacionamento entre índios e brancos», ou seja, à «situação actual das sociedades indígenas no contexto multi-étnico da Amazónia brasileira».
Esta situação é caracterizada, segundo F.D., pela ocorrência constante de novos factos políticos referentes aos povos indígenas e pela «manifestação poderosa de inúmeras organizações de auto-representação desses mesmos povos», o que não pode deixar de ter «reflexos profundos na própria investigação antropológica, e nas tarefas e papéis do antropólogo». De facto, «os movimentos emancipatórios recentes abalam não só a tutela das instituições que os dominam ainda, como a própria legitimidade dos intérpretes que se exprimem em seu nome».
Dos contactos preparatórios estabelecidos no Brasil por Eglantina Monteiro e Fernandes Dias, nomeadamente com lideranças indígenas, através da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazónia Brasileira, fundada em 1989 e contando com a presença de representantes organizados de 55 povos índios), resultou a «noção clara da importância, na vida política e social, que a reivindicação de uma identidade étnica diferenciada passou a ter para os indígenas e para a sociedade nacional». Ao contrário da perspectiva antes dominante nos estudos antropológicos, a extinção ou a conservação, aquela reivindicação «é uma manifestação de vitalidade persistente, quer na defesa das tradições quer na capacidade de inovar face à coexistência com os brancos».
Por isso se escreve no texto que se exibe como prefácio à exposição: «Convidamos os visitantes a descobrir os modos como os (povos indígenas) souberam sobreviver, e como querem garantir a sua existência no futuro. Desmentindo a imagem dominante que deles se fez, como seres efémeros, em transição para outra coisa — a cristandade, a assimilação, o desaparecimento».
Aí se deve ler também que o processo resultante do «descobrimento» de 500 «é visto aqui como um encontro e confronto imprevisíveis entre dois mundos», e que a exposição se organiza em «três espaços que correspondem a três tipos de situações de contacto interétnico na Amazónia do Brasil, que podem estar e estão presentes desde o século XVI aos nossos dias: choque, tutela , afirmação da etnicidade».
Em vez de uma narrativa unificada pelo devir histórico, pela mapa geográfico, pelas áreas de recolha e de saber etnográfico, «cada um destes espaços mostra que modo de relacionamento caracteriza cada situação de contactos, que ideias sobre o outro formularam os dois intervenientes no contacto, que resultados daí decorreram».
Entretanto, a própria exposição (até 30 de Novembro) é um processo em aberto: em Setembro será publicada uma «Revista» onde se fará a caracterização teórica do projecto e a sua ilustração através da montagem realizada; seguir-se-á, em Outubro, um ciclo de vídeos e, por fim, um colóquio internacional. Conta-se com uma conferência inaugural de Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga responsável pela edição, em 1992, da História dos Índios do Brasil (Ed. Companhia das Letras), e com as participações, entre outros, de David Maybury-Lewis, presidente da Cultural Survival, com sede em Harvard, de Francesco Pellizzi, antropólogo americano que é consultor dos Chiapas e foi o fundador do seu Museu, de Philippe Descola, coordenador do número da revista «L'Homme» dedicado a «La remontée de l'Amazone» (1993), de antropólogos brasileiros e de dois ou três representantes indígenas com formação universitária. As actas do colóquio serão publicadas pela U. do Porto, que também dedicará a este projecto o seu próximo «Boletim», a sair em Novembro.
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